Noites de vidro

Deslizando. Arquiteturas que já começam só como lembradas. Fragmentos simultâneos fluindo. Conheço alguém que mora ali. O asfalto ruim aumenta a sensação. Pelo menos não estamos mais com tanta fome.

Todas as almas são pequenas e pardas na madrugada. Cacos de briga naquela esquina. Farol fechado... Passamos devagarinho... Passei rápido os dedos no vidro embaçado desenhando um buraco, o letreiro retribuiu com cores espertas que sabiam como chegar. Encaminhei minha cabeça pro vão entre o encosto e a minha porta, agora eu estava preso e seguro. As pernas continuaram escorrendo, mas logo descobriram que estava aportado. Sou um chapéu num cabide. Uma música desconhecida e velha tentava vencer no chiado do rádio. O rádio não tentava vencer ninguém. Qualquer diálogo entre nós era mais raro do que pedestres.

O que dirigia não parecia se importar muito com a gravidade. As coisas tinham que passar rápido pra compensar os vazios de tudo. O do carona tentava achar o tamanho de fresta ideal pra janela.

Eu me sentia em trilhos. Queria ver gente saindo pra trabalhar. Queria uma padaria com cheiro de fermento. Queria achar uma puta cínica com seus cigarros. Dei uma pancada com o joelho no banco da frente e entreguei o isqueiro. Passei a vez, não estava afim. Parece que eu tinha conseguido entender alguma coisa grande, alguma coisa realmente importante que me faria transpor uma dobra. Marcava mentalmente um poste distante e contava os segundos até o alcançar. Polirritmia, vários tempos na mesma marcação. Se o clarinetista errar? Um caos avariado dos dominós. Precisamos abrir mais as janelas. Saímos das saias dos prédios e pegamos a via rápida.

A música apaga e uma voz nem cansada nem triste fala as horas, e

continua conversando como se fôssemos caminhoneiros sem rebite ou

vigias noturnos sem pornografia ou bêbados sem amigos. Os dois da

frente vão juntos com a mão pra desligar. Tanto tempo e esforço nos

escondendo de nós mesmos e um timbre assalariado transmitido em ondas médias pode botar tudo a perder.

Viramos um aquário de nuvens, quando passamos por debaixo das luzes públicas parecemos incandear alaranjada... Nem era tão bonito assim, só combinava bem com os favos de metrópole do lado de fora. Lá na frente via-se a sinalização de um acidente. O do carona abriu quase todo o vidro, mas a fumaça não desmarofava. A chuva começou a entrar e resolvi trocar de lado. Esperei ele se molhar e depois abrir alguns dedos a minha janela, o vento atravessou o carro e varreu. Ambulância, policiais e guincho. Deve ter sido feio. Ficou frio. Fica muito mais frio quando o inverno também é por dentro.

Continuei contando segundos e eles não pareciam muito diferentes.

degumes
Enviado por degumes em 29/03/2012
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