O Quarto 612

À memória de

Ana Izabel Zacaro Sampaio

† 26/04/2010

"Me perdoe, Ana, pela demora." N. do A.

“O teu olhar é o fim do mundo todo dia da semana” Engenheiros do Hawaii

Era verão. Os dias eram os mais quentes dos últimos anos. A brisa morna assentava-se sobre a cidade. No quarto 612 alguém aguardava uma visita. Uma visita que todos receberão, cedo ou tarde.

Poucas pessoas vão ao quarto 612, se debruçar sobre o leito B. E dessas poucas, pouquíssimas realmente se importam com o que está por vir naquele quarto. Os dias avançam sempre, naturalmente, quentes e abafados. A hospedeira do 612 sabe quem a visitará em breve, mas tenta, inutilmente, se apegar a todos os poucos à sua volta. Foi assim que ele a viu, pela última vez.

Depois de uma série de dias quentíssimos, suados e de diversas noites terrivelmente longas e tão ou mais quentes que o dia, o frio chegou repentinamente. Como um prenúncio do que estava por vir. Ou como se a carência de Ana, naquele leito B, do quarto 612, movesse o mundo em volta, para que se dessem conta de que ela jazia ali ainda. Como se o clima quisesse dizer a Ana que se importava com sua dor e sofrimento.

Havia três pessoas no quarto, além de uma enfermeira. As mãos de Ana buscavam os rostos, os corpos quentes para sentir, as mãos vivas para apertar as suas. Hora ou outra tentava articular algumas palavras, que escapavam como um sopro sem vida pelo orifício aberto em sua traquéia. Ana fumou vinte e dois cigarros por dia, durante incontáveis anos. A nicotina, que já havia lhe tirado parte da sanidade com dois AVCs, agora lhe cobrava o resto da dívida. Os olhos de Ana permaneciam fechados e se contraíam quando sentia dores e se expandiam quando a enfermeira lhe massageava as costas. Ela abriu os olhos, que agora eram novamente os olhos de Ana quando criança, (pois quem olhasse bem dentro e no fundo deles, veria Ana pulando corda e jogando pique) e fitou seu bem-amado. Suas mãos apertavam as dele com tamanha agonia. O homem se fazia forte, mas em cada gesto dele se podia ver a tristeza, como um rastro deixado por um movimento brusco. Os olhos de Ana tentavam dizer coisas que sua traquéia não permitia, mas os olhos daquelas pessoas não pareciam compreendê-los. A enfermeira, uma crioula de cinqüenta e dois anos, mas que não aparentava mais que trinta e cinco, disse que Ana queria carinho, como quer uma criança. E isso todos ali compreendiam.

*

Mais uma visita subia o elevador até o quarto 612 naquele instante. O rapaz pressionou o botão do sexto andar com indiferença. Talvez ele fosse um dos que não se importavam com o porvir do leito B no quarto 612. Ao menos até aquele instante. Entrou no quarto e cumprimentou os parentes. Sua irmã segurava a mão sedenta por vida de Ana, seu avô estava ao lado dela e o tio-avô, que não via há anos, estava sentado numa poltrona, próxima ao leito B. Ele se aproximou devagar, com um misto de respeito pelo ambiente, medo do que estava por acontecer e, acima de tudo, o respeito que o Infinito Obscuro implica, ao se aproximar. O silêncio no quarto de Ana parecia ser palpável, o que é estranho, já que a TV estava ligada e todos conversavam, murmurando, entre si.

Beijou sua irmã e tomou a mão de Ana entre as suas. Ana abriu as pálpebras vagarosamente, e seus olhos opacos na superfície (e cheios de um brilho infantil e inocente nas profundezas) o fitaram por um longo tempo. Não exprimiu reação alguma. O homem de sua vida, outrora austero e imponente, agora frágil e temeroso, sussurrou “É o neto, bem”. Os olhos de Ana pareceram compreender, e sua mão flácida fez um esforço tremendo para apertar, de leve, a mão do rapaz. ‘Neto...’, pensou ele. Ana não era sua avó. Não tinham uma gota de sangue sequer em comum. Mas era casada com seu avô já antes de seus pais serem casados, então sempre a tratou como tal. E foi tratado assim, também, mesmo no instante próximo ao inevitável.

O rapaz sentia-se constrangido diante de Ana, outrora tão sorridente, contando sempre as mesmas piadas e rindo sempre como se fosse a primeira vez. Lembrava-se dela descascando cana, fritando mandioca, xingando os cachorros. Por um momento ele pareceu se importar. Queria ver Ana de pé, arrumando os lençóis, aumentando o volume da TV, dando ordens à enfermeira... ‘Por quê?’, pensava, ‘Por que acabar assim?’. Permaneceu ali mais alguns minutos e se retirou, com o tio avô, com quem conversava sobre os acontecimentos, tentando se desviar daquela situação. Mas o Infinito Obscuro é inevitável, até mesmo para se falar nele. É absoluto. Quando, presente, domina os diálogos, os pensamentos. É impossível ficar indiferente diante Dele. Ainda mais naquelas condições, enquanto ele alterava o clima de uma cidade e batia à porta do quarto 612.

*

Mas Ana não se foi naquele dia. É provável que alguém tenha partido. Alguém num andar acima ou abaixo do quarto 612. Passou perto. Mas passou. No entanto, a situação não melhorou. O dia voltou a clarear, as semanas subsequentes foram quentes, com a brisa fria à tarde, meados de Abril.

O rapaz não voltou ao hospital depois daquele dia. Não recebia notícias de Ana. Pelo menos, não animadoras. Quando perguntava por ela, recebia em resposta os mesmo olhares. A desesperança pairava em torno de Ana e de todos os que a cercavam, mesmo que não mais no leito B do quarto 612.

Ana se foi num dia de sol. Fazia frio, mas o sol brilhava intenso, radiante, esperando a chegada de Ana para pular corda e jogar pique com ela, universo afora, pela eternidade. Naquela manhã ela se sentira tão bem. Era a Ana de que todos lembravam. Falava alto, insistia. Sentia-se forte, quis sair da cama e se sentar. “Mas e se você cair?”, perguntou o marido. “Vamos tentar, meu bem”, Ana pediu. Aos poucos esticou as pernas, sentiu o chão frio, uma brisa morna matinal talvez entrasse pelas janelas. Ana deve ter visto o céu azul e o sol. Talvez tenha escutados os pássaros, e isso a fez sentir vontade de tentar. Tentar levantar da cama. Tentar sentar no sofá. Tentar resistir mais um pouco e evitar o inevitável. Ela conseguiu se sentar, para alegria de seu companheiro, que sorriu com lágrimas nos olhos. Ela vai sair daqui. Ela vai voltar a ser a mesma Ana.

E saiu. Naquela tarde, Ana voltou a ser a menina cheia de graça que sempre fora. Levantou-se da cama, com roupas brancas e limpas, sentia-se leve e bonita. Não olhou pra trás. Correu à janela, espiar o sol. E voou. Atrás dela ficou um homem, outrora austero, derramando as primeiras lágrimas sinceras, depois de tantos anos.

*

O rapaz encontrou Ana naquela mesma tarde. O tio avô estava lá, outra vez. O avô se debruçava sobre o rosto de Ana, beijava-lhe a fronte, e contava a todos os que chegavam que Ana dissera, naquela mesma manhã, ‘vamos tentar’. Abraçou o homem com respeito, cumprimentou discretamente o tio avô e se dirigiu ao leito de Ana, que não era mais o leito B no quarto 612. Ana não estava sorrindo. Não parecia descansar. Ela, simplesmente, não estava ali. Ele colocou a mão sobre as mãos frias de Ana, cruzadas sobre o peito. Não disse nada. Não sentiu vontade de chorar. Sentou-se ao lado do tio avô e ficou remoendo os versos de Vinícius: “Para isso fomos feitos…” Entendeu o significado daqueles versos e a razão do Infinito Obscuro, pelo qual deveríamos passar em silêncio, “falar baixo, pisar leve…”.

Mãos fortes levantaram Ana com sua cama e a levaram até onde ela deveria ficar. Enquanto desciam sua cama até o local apropriado, o rapaz se deu conta de que nunca a chamara de Ana. “Adeus, vó Izabel”, pensou.

Ana, ao lado do sol, parou de pular corda e jogar pique por um minuto e acenou para os que dela se despediam lá embaixo. Poucos notaram. E o inverno que se seguiu foi o mais rigoroso dos últimos anos. Pelo menos por dentro daqueles que contemplaram o Infinito Obscuro, debruçado sobre o leito B, do quarto 612.

William G. Sampaio [29/03/2012]

William G Gardel
Enviado por William G Gardel em 29/03/2012
Código do texto: T3583215
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