A última sessão de histórias
- Pai, conte uma história!
A última vez que o casal de filhos fez esse pedido foi durante um blecaute. Mas tão logo voltou a luz, a menina ligou-se num programa de televisão e o menino voltou ao vídeo game. E o pai ficou ali no meio da história que começara a improvisar.
Outra vez que o filho voltou a pedir para contar uma história ele deu a desculpa do cansaço. Sabia que não estava sendo descortês mas ainda não refletira o que estava se passando.
Outra noite, passados dias, talvez semanas, quando voltou a faltar energia o mesmo filho voltou com o mesmo pedido, e novamente o pai saiu pela tangente. E assim agia porque não via mais entusiasmo no pedido.
Foi então que, parando para pensar, chegou a comovente conclusão de que o tempo passara e suas crianças haviam crescido!
Lembrou-se então com nostalgia a emoção que causava aos filhos contando histórias. Embebidos pelas fantasias e sonhos próprios da infância, da puerícia - mundos encantados, animais falantes, fadas, gnomos, príncipes e princesas, cavaleiros andantes, bruxas, dragões e todos os personagens daquelas histórias que eram atentamente ouvidas, com a respiração suspensa, aumentando o silêncio para melhor sorvê-las.
O cansaço da labuta cotidiana não permitia ao pai ser fiel ao enredo original. Mas quem ligava para isso? E assim as mais incríveis parcerias eram formadas, desencontrando-se épocas, nacionalidades e estilos. Monteiro Lobato com Hesse, Verne com Malba Tahan, Forsyth com Tolstoi, Esopo com Asimov, Poe com Amado, Verne, Ágata, Andersen. Tudo era possível. Mitologia greco-romana com as lendas amazônidas, quando o Curupira fazia troças de Hércules, o Saci ajudava Teseu e a Iara visitava as Nereidas no mar Egeu. E seguiam-se outras parcerias e adaptações. Noites e mais noites. Pai, conte uma história!
Esgotado o repertório vieram as criações, influenciadas nessa miscelânea de autores, que só terminavam quando as crianças eram vencidas pelo sono. Mas às vezes as histórias eram concluídas na noite seguinte ou quando houvesse oportunidade. E assim surgiram alguns personagens criados pelo pai, como o Gerdato Macambeira e o cavalo Estrelinha. E, outros mais, de nomes esquisitos que mais tarde foram substituídos pelo Hight Figter, o Rambo, as Tartarugas Ninjas, o Indiana Jones, os Guns Roses e outros.
As crianças foram crescendo e passaram a interessar-se mais pelos vídeos, as brincadeiras com colegas, os patins, escola. E os velhos heróis foram se distanciando da memória e deixados de lado como filmes velhos em prateleiras empoeiradas a medida que o interesse e a emoção diminuíam. Aqui, acolá: pai, conte uma história! Mas já não era a mesma coisa. Provavelmente buscavam sentir a mesma emoção que guardavam na lembrança, mas as histórias já não surtiam o mesmo efeito.
Percebendo a passagem de suas crianças para a adolescência o pai agora desvia de assunto. Chegou a tentar algumas vezes, mas verificou que outras emoções e outros heróis suplantaram aquelas histórias fantásticas que foram absorvidas com sofreguidão anos atrás.
Ainda hoje, aqui e acolá, provavelmente movidos pela saudade, pela nostalgia daqueles tempos de fantasia, ainda insistem: pai, conte uma história!
Mas o pai desconversa e os manda estudar ou ler um livro.
Um dia esse pedido cairá completamente no esquecimento e se perderá no tempo, distanciando-se junto com aquelas noites que não voltam mais. A realidade é outra. A adolescência trouxe outros interesses e aquelas histórias já não cabem mais. Soariam patéticas e sem graça. Mas a verdade é que valeram e tiveram sua importância fazendo parte de um ciclo como os circos mambembes, as matinês dos cinemas e as mesmas histórias que fizeram seus pais vibrar quando também crianças.
(inscrito para concorrer, sem sucesso, na década de 90, ao V Concurso de Contos da Região Norte).