Acordou com a cabeça latejando. Que horas seriam? Levantou-se e foi até o espelho. Mais uma vez dormiu chorando em meio aos soluços e lágrimas e agora via enormes olheiras refletidas. Em casa, silêncio; as crianças com o pai. Que dia era mesmo? Domingo e o sol já estava alto e quente.
Odiava domingos. Já havia comentado isso na análise e o terapeuta limitou-se a dizer que era normal, a maioria das pessoas era assim. Houve um tempo que domingo era o melhor dia da semana: piscina e almoço no clube, a família reunida para o sorvete à tarde. E agora, o que era sua família? Ela e suas três crianças, que passavam um fim de semana por mês com o pai. Elas o amavam, mas ele parecia pouco se importar com isso; estava mais ocupado em agradar a nova namorada. Quinze anos de relacionamento acabados assim, com uma incontrolável paixão pela nova secretária. Quinze anos de arrependimento, ele lhe dissera; não queria e talvez nem amasse mais os filhos... Mas eles o amavam muito. E sentiam sua falta.
Sua cabeça latejava e seu corpo doía. Já não aguentava mais chorar. Desde que ele se fora, há três meses, sua rotina podia ser resumida a lágrimas. A análise a ajudava, os remédios davam algum ânimo, mas a verdade é que não via muito sentido nas coisas. Por exemplo, será que seus filhos a amavam? Tinha suas dúvidas. Sarita, a mais velha, mal falava com ela e as trocas de palavras se tornaram ainda mais escassas depois da separação. Ouviu-a dizer a uma amiga que não entendia como o pai havia conseguido viver tantos anos com uma mulher como a mãe. Isso doeu e ardeu no peito. Mas o terapeuta lhe dissera que é normal que adolescentes culpem um dos pais pela separação, afinal se acham melhores que eles. Katiucia, a do meio, não enxergava outra coisa senão livros e computador. Trocava o dia pela noite, principalmente nos fins de semana e não falava com ninguém. O terapeuta também lhe dissera que era muito comum que crianças se sentissem responsáveis e culpadas pela separação dos pais e esse comportamento era tão somente reflexo da vergonha e do desconforto que ela sentia. Rodrigo, o caçula, do alto de seus sete anos, se achava o homem da casa desde que o pai os deixara. E tinha especial prazer em dar ordens e más respostas à mãe. Tão novo e já um tirano. O terapeuta lhe dissera que nessa idade os meninos começam a competir com o pai, mas para Rodrigo o caminho estava livre. Seu comportamento, portanto, era normal. Será que só ela achava que estava tudo errado?
Sentia algum alívio no trabalho, mas nos últimos tempos estava difícil se concentrar. Era executiva daquela empresa há anos e um convite como o que lhe fizera Werner Ülbrich poderia ser uma saída. Assumir um cargo na sede da empresa em Frankfurt a perturbava, mas por outro lado, uma decisão mais incisiva pudesse colocar tudo em seus devidos lugares. A única exigência da empresa é que ela fosse só, pois as novas responsabilidades incluiriam viagens a todas as filiais espalhadas pelo mundo e a família, principalmente filhos pequenos, atrapalhava.
Seu estômago doía, sentiu um pouco de fome. Abriu a geladeira e pegou a jarra d’água. Era melhor não comer nada e a água, purificadora, poderia ajudar a aliviar a sensação de fome. Foi até a biblioteca. A estante de livros que ele mesmo desenhara, as luminárias que escolheram juntos, as duas poltronas escarlates, uma de frente para a outra, estava tudo no lugar de sempre, como que conspirando junto com sua tristeza, aumentando a sensação de melancolia daquele domingo. Foi até o gavetão e abriu a pasta de documentos. Lá estava a certidão de casamento que dali há alguns meses teria os carimbos da separação judicial e depois do divórcio. Ou não. Tudo dependeria da decisão incisiva.
Abriu o álbum de casamento e lua-de-mel. Foram dias tão felizes! Eles se amavam. Como será que o amor acaba? Ela não sabia, porque ainda o amava, seu amor não tinha se acabado... Os pais dele bem que tentaram ajudar a manter o casamento, mas ele estava irredutível. Ela não movera uma palha: não o pedira em casamento e também não iria pedir o divórcio. Foi tudo ele. Ela mesma só tinha que decidir sim ou não. No casamento, decidira sim. No divórcio, decidira não. Mas como ele já havia decidido que sim, não se importou com o não dela e foi-se.
Olhou em volta. A foto sobre a escrivaninha denunciava um dia feliz em família. Tirada seis meses antes, era prova de que não havia monotonia na vida deles. Gostavam de atividades ao ar livre e as crianças cresceram acostumadas com o mato, bichos e banhos de cachoeira, fogueira e noites de luar. Tudo isso se esvaiu de uma hora para outra e o futuro parecia obscuro. Reviu os álbuns das crianças, desde a gestação até o aniversário de um aninho. Reviu os álbuns de férias e lembrou-se de cada passeio, de cada sensação, de cada cheiro... Ah! Como doía a separação! Nunca mais estariam juntos novamente, desbravando novas trilhas, encontrando novos rumos. Agora apenas um rumo se apresentava.
Sentou-se à escrivaninha, pegou um papel e começou a escrever: “Meus filhos, tomei esta decisão para o bem de vocês, pois sei que preferem não estar comigo e não serei egoísta de impedir isso...” e escreveu, escreveu, escreveu três páginas. No fim, deixou recomendações: “A escola deve ser paga todos os dias cinco de cada mês. Seu pai deve estar atento às trocas de faixa no judô, pois o Rodrigo faz questão de sua presença e eu não vou avisá-lo, como fazia antes. Assim que Katiucia menstruar, deve ir ao ginecologista e ter orientação sexual adequada. Parece que ela terá uma TPM furiosa...”. Terminou com muitos beijos e amo vocês, colocou a enorme carta dentro de um envelope, endereçada aos filhos, e deixou-a sobre a mesa.
Que horas eram? Foi até o seu quarto, onze horas; estava na hora da dose de Racumin. Tomou duas colheres de sopa daquele pó azul. Era amargo e sentiu ânsia de vômito antes de engolir a última colher. Será que ela deveria ter comido alguma coisa antes? Em alguns minutos começou a sentir a boca espumar, seu corpo inteiro tremia e suava e uma dor forte na barriga quase a fez vomitar. Aquela dor não era nada perto da dor da separação; na verdade, aquela dor era um alívio e ela não poderia perder a dose do veneno no vômito. Contorceu-se e caiu no chão, a salivação intensa, uma sede incontrolável. Não tinha forças para ir atrás de água. Afinal, a decisão incisiva: era melhor partir, não para Frankfurt, mas para sempre. Não poderia ser um fardo para seus filhos e não suportava ver seu marido, seu companheiro de tantos anos viver feliz sem ela, como explicara nas três páginas da carta.
Odiava domingos. Já havia comentado isso na análise e o terapeuta limitou-se a dizer que era normal, a maioria das pessoas era assim. Houve um tempo que domingo era o melhor dia da semana: piscina e almoço no clube, a família reunida para o sorvete à tarde. E agora, o que era sua família? Ela e suas três crianças, que passavam um fim de semana por mês com o pai. Elas o amavam, mas ele parecia pouco se importar com isso; estava mais ocupado em agradar a nova namorada. Quinze anos de relacionamento acabados assim, com uma incontrolável paixão pela nova secretária. Quinze anos de arrependimento, ele lhe dissera; não queria e talvez nem amasse mais os filhos... Mas eles o amavam muito. E sentiam sua falta.
Sua cabeça latejava e seu corpo doía. Já não aguentava mais chorar. Desde que ele se fora, há três meses, sua rotina podia ser resumida a lágrimas. A análise a ajudava, os remédios davam algum ânimo, mas a verdade é que não via muito sentido nas coisas. Por exemplo, será que seus filhos a amavam? Tinha suas dúvidas. Sarita, a mais velha, mal falava com ela e as trocas de palavras se tornaram ainda mais escassas depois da separação. Ouviu-a dizer a uma amiga que não entendia como o pai havia conseguido viver tantos anos com uma mulher como a mãe. Isso doeu e ardeu no peito. Mas o terapeuta lhe dissera que é normal que adolescentes culpem um dos pais pela separação, afinal se acham melhores que eles. Katiucia, a do meio, não enxergava outra coisa senão livros e computador. Trocava o dia pela noite, principalmente nos fins de semana e não falava com ninguém. O terapeuta também lhe dissera que era muito comum que crianças se sentissem responsáveis e culpadas pela separação dos pais e esse comportamento era tão somente reflexo da vergonha e do desconforto que ela sentia. Rodrigo, o caçula, do alto de seus sete anos, se achava o homem da casa desde que o pai os deixara. E tinha especial prazer em dar ordens e más respostas à mãe. Tão novo e já um tirano. O terapeuta lhe dissera que nessa idade os meninos começam a competir com o pai, mas para Rodrigo o caminho estava livre. Seu comportamento, portanto, era normal. Será que só ela achava que estava tudo errado?
Sentia algum alívio no trabalho, mas nos últimos tempos estava difícil se concentrar. Era executiva daquela empresa há anos e um convite como o que lhe fizera Werner Ülbrich poderia ser uma saída. Assumir um cargo na sede da empresa em Frankfurt a perturbava, mas por outro lado, uma decisão mais incisiva pudesse colocar tudo em seus devidos lugares. A única exigência da empresa é que ela fosse só, pois as novas responsabilidades incluiriam viagens a todas as filiais espalhadas pelo mundo e a família, principalmente filhos pequenos, atrapalhava.
Seu estômago doía, sentiu um pouco de fome. Abriu a geladeira e pegou a jarra d’água. Era melhor não comer nada e a água, purificadora, poderia ajudar a aliviar a sensação de fome. Foi até a biblioteca. A estante de livros que ele mesmo desenhara, as luminárias que escolheram juntos, as duas poltronas escarlates, uma de frente para a outra, estava tudo no lugar de sempre, como que conspirando junto com sua tristeza, aumentando a sensação de melancolia daquele domingo. Foi até o gavetão e abriu a pasta de documentos. Lá estava a certidão de casamento que dali há alguns meses teria os carimbos da separação judicial e depois do divórcio. Ou não. Tudo dependeria da decisão incisiva.
Abriu o álbum de casamento e lua-de-mel. Foram dias tão felizes! Eles se amavam. Como será que o amor acaba? Ela não sabia, porque ainda o amava, seu amor não tinha se acabado... Os pais dele bem que tentaram ajudar a manter o casamento, mas ele estava irredutível. Ela não movera uma palha: não o pedira em casamento e também não iria pedir o divórcio. Foi tudo ele. Ela mesma só tinha que decidir sim ou não. No casamento, decidira sim. No divórcio, decidira não. Mas como ele já havia decidido que sim, não se importou com o não dela e foi-se.
Olhou em volta. A foto sobre a escrivaninha denunciava um dia feliz em família. Tirada seis meses antes, era prova de que não havia monotonia na vida deles. Gostavam de atividades ao ar livre e as crianças cresceram acostumadas com o mato, bichos e banhos de cachoeira, fogueira e noites de luar. Tudo isso se esvaiu de uma hora para outra e o futuro parecia obscuro. Reviu os álbuns das crianças, desde a gestação até o aniversário de um aninho. Reviu os álbuns de férias e lembrou-se de cada passeio, de cada sensação, de cada cheiro... Ah! Como doía a separação! Nunca mais estariam juntos novamente, desbravando novas trilhas, encontrando novos rumos. Agora apenas um rumo se apresentava.
Sentou-se à escrivaninha, pegou um papel e começou a escrever: “Meus filhos, tomei esta decisão para o bem de vocês, pois sei que preferem não estar comigo e não serei egoísta de impedir isso...” e escreveu, escreveu, escreveu três páginas. No fim, deixou recomendações: “A escola deve ser paga todos os dias cinco de cada mês. Seu pai deve estar atento às trocas de faixa no judô, pois o Rodrigo faz questão de sua presença e eu não vou avisá-lo, como fazia antes. Assim que Katiucia menstruar, deve ir ao ginecologista e ter orientação sexual adequada. Parece que ela terá uma TPM furiosa...”. Terminou com muitos beijos e amo vocês, colocou a enorme carta dentro de um envelope, endereçada aos filhos, e deixou-a sobre a mesa.
Que horas eram? Foi até o seu quarto, onze horas; estava na hora da dose de Racumin. Tomou duas colheres de sopa daquele pó azul. Era amargo e sentiu ânsia de vômito antes de engolir a última colher. Será que ela deveria ter comido alguma coisa antes? Em alguns minutos começou a sentir a boca espumar, seu corpo inteiro tremia e suava e uma dor forte na barriga quase a fez vomitar. Aquela dor não era nada perto da dor da separação; na verdade, aquela dor era um alívio e ela não poderia perder a dose do veneno no vômito. Contorceu-se e caiu no chão, a salivação intensa, uma sede incontrolável. Não tinha forças para ir atrás de água. Afinal, a decisão incisiva: era melhor partir, não para Frankfurt, mas para sempre. Não poderia ser um fardo para seus filhos e não suportava ver seu marido, seu companheiro de tantos anos viver feliz sem ela, como explicara nas três páginas da carta.