Violência doméstica: A agonia de denunciar...
À noite em sua cama, lendo “Crônicas de uma morte anunciada” de Gabriel Garcia Márquez, ela quase consegue esquecer os fatos dolorosos do dia. Havia ido, finalmente, à Delegacia da mulher. Resolvera denunciar o ex-marido à Justiça, com seis anos de atraso. Agora parece tão simples. Como pôde evitar isso por tanto tempo? Os dias e noites que sofreu pensando em fazer o que sabia que era o certo. (Sabia?) Os conflitos, as agressões físicas e verbais, os medos aterrorizantes, as dúvidas, os adiamentos, as promessas de mudança não cumpridas, as torturas psicológicas, as ameaças, os anos roubados, tudo parece agora tão distante, tão sem sentido!
A decisão foi precipitada pelo incidente da noite anterior: Mais uma ameaça. Dessa vez ele tinha ido longe demais. Longe demais? Mas há mais de seis anos que ele foi longe demais! Por que só agora, livre dele, divorciada, independente, tivera coragem de fazer isso? Talvez só porque agora sinta que não tem mais nada a perder. É quase uma atitude suicida. Nada mais importa. Percebe, pela última ameaça sofrida, que não importa o que faça nem o quanto se distancie dele, ele sempre estará lá como uma sombra que às vezes cria forma, uma forma ameaçadora. Essa sombra a faz descontrolar-se, perder as forças, ficar vulnerável como quando era subjugada por ele, sem esperança e sem forças para libertar-se. Cansada demais pelo dia cansativo que teve e sonolenta por causa dos remédios (começou, finalmente a fazer um tratamento psicológico, adiado por anos), começa assim a escrever em uma espécie de diário virtual. . Essa é a única forma de liberar o que sente e não surtar. Precisa lembrar-se. Quer registrar algo daquele dia para que, futuramente, quando estiver bem e feliz, possa lembrar-se do que passou e reconhecer o quanto é feliz em sua nova vida. Enxuga uma lágrima antiga e escreve:
Sinto-me estranha. Como se um peso grande demais tivesse saído de sobre mim. Mas mesmo assim não me sinto aliviada. Sinto-me fraca... vulnerável, como se estivesse presa à vida apenas por um fio. O que mais me revolta é ter "permitido" que ele conseguisse me deixar assim, que pudesse ainda me atingir, me fazer mal ainda agora... Justo agora que estou tão bem, tão feliz! Estou reaprendendo a viver, sentir prazer nas coisas simples, na poesia, no amor... É tão injusto! O choro vem a cada minuto. Tento retê-lo quando tem gente por perto. Mas nem sempre consigo segurá-lo. Hoje chorei várias vezes na presença de pessoas que eu não queria. Queria um abraço. Queria chorar nos braços de todos que amo. Apenas a psicóloga me abraçou hoje. Foi um abraço longo e sincero. Gostei muito da forma como ela tratou a consulta. Muito profissional, mas também muito humana. Conseguiu demonstrar um interesse real e espontâneo. Raro isso. Conseguiu, em minutos, destruir meu preconceito contra toda a classe dos psicólogos. Considerava-os gente fria, desumana, que tratavam os pacientes como ratos de laboratório, sem nenhuma distinção entre eles, como se cada um fosse apenas mais um caso, não um ser humano único e diferenciado.
Sei que estou evitando falar em detalhes. Sei também que não os esqueci. Desde as sete horas da noite de ontem que sofro. Sofro como se tivesse voltado ao passado, ao inferno em vida em que vivi por seis anos. E eu achava que estava bem. Sentia-me tão bem! Como pude recair nessa crise tão facilmente? Como fui me abalar tanto? Desde que ouvi aquele “Você vai ver o que vai te acontecer... vai ser pior pra você, estou só esperando você ir à justiça” que desmoronei. A crise nervosa foi tão imediata que não pude evitar perder o controle em pleno centro da cidade, cenário nada propício para um choro compulsivo tão doído. Sentei-me numa calçada, soluçando descontroladamente e sozinha. As pessoas passavam, olhavam curiosas, mas ninguém parou. Ninguém parou para perguntar o que houve, se eu estava bem, se precisava de auxílio para ir à polícia, ao hospital, para casa, para qualquer lugar. Ou ao menos para ficar perto, dizer uma palavra qualquer. Foi desolador. Percebi que estava só não apenas fisicamente. Estava sozinha na humanidade. As pessoas andam ocupadas demais, apressadas demais para ocupar-se de alguém. A dor do outro sempre pode esperar. Nossos negócios não. Lembrei-me de quantas vezes parei para falar com alguém que eu vi chorar nas ruas ou em qualquer lugar perto de mim. Foram muitas. Gostei de saber disso, pois agora estava do outro lado. E faltou alguém. Qualquer um serviria. Mal conseguia andar. Não conseguia parar de chorar. Pensei que fosse desabar ali mesmo, no meio da rua. Celular. Que bom que ele existe. Liguei pra minha mãe que, como sempre, me chama de volta à vida, como se tivesse destinada a me parir várias vezes, me salvando de tudo, me trazendo à vida nos piores momentos.
Já esta manhã, depois de sair da consulta com a psicóloga, fui à Delegacia da mulher. Mais choro e mais decepção. Frustração é o principal sentimento de quem procura a Delegacia da mulher para denunciar uma agressão doméstica. Para começar, o primeiro atendimento é feito por uma atendente, que se diz agente, mas trata a vítima que se fosse uma compradora no balcão. Munida de uma frieza calculada, desinteresse e falta de respeito pela dor que a vítima, naturalmente, está passando, ela fez as perguntas como se tivesse preenchendo um formulário qualquer. Sem dar explicações sobre como funciona o processo, dividindo-se entre as perguntas e a conversa ao celular, sem empatia alguma, pelo contrário; muitas vezes com grosseria e sendo irônica, ela age como se a vítima não estivesse suficientemmente ferida. O atendimento foi feito em uma recepção, logo depois da porta principal, movimentada, numa sala com várias saídas para outras salas, das quais entrava e saia gente a todo momento. As pessoas que entravam para testemunhao ou prestar depoimentos passavam por mim e ficavam olhando ou ouvindo parte da denúncia. Até a zeladora do local ouviu parte te minha denúncia, que devia ser sigilosa e num local com total privacidade. Um disparate! Além de toda burocracia e lentidão, o local que deveria ser uma proteção nada mais é do que uma estrutura deficiente e inviável, insegura para a vítima. Depois de questionar essas deficiências com a moça (que me olhou como se eu fosse um ET, fui levada para falar com um comissário de polícia. Esse, mais consciente e percebendo que eu conhecia os meus pretensos “direitos”, pediu desculpas pela falta de estrutura e lamentou-se por não poder fazer nada.
Isso me fez lembrar o livro “Crônicas de uma morte anunciada de Gabriel García Marquez. Por pensarem que um certo rapaz, amigo deles, tinha violado sua irmã, dois irmãos gêmeos decidem matá-lo. Mas no fundo, o que eles queriam mesmo era ser impedidos, por isso alardeiam aos quatro ventos que o matariam. A Cidade quase toda ficou sabendo e todos poderiam ter impedido a morte, mas ninguém o fez. Cada um usou uma desculpa diferente. Mas o que realmente ficou foi a culpa na consciência de cada um dos que poderiam ter evitado a morte anunciada e não o fizeram. Fico pensando (mas não com muito otimismo) em quando vai começar a doer a consciência desse País pelas mortes que poderia ter evitado... e não o fez.