CONFISSÃO
CONTO - CONFISSÃO
(Zenilton Silva Júnior.)
Mário chegou tarde do trabalho, como fazia todas as noites. Eram quase onze e meia quando ele fechou a porta do apartamento, jogou a chave do carro , carteira e outros pertences na mesa de vidro, tirou os sapatos e preparou sua costumeira dose de uísque para relaxar do estresse diário. Deitou no sofá, ligou a televisão e ficou assistindo o noticiário, mexendo o gelo do uísque com o dedo.
Ele trabalhava como supervisor em uma grande loja de calçados no maior shopping da cidade. O expediente era das catorze às dez da noite, na teoria. Na prática, tinha que chegar ao meio dia para preparar detalhes do trabalho e costumava sair às onze da noite, resolvendo outras pontas soltas produzidas durante o dia. Odiava o trabalho. Odiava ter que aturar as reclamações de madames. Odiava o salário mirrado que ganhava. Detestava ter que resolver problemas causados por vendedores. Definitivamente, não era o emprego dos seus sonhos. Sempre pensava em largar tudo e arranjar algo melhor. Mas que outras opções poderia haver para alguém que largou o colegial no segundo ano? Sua namorada já estava pensando se ele valia a pena e sua mãe o atormentava pedindo para que ele mudasse de vida. A situação já estava chegando ao limite.
Adormecera no sofá, perturbado pela frustração com o emprego e os problemas familiares. Eram duas e trinta da manhã no rádio-relógio quando ele foi acordado pelo barulho ensurdecedor de um trovão. Havia derrubado o copo de uísque no tapete ao lado do sofá quando adormecera e foi tomado de um súbito mal-humor. Uma enxaqueca lhe martelava a cabeça. O telefone tocou alto, intensificando a dor.
- Alô - disse ele, imaginando quem diabos poderia ser àquela hora.
- Como vai garotão!! - respondeu a voz do outro lado da linha.
Mário realmente não estava no clima para brincadeiras e foi direto ao ponto:
- Quem fala?
- Não tá reconhecendo a voz? É o teu velho pai falando, filho.
Era o fim da paciência de Mário. O pai dele havia morrido há oito anos e a enxaqueca só piorava. Entretanto, ele foi cordial...
- Escute, amigo, deve ter havido algum engano...
- Não houve engano algum, campeão...
"Campeão". Aquela palavra havia mexido com Mário. Aquele era o apelido que o pai lhe dera ainda muito pequeno. Ainda assim, poderia ser uma coincidência...
- Tenho certeza de que o senhor fala com a pessoa errada. Meu pai...
- Morreu faz oito anos, sei disso...
Essa quase fez Mário ficar sóbrio. Ele emudeceu ao fone.
- É difícil poder falar com alguém do lado de cá.
O supervisor continuou mudo.
- Você ainda está aí? Não tenho muito tempo e...
- Sim!! Sim!! Pode falar...
- Ótimo, filho. Como disse, não tenho muito tempo e sei que você só vai falar comigo se eu responder algumas perguntas pessoais. Então, vamos lá.
Mário pensou por alguns momentos, mas finalmente resolveu participar do jogo do homem:
- Qual o meu nome completo?
- Mário Ruiz Nicolau da Silva.
- Cor da pele?
- Branco.
- Cor favorita?
- Azul.
- Filme favorito?
- Apocalipse Now.
Mário ficou estupefato! O sujeito sabia coisas que apenas seu valho pai sabia. Não havia como alguém saber daquilo tudo em nenhum outro lugar. Ele não era adepto de redes sociais e outras coisas do gênero.
- E sei da conversa que tivemos na praia quando você completou dezoito anos...
Aquilo fez Mário chorar. Ninguém sabia daquela conversa. Nem mesmo sua mãe. Foi a conversa mais madura que já tivera com o pai. Quando ele se tornou um homem, recebeu conselhos duradouros que permanecem até hoje.
- Pai...
- Sim. Sou eu filho.
Mário sentia uma mistura de ódio e amor. Estava feliz por ouvir a voz do pai novamente. Ao mesmo tempo, ficou furioso por ele ter partido tão cedo.
- Por que você me deixou tão cedo? Apenas um ano depois de eu fazer dezenove anos? Depois daquela conversa inspiradora que me fez amá-lo ainda mais? Tem ideia de como foi difícil aguentar até aqui? Apenas eu e mamãe?
- Você saiu-se muito bem até agora, filho. Com algumas pequenas ressalvas...
- Bem? Sou um solitário. Odeio meu emprego. Eu não tenho uma família...
- É justamente sobre isso que desejo lhe falar...
- Não! Eu vou falar. Você não tinha o direito de partir tão cedo assim - disse Mário, pulando do sofá exaltado. - Eu mereço uma explicação e...
- Você vai apenas ouvir, filho. Eu não tenho muito tempo. Deve esquecer tudo de negativo que se passou entre nós. Não deve viver sua vida baseado na minha perda. O que aconteceu foi o destino. Estava escrito. E nenhum de nós poderia mudá-lo. Mesmo que quisesse. Agora, deve olhar para a frente. Há pessoas que o amam. Assim como eu te amo. Você deve começar sua família e esquecer toda a mágoa. É capaz disso. Sei que é capaz. Quero que se lembre dos bons momentos de pai e filho que tivemos. Quero que se lembre de que eu te amo...
Uma relâmpago súbito caiu perto do apartamento de Mário, desligando o telefone. Estranhamente, ele sentiu-se mal e desmaiou. Acordou novamente no sofá, na mesma posição em que dormiu. A conversa com o pai ainda estava na sua mente. Sentou-se e chorou copiosamente. Enxugou as lágrimas e sentiu-se melhor. Pela primeira vez em muitos anos, a vida fazia sentido. Precisava seguir em frente. Agora tinha esperança no futuro.