Em busca de um tempo perdido

Acordou recordando-se de Sinhá Vitória, personagem cujo sonho maior era uma cama de lastro de borracha, larga, ampla e macia. Uma cama para endireitar-lhes as costas e o pensamento. Mas depois da cama acudir-lhe-iam outros sonhos, outro clima, novos espaços, outras terras; uma terra toda sua, pois conhecia sua alma inquieta, apenas adormecida no limite de seu tempo.

Não podia verbalizar o que sentia, e isso a aproximava ainda mais de Sinhá Vitória, os sonhos não podiam ser expressos, não por terem alguma coisa de proibido, algum interdito, não, mas, por que sabendo que não os podia realizar, era preferível que ficassem quietos, na memória, adormecidos para não a sufocarem mais que a própria realidade.

Não conseguiam conversar, o silêncio era um muro difícil de transpor, que havia se instalado após a doença e os acontecimentos a ela associados, as tentativas tinham sido vãs ao longo do ano ou dos anos, talvez ela nem tivesse percebido o quanto já tinha sido difícil o diálogo nos tempos que antecederam a crise. As palavras, quando chegavam, vinham grávidas de ressentimento do passado, um passado distante que ele rememorava, um mundo do qual ela não fazia parte.

Havia feito uma constatação de difícil aceitação. Ela estava ali, mas não existia. Descobrira naquela manhã que havia desistido. E o duro sentimento de desistência a perturbava profundamente, teria também adoecido? Tinha consciência dos fatos, seria melhor que não a tivesse.

Mas era uma desistência nula, sem ação. Não desejava senão permanecer ali, quieta, acompanhando aquela vida silenciosa por fora, mas agitada por dentro. Ela conhecia-lhe todos os movimentos, a menor expressão do rosto, o olhar, todos os medos, as angústias, as frustrações, as faltas. Ausências e Necessidades. Desta forma, justificava-lhe o egoísmo, quem sabe? Então, ela permanecia ali, recostada, ora sentada ao seu lado enquanto ele dormia protegido em seus sonhos ou agitado em seus pesadelos, ora sentada a sua frente durante as refeições acres e silenciosas, ora deitada ao seu lado, apartada por um silêncio isolado e profundo. Mas estava ali presente em sua travessia do entresser, essa zona de viver entre o real e o possível, entre o mundo e a restante vida. Tentava meditar, mas em suas meditações não existia o Eu, somente o Outro. Fixava-se naquele que tinha sido um dia seu marido, um homem admirável, surpreendente, apaixonado por tudo o que fazia. Ele era assim, entregava-se intensamente e as coisas mais simples transformavam-se em um grande acontecimento. Aprendera amar aquele homem de modo incondicional, e por isso passou a justificar-lhe as faltas, as constantes alterações de humor, o desafeto, as ironias, a frieza e tudo o mais que chegou depois.

Fugindo à realidade, tal como Sinhá Vitória passou a olhar o céu pela janela, a perscrutar a lua, a estudar o movimento das aves que retornavam em bando, ao entardecer para buscar abrigo nas árvores, passou a resmungar por melhores, dias quem sabe? A personagem era a sua própria extensão. Um dia pegaria um novo rumo.

No concreto mesmo do tempo, precisava de uma cama nova, onde acalentasse durante o sono seu corpo cansado, sua mente fatigada e por meio dos sonhos, libertasse a alma para temporariamente habitar outros espaços e novos tempos.

Reinventar aquele cotidiano de tensão e opressão para dar vazão a uma alma liberta, passou a ser uma das estratégia para tornar a realidade suportável, enganando a existência e o relógio.

Kaminski
Enviado por Kaminski em 25/03/2012
Código do texto: T3575429
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