TRAGÉDIA CLÁSSICA NORDESTINA

RUBEMAR ALVES

Às vezes vamos a SHAKESPEARE quando se trata de amor impossível.

Romeu e Julieta.

Mas estes morreram juntos e viraram mito. Nossos heróis de hoje ainda estão... discutindo.

Foi assim.

ELE e ELA apaixonaram-se perdidamente, aquela loucura total e fatal, esquecendo que no Nordeste do nosso país existem famílias centenariamente inimigas, nem se sabe mais o motivo, mas são, um querendo comer o ‘fígado’ do outro - nem precisa tempero ou molho acebolado...

No meu passado (não parece, mas já fui criança um dia!), convivi na escola primária com MENINO e MENINA, cada qual pertencente a uma destas famílias (não escrevi ‘famiglie’ porque não eram italianos...) - amicíssimos, viviam de mãos dadas ou UM trazendo lanche para o OUTRO: pão com carne de sol – mordiam ao mesmo tempo o mesmo sanduíche enorme, beiju de tapioca ou queijo de coalho – UM colocava pedacinhos na boca do OUTRO; suquinhos de umbu, pitomba, ciriguela... – UM copo e DOIS canudos...

“Inimigos só depois dos quinze anos – explicavam para todo mundo –, quando a gente virar adulto”. Na noite de reis, dançavam ciranda de mãos dadas. (Leitor entendeu? Pois eu não.........)

Assim, aconteceu com nossos personagens. Amor até uma certa idade. Novinhos, virgens os dois, ELE iria fazer ainda 15 anos na semana seguinte, mas aí mergulharam num rio, transaram e ELA ficou grávida. Não estavam (temporariamente!) nem aí para opiniões familiares pois se amavam e pronto! Não estavam? Vamos ver...

Os sonhos de uma noite de verão logo se acabam e a tempestade aparece.

Pelo sim pelo não, as famílias conseguiram separá-los.

Do nada, ELE começou a sentir uma certa inexplicável repulsa, raspou o nome dela gravado numa árvore. Em contradição, feliz porque ia ser pai do filho de uma agora... inimiga.

A barriga ia crescendo, alisada pela mocinha três vezes ao dia: todas as manhãs, tardes e noites. Aí, poucos dias antes da criança nascer, ELA completou 15 anos. Não que estivesse ansiosa com as proximidades do parto – era mesmo raiva dele. Porque PAI adolescente é uma festa para amigos, todo mundo elogia a macheza, a audácia. E a MÃE? Dores. Depois mamadeiras e fraldas na madrugada...

Nasceu! Era uma quinta-feira...

“Mininu homi!” - alguém deu a notícia ao pai.

“Vai ser guerreiro valente e caçador como eu!”

Porque muitas vezes ELE fugia da casa luxuosa para o que chamava “floresta” e voltava trazendo a megera domada, como intitulava uma simples gambá.

Ambas as famílias tinham muito dinheiro e resolveram mandá-los estudar fora do país.

Muito barulho por coisa nenhuma:

ELA iria para Verona, Itália (pesquisou: produção artesanal de móveis clássicos, e extração de granito e mármore – ideal para seus sonhos de futura decoradora);

ELE para Londres, Inglaterra (empolgou-se com a University of London, fundada em 1836 - caça da raposa como tentação, mas agora proibida por lei).

Aí AMBOS lembraram que... tinham um FILHO!

Agora inimigos declarados... e o inocente bebê?

Desistiram de se fantasiarem de europeus - seria a comédia dos erros.

Todos se reuniram, as tradicionais peixeiras da valentia acolhidas no centro da grande mesa redonda em ritual de trégua (paz nunca), e os mais velhos decidiram – “seis meses com a mãe, seis meses com o pai”.

E assim foi feito.

O tempo correndo implacável.

O FILHO era muito bonito e em conseqüência narcisista, sensual e charmoso. Olhos verdes de gato, que desde cedo atraíam e repeliam todo mundo ao mesmo tempo.

Dualidade.

Por seis meses roupas quase femininas (porque a MÃE, doce e benevolente, queria uma menina toda delicadinha) - calça ou camisa jeans, ela ainda permitia, mas fazia questão de camisa bem colorida, desenhos de flores enormes, muitas pulseiras douradas... ELE morria de vergonha. Ah, e tentou passar para o FILHO a frustrada vocação: queria que estudasse decoração de interiores. O cara não fazia nada que prestasse – rede na cozinha, forno de barro na varanda. Ah, seis meses comendo peixe de rio!

Por seis meses roupas de couro (porque o PAI, sério e solitário, queria um menino todo brutalizado) - gibão (paletó de couro) e chapéu. Até que ELE participava com certo gosto das vaquejadas, em que os rapazes, montados a cavalo, perseguiam o boi até derrubá-lo - nascera macho, ué! Ah, seis meses comendo caça da floresta!

Voltemos a SHAKESPEARE novamente:

“Ser (ele ou ela) ou não ser, sem agora questão...”

Certa manhã de muito calor, cansados das roupas de couro, resolveram tomar banho inteiramente nus no riacho que cortava a fazenda do PAI. No que penduraram as roupas num chamado ‘pé-de-pau’ (qualquer árvore), viram uma colméia e a tentação foi imediata. Já levavam queijo de coalho numa sacola... As abelhas os atacaram violentamente, menos ao PAI e mais ao FILHO, carne jovem, que caiu como se estivesse morto. Sorte é que ia passando um velho tido por feiticeiro – fez umas rezas, olhou para o céu, tomou o rapaz nos braços como se fosse um bebezinho, ‘ressuscitou’ o agora afilhado de fé e o envolveu em folhas de bananeiras. Cura demorada, porém certeira. PAI e FILHO tomaram horror de mel!

MÃE acusou pai de desleixo, PAI acusou mãe de muita paparicação, tratava o FILHO com mimos em excesso – não era uma menina!

Quem já aturava a doideira desde o nascimento, um dia se encheu.

“Desgraça do pote é o caminho do riacho” – provérbio nordestino.

Na presença de PAI e de MÃE, mergulhou e sumiu. Encanto quebrado!

AMBOS passaram a se acusar novamente, pela morte ou fuga do FILHO.

Mistério nada! Tomou secretamente o rumo do Sul. Levou como amuleto uma foto do padrinho-feiticeiro.

Nem decorador nem caçador, mas já arrumara emprego pela Internet em São Paulo, terra de liberdade sem tradição de guerra absurda, raiz inexplicável...

De dia, modela objetos de barro, especialmente cavalos e bois, homenageando o PAI, e à noite estuda teatro de comédia mambembe (palhaço nas roupas coloridas que a MÃE tanto aprecia) e outras artes circenses, em especial trapézio, mergulhando no espaço, livre como um pássaro: sem qualquer trauma.

F I M