O Malandro

Morava ao lado da ponte, servia-se da pontualidade do trem, para determinar as horas. Passava boa parte do tempo fazendo e fumando um cigarro feito com fumo de corda. O processo era cuidadosamente executado. Primeiramente, selecionava as melhores espigas de milho. Descartava as que tinham palha muito grossa ou enrugada. De posse das selecionadas, dirigia-se a uma ampla mesa e distribuía as espigas bem no centro, uma quantidade que ficava entre cinco e dez unidades. Pegava a faca e passava algumas vezes no rebolo, medindo o seu poder de corte com o polegar. Se o gume não estivesse perfeitamente afiado, buscava uma caneca d’água no tanque de lavar roupa para retomar o processo de afiar com o rebolo. Nessa etapa, precisava da ajuda do Nenê e saiu gritando o nome do neto pelo pátio. O Nenê que se chamava Bepodi, mas era tradição apelidar de Nenê o caçula da família. Bepodi era um adolescente de 16 anos, que se orgulhava dos longos, sujos e despenteados cabelos. Passava o dia fazendo travessuras nos arredores da casa.
Apodi precisava dele para ajudá-lo a afiar a faca, a função de Bepodí era girar o rebolo e simultaneamente jogar um fio de água sobre a faca, enquanto Apodi pressionava a lâmina contra a pedra.
Com a faca perfeitamente afiada, cortava a palha das espigas com cuidado para que ficasse sem qualquer rebarba. A palha retirada era guardada em um pequeno saco plástico, enquanto as espigas peladas eram jogadas para o cesto, que tinha como destino alimentar os porcos.
Carregava o pequeno saco para junto do poste do portão de acesso ao pátio da casa. Sentava-se no pequeno banco, junto ao poste; e, vagarosamente, desfiava de forma milimétrica, cada maço de palhas.  As palhas preparadas para fazer o cigarro eram dobradas ao meio, no sentido vertical, e amaradas em pequenos feixes com vinte e cinco unidades. Eram confeccionados dois feixes. Diariamente, toda palha que sobrava era descartada a apenas alguns passos dali. Aos poucos, via-se crescer, entre a estrada de ferro e o caminho de acesso à residência, um grande palheiro.
Este era um local preferido para confeccionar seus cigarros, que ele chamava de paiero, pois se podia observar as locomotivas atravessarem a ponte.
Com as palhas devidamente selecionadas, retirava do bolso um palmo de corda de fumo que era levado ao nariz, no qual sorvia por algumas vezes aquele cheiro forte que seguramente poderia se chamar de fedor.  Após cheirá-lo, retirava do outro bolso a brítola,  que costumava carregar sempre consigo. A forma arredondada do pequeno canivete era ideal para a corda do fumo. Fazia finas rodelas que, em seguida, eram amassadas com os dedos e posteriormente friccionadas na palma das mãos.
Assim que o fumo estivesse bem fino, espalhava-o no centro de uma das palhas e enrolava-a até formar um belo cigarro, generosamente recheado com um fumo amarelado. Preparava alguns e fumava outros, tendo o cuidado de manter um pequeno estoque de paieros prontos. 
Os que não eram consumidos eram oferecidos para os maquinistas, que sistematicamente diminuíam a velocidade de suas locomotivas para que com a agilidade de Seu Apode, um pequeno salto fosse suficiente para Apodi pegar uma carona. Uma viagem de alguns minutos até o outro lado da ponte.
No caminho, aproveitava para trocara um tiquinho de prosa e vender uns cigarros, mais doava que vendia, pois raramente recebia alguns trocados. Ao saltar do outro lado na ponte, aproveitava para conversar um poupo com o vizinho do outro lado do rio e, no mesmo processo, retornava para seu posto no portão em frente à casa. Fazia isso várias vezes ao dia.
A rivalidade com o vizinho era proporcional à amizade que mantilha com os maquinistas. O fazedor de paieros  não era uma pessoa que nutrisse mais sentimentos, pelo contrário, era amigo e afável com todos, porém havia desenvolvido uma espécie de antipatia e até rivalidade com o novo vizinho. Possivelmente, por ter tomado o lugar do antigo amigo que  vivia ali antes, o qual partiu para o outro lado devido a uns goles a mais de graspa   o que, saudosamente, insistia em invadir-lhe a mente diariamente.
Plínio, o atual vizinho, era um trabalhador simpático, embora um pouco vaidoso. Gostava de exibir seus chapéus e suas ferramentas de trabalho, ao contrário de Apodi que fugia do trabalho e não tinha a menor vaidade. Porém, sentia-se profundamente incomodado com o fato do vizinho conduzir as conversas de forma a sempre tentar deslustrá-lo, não chegava a ser algo explicitamente desaforado; embora, no íntimo, existisse essa intenção.
Apodi não era de levar desaforo pra casa e logo tratou de encontrar uma forma de dar o troco. Não precisou de mais que um dia para arquitetar um plano e, no dia seguinte, já tratou de executá-lo.
Quando Plínio começo a falar na nova picareta que havia adquirido, Apodi não perdeu  a oportunidade de pedir-lhe ajuda para consertar a cabeceira da ponte, a qual ficava a poucos metros do portão onde Apodi tinha o costume de fazer seu paiero. O que se passava era que havia ocorrido um pequeno deslizamento de terra, causado por um enxurrada um pouco mais forte ocorrida ainda no verão passado. Tratava-se de uma erosão natural, nada que pudesse comprometer a segurança, mas era o motivo ideal para iniciar o plano.
Plínio podia ser orgulhoso, mas não era bobo, foi logo dizendo:
- Não se preocupe com isso vizinho, isso é obrigação do governo que é dono na estrada de ferro.
- Eu sei, vizinho, mas a ponte é minha e é meu dever mantê-la em perfeitas condições.
Plínio não acreditou, pensou ser uma forma de Apodi contrapor-se a sua evidente superioridade, visto que nos últimos dias havia adquirido uma nova junta de bois e várias novas ferramentas; o que, evidentemente, deixaria qualquer vizinho um tanto enciumando. Além do mais, não queria perder a oportunidade de exibir a nova picareta e talvez ganhar alguns trocados.
- Sabe, vizinho, eu estou muito atarefado e não posso deixar de tocar a plantação, tenho compromisso com o Banco e não quero mexer nas minhas economias, então vou ter que te cobrar alguns trocados pelo serviço.
- Acho justo responder, Plínio; entretanto, precisamos começar imediatamente. Podemos começar amanhã.
- Claro, estarei lá ao raiar do sol.
- Não há necessidade de ser tão cedo vizinho.  Às dez horas tá muito bom.
- Mas vou cobrar o dia cheio.
- Sem problema, as dez está ótimo. Até amanhã, vizinho.
Enquanto Plínio trabalhava e elogiava o desempenho das ferramentas, Apodi ansiosamente cuidava o movimento das locomotivas. Assim que ouviu o primeiro barulho da primeira se aproximando, saiu correndo ao encontro da locomotiva.
Plínio que acompanhava tudo, percebeu o locomotiva reduzir a velocidade e viu o maquinista entregar algo ao vizinho que tratou de colocá-lo no bolso rapidamente. Durante a semana que trabalhou para o vizinho, o processo se repetiu diariamente para com todas as locomotivas que por ali passaram.
Ao término do trabalho, que Plínio realizou sozinho, uma vez que Apodi passava todo o tempo revezando-se entre fazer seus paieros, fumá-los e pegar dinheiro dos maquinistas, recebeu valor combinado.  Plínio que também era astuto, ainda não sabia o porquê, mas já havia percebido que era dinheiro o que os maquinistas entregavam para o vizinho, puxou o último dedinho de conversa:
- Vizinho, que mal lhe pergunte, o que ocê tanto recebe destes maquinistas?
- Meu pagamento, ué.
- Mas, nem todos fumam paiero, o que ocê tanto vende pra eles.
- Ôoooo vizinho, eu não disse prá ocê que sou dono da ponte. Esse dinheiro é pelo pagamento do pedágio.
- É mesmo, então a ponte é mesmo sua?
- Claro. Essa é a minha melhor plantação...
-Isso deve dar um dinheirão?
- Ah isso dá, mas dá um trabalho.
- Que trabalho?
- Ocê acha fácil ter que cuidar os horários para pegar o dinheiro? Às vezes tô começando a pitar e tenho que sair correndo para receber o dinheiro. O maquinista só diminui, não pára. Isso me exige muito esforço, tô ficando cansado desse serviço.
- Ooo vizinho, isso não se compara com pegar na enxada, quem me dera eu ter um trabalho assim.
- Eu, se quiser, posso vende a ponte pra ocê, e então vai ver como isso dá trabalho. A cada dia surgem novas locomotivas e meu trabalho está aumentando.
- Vai vender mesmo? Eu bem que gostaria de comprar.
- Vou vender sim, mas não sei se agora, talvez mais adiante...
No dia seguinte, Plínio convencido do grande negócio que Apodi tinha em mãos, foi cedinho para a casa do vizinho tentar convencê-lo a  vender-lhe a ponte.
Não foi difícil, acertaram o preço e no outro dia Apodí estava com a carteira recheada de cruzeiros.
Plínio largou a plantação e foi cuidar do pedágio. Como bom investidor, já no primeiro dia, mandou construir uma cabine própria para cobrar o pedágio; e claro, uma faixa “sob nova administração”. Assim, os maquinistas pagaram confortavelmente durante toda a primeira semana. Na semana seguinte, as locomotivas passavam pela cabine, sem sequer diminuir a velocidade, ignorando completamente os acenos de Plínio para cobrar o pedágio.
O dinheiro que Apodi havia dado aos maquinistas para que durante certo período fosse utilizado para pagar o falso pedágio tinha acabado, portanto nada tinham a fazer a não ser conduzir suas locomotivas.
Meses depois, em manutenção de rotina a concessionária da estrada férrea exigiu que Plínio retirasse a cabine, pois estava prejudicando o serviço de pintura da ponte.
A rotina de Apodi não sofreu alterações, enquanto teve pulmões. Por sua vez, Plínio, sufocado pela vergonha, mudou-se duas semanas após o início da manutenção da ponte.