Lembranças finais
Foram tantas coisas que desfilaram em sua memória naquele momento em que estava deitado na maca esperando socorro médico. Achava que já tinha morrido. Mesmo que ouvisse o que falavam, mesmo que visse as lágrimas de pessoas queridas próximas a seu corpo, pedidos sussurrados junto aos seus ouvidos encorajando-o a resistir, que tivesse esperança, achava que não escaparia daquela. Não sentia seu corpo. Queria mover suas mãos, seus pés e não conseguia. Nem ao menos fechar os olhos. Quem dera que alguém fechasse seus olhos, pois a claridade o incomodava. Mas não podia falar. Lembrou-se de uma prece dita quando era menino e assim, procurou imaginar que estava num quarto escuro, sozinho, ajoelhado a pedir aos céus que lhe dessem a oportunidade de sair daquela que acreditava impossível. Pensou em Deus, no Criador de todas as coisas e agradeceu o que conseguira na vida. Sempre dissera que era feliz. E fora! Pensou na mãe, no pai, nos irmãos, nos amigos e também no amigo especial. Quem cuidaria dele? Imaginou que ele iria espera-lo infindamente até morrer! Falava para si que seu amigo não entenderia o que se passou, apenas a ausência do amigo que o levava para passear, que lhe dava banho, que lhe afagava a cabeça, conversava quando chegava e deixava que lhe lambesse o rosto. Poucos da casa faziam isso. Lembrou que ele não lhe fora nem um pouco amistoso quando chegou já crescido em casa, mas com o tempo todo o apego foi transferido para ele. E se tornaram amigos, tolerantes, amáveis. E viveram tantos momentos felizes. E agora ele ficaria esperando-o. Se pudesse voltaria para busca-lo e morrerem juntos, lado a lado. Mas como isso não pudesse acontecer que então lhe falassem que ele não viria mais, mesmo que ele não entendesse. Talvez entendesse, nunca ninguém soube da capacidade dos bichos. Que dessem seus pertences para ele cheirar e cuidassem bem de seu amigo. Era o que ele mais queria, mas sem poder pedir para que realizassem o que desejava em suas lembranças finais.
Porto de Moz (PA), 10/11/02