PREGUIÇA
"O desejo do preguiçoso o mata; porque as suas mãos recusam-se a trabalhar." Provérbios 21;25
CONTO - PREGUIÇA
Paulo era um típico adolescente: usava jeans, camiseta de rock, tinha espinhas protuberantes e um completo descaso por todo e qualquer tipo de autoridade. Era magro. Muito magro, aliás. Na escola, onde cursava o primeiro ano do ensino médio, era conhecido pelo apelido carinhoso de "palito". Tinha cabelos e olhos castanhos e usava uma franja desajeitada no rosto, tipo "emo". Curtia bandas de metal pesado e era muito desleixado e sujo. Tomava um banho por dia, quando muito. O fato mais marcante sobre ele era que gostava de procrastinar. Não importava a tarefa, sempre deixava tudo para o último momento. Quando os pais pediam que fizesse algo, ignorava totalmente. Isso já causou uma série de brigas e sermões e fez com que os pais considerassem seriamente o envio do jovem para um colégio interno.
Mas ele não ligava muito. Sequer ligava para alguma coisa. Tudo o que lhe interessava na vida eram sua televisão, videogames, cerveja e revistas pornôs. Ele até arranjaria uma namorada, se não fosse demasiado preguiçoso para sair e procurar por uma. Mas isso estava fora de cogitação. Paulo saía pouco. Apenas nas raras vezes em que aparecia no colégio, ou quando precisava comprar cerveja. Era um dos caras mais fáceis para se encontrar em casa. Sempre estava largado no sofá da sala, bebendo e assistindo televisão.
E foi numa bela tarde que tudo aconteceu. Paulo havia comprado duas caixas de cerveja. Bebia como um louco e tinha grande resistência ao álcool. Já tinha colocado todas na geladeira e havia bebido seis latinhas, degustando salgadinhos. Assistia filmes de ação na tv, daqueles bem descerebrados que descansam a mente, onde brutamontes violentos assassinam todo mundo sem sofrer um arranhão sequer. Estava deitado em uma confortável poltrona preta de couro. Sua mente já estava atingindo um estágio avançado de dormência quando o telefone tocou...
- Alô - disse Paulo, depois de um esforço descomunal para pegar o fone.
- Filho?
- Oi, pai - Paulo falou desanimado. Achava o pai um chato de galochas. Um xereta que falava o tempo todo para ele estudar, arranjar um emprego ou fazer algo de útil.
- Pensei que estivesse na escola...
O jovem pensou numa desculpa rápida: - Atividade extra-classe, pai. Eu não estava a fim de ir.
- Bem, vá amanhã. Sua mãe e eu estamos muito preocupados com seu desempenho escolar. Suas notas vem caindo muito e eu, bem, nós estamos pensando seriamente em matricular você em um colégio interno.
Paulo não dava a mínima para o que o pai pensava, mas nunca iria para um colégio interno, nem que para isso tivesse que fugir de casa.
- Tudo bem, "papai" - disse ele sarcasticamente, e desligou o telefone.
Colocou o aparelho perto da poltrona e voltou a se deliciar com o espetáculo de violência gratuita exibido na tv. Voltou a pensar no pai e lembrou-se de como o achava velho e carrancudo. Era engenheiro por formação e havia trabalhado por quase trinta anos em uma grande multinacional, estando prestes a se aposentar. Era um coitado grisalho que não tinha coragem de ir contra o "sistema". Paulo pensava em si mesmo como algum tipo de herói revolucionário, ainda que suas revoluções não passassem da sala de estar.
Abriu mais uma cerveja e beliscou outro salgado. As explosões e mortes do filme que assistia o deleitavam. Havia uma espécie de prazer ao admirar o caos, comum a todas pessoas. Era aquela curiosidade mórbida que faz os motoristas e curiosos pararem para ver o cadáver de alguém no meio da rua. A adrenalina que sentimos ao ver um corpo ensanguentado no chão, e a alegria que sentimos por não ter acontecido conosco.
Vinte minutos depois o telefone tocou de novo.
- Paulinho? É Bela...
- Oi, "Isabela" - respondeu Paulo. O tom sarcástico era a sua marca. Ele era o único que não chamava a colega patricinha da escola de "Bela". Talvez fosse por isso que ela estivesse ligando direto para sair com ele.
- Eu estive pensando... É feriado na sexta e a gente poderia pegar um cineminha, que tal? - perguntou ansiosa.
- Você sabe que eu não gosto de sair, "Isabela" - falou, desinteressado.
- Ah, por favor, Paulinho? Eu estou louquinha para ver essa comédia romântica...
"Você está louquinha por mim" - pensou o jovem. Paulo era um garoto bonito. Era por puro desleixo que essa beleza ficasse soterrada debaixo do cabelo mal cuidado e das muitas espinhas. Além disso, suas constantes faltas no colégio davam-lhe uma aura involuntária de "menino mau", o que as meninas adoravam.
- Talvez eu esteja livre na sexta - disse, dando uma chance à Bela.
- Legal! - Isabela estava flutuando de tanta felicidade. - Meu motorista vai pegar você às oito horas, ok? Beijos...
"Bela" era uma linda loira de olhos azul-turquesa. Magra e atlética, era também rica. Presidia o Clube de Moda da escola. Era o sonho de todos os garotos. Alguns já haviam percebido o desejo dela por Paulo e se perguntavam porque ele não aproveitava. A situação já estava começando a incomodar. Por isso ele havia aceitado o convite. Ele poderia tolerar a fama de preguiçoso, devidamente merecida. Mas ser conhecido como o "gay" da escola já era demais.
Pegou o telefone e ligou para Aron, um colega do prédio onde morava, mas ele não estava em casa. Pensava em bater um papo para descontrair e passar o tempo, pois estava cansado de sanguinolência. Paulo achava que ele estivesse em um bar enchendo a cara. Aron era um tremendo boêmio. Uma pessoa da noite. Passava noites em claro embriagando-se e azarando as garotas. Era também um poeta amador e prolixo. Já havia publicado onze livros, todos coletâneas de poemas. Embora Paulo achasse que tudo o que ele escrevesse fosse porcaria.
Decidiu mudar o filme e colocou "Ghandi", acendeu um baseado e se enterrou na poltrona.
Concentrou-se no filme. Observou os "hindus" de hollywood passarem de um lado a outro da tela e sorriu ao perceber o quanto kitsch era a cena. O humor foi acentuado pelo efeito anestesiante da canabis, que provocava risos sem motivo aparente, e ele foi afundando cada vez mais, sorrindo feito um bobo. O mundo parecia cada vez mais lento, e Paulo mergulhou num caleidoscópio de cores e sons.
Lembrou-se de como sua família odiava o fato de ele fumar maconha. Coisa que ele admitia abertamente, alegando que o "relaxava". Nem as surras que levou do pai enfurecido o demoveram do vício. Aliás, sempre que apanhava, a primeira coisa que fazia em seguida era acender outro baseado, espalhando um fedor insuportável pela casa e obrigando os pais a saírem para tomar ar fresco. Mesmo depois de várias buscas diárias pelo apartamento, sempre havia um baseado extra enfiado em algum lugar, pronto para ser aceso. Tudo isso também precipitou a ideia do colégio interno.
O telefone tocou novamente. Era o pai de Paulo. O jovem percebeu o telefone tocar, mas não poderia atender nem se quisesse, pois estava de tal forma anestesiado pela maconha que levaria algumas horas até que conseguisse levantar o braço. Em vez disso, ele preferia se concentrar nos hindus, que rezavam e faziam sua "resistência pacífica".
O interfone também começou a tocar freneticamente. Para Paulo, era um zumbido incômodo e sem sentido no fundo do filme. E não deu atenção a isso. Tudo o que desejava naquele momento era apreciar o efeito e aproveitar "Ghandi".
Novamente o telefone tocou. Dessa vez era a mãe de Paulo, que desejava falar ardentemente com o filho. Ele já estava pensando em atirar um sapato no aparelho irritante, que zumbia sem parar em cima da mesinha de centro, feita de vidro colorido.
Agora era a porta da sala que fazia um estrondo. Parecia que alguém tentava derrubá-la com fortes golpes. Paulo deu um suspiro. Finalmente conseguiram interromper seu lazer. Com dificuldade e lentamente, apertou o botão de pausa no controle remoto do vídeo e levantou-se para ir até a porta. Ao abrir, percebeu que não havia ninguém no corredor, mas as portas dos apartamentos estavam todas abertas e havia vários utensílios de cozinha e objetos pessoais espalhados no hall de entrada. Ouviu gritos desesperados escada abaixo.
"Loucos!" - pensou ele, fechando a porta.
Sentou-se novamente para assistir ao filme e sua atenção foi dirigida para a tela do seu computador pessoal, no qual pipocavam mensagens instantâneas no correio eletrônico e em seus vários perfis em redes sociais.
"Fogo!" - dizia uma delas.
"Sai daí!"
"Saia do prédio, Paulo!"
Aquilo o despertou parcialmente. Abriu a janela que dava para a avenida em que morava e quase foi chamuscado por uma labareda. O fogo consumia o prédio e ele esperou um pouco até que pudesse colocar a cabeça do lado de fora. Quando conseguiu, viu carros dos bombeiros lá embaixo, tentando apagar o fogo que se alastrava rapidamente pelo edifício. Correu para as escadas de emergência, mas já estavam tomadas por chamas e fumaça. Voltou ao apartamento e fechou a porta, ofegante por causa da fumaça que lhe queimava os pulmões e invadia o lugar. Então aquele cheiro que sentia há horas não era um vizinho chato fazendo churrasco! E as chamadas do telefone eram seus amigos e parentes tentando avisá-lo.
Tentou pensar, mas o raciocínio estava turvado pela canabis. Não havia saída. O fogo já se alastrara por todo o prédio. Sua única chance eram os bombeiros alcançá-lo a tempo. Mas pelo que viu, eles estavam bloqueados pelo fogo. Ficou olhando pela janela o movimento incessante das pessoas lá embaixo: repórteres cobrindo o fato, policiais tentando conter a multidão de curiosos que se aglomerava na rua e moradores que conseguiram sair e observavam seus pertences serem transformados em cinzas.
Paulo não passou muito tempo vendo todo aquele inferno. Sua mente estava cansada e sonolenta e não havia muito o que ele pudesse fazer. Voltou à poltrona, acendeu outro baseado e pressionou o "play" no controle do vídeo. As chamas e o calor que invadiam o apartamento, de alguma forma, davam aos hindus do filme "Ghandi" um tom de papéis amarelados e em decomposição.
FIM