Alquimia
ALQUIMIA
por Walter de Queiroz Guerreiro
Ia dar início agora à Magnum Opus. Vestia a túnica talar, de um azul profundo como o universo desconhecido, bordada com estrelas de prata, a cabeça recoberta com o barrete frígio dos iniciados. Lavou diversas vezes as mãos para a purificação como os árabes o faziam, quer nas orações diárias quer naquilo que era a mais sagrada das obras, os caminhos do Senhor. Enxugou-as a cada vez na toalha branca de linho de Flandres, dispusera cuidadosamente todos os aparelhos, os almofarizes das mais duras pedras e os de bronze, as retortas, os vasos fechados; abastecera o crucibulum¹ de matéria ígnea suficiente para manter a temperatura elevada unindo os leões vermelhos aos lírios brancos² no ovo filosofal. Este era de ferro fundido pelo maior forjador de Antuérpia, e capaz de atingir temperaturas que nenhum outro recipiente alcançaria.
Da extensa fileira de boiões de cerâmica, contendo terras amarelas de Nápoles e Siena, vermelhas de Veneza e de Espanha, castanhas da Turquia e negras do marfim africano, lado a lado com os pós metálicos em estado puro, moídos, peneirados e decantados nas mais finas tamisas, identificados como Cuprum, Ferrum, Hydrargirum, Plumbum, todos seguidos das palavras In res Metallica, e os vidros com os elixires, os líquidos destilados, as essências, separou aqueles elementos que seriam a síntese da Criação.
Sobre a mesa o in-fólio de valor inestimável do Ímã Djabir e seu caderno de experiências, incansavelmente anotadas desde que se iniciara com o Mestre Villard de Honnencourt, as proporções e os agentes, os resultados e os erros, as repetições e os caminhos que trilhara na realização da Magnum Opus. Escreveu no alto da página: Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo 1290, dia de São Cosme e de São Damião, duplamente propiciatório por serem santos patronos, e iniciou as anotações do trabalho. Colocou o Natrium in natura Metallica (sódio metálico) e o carbo (carvão mineral), este que previamente moera com o pistilo vagarosamente, produzindo um pó fino e regular. Adicionou o ammonium (amônia) e fechou o ovo com uma volta inteira; pegou o lacre de Corinto, girou com a mão esquerda a pedra negra encastoada no grande anel que usava no dedo mínimo expondo o selo de Hermes Trismegisto. Calcou cm firmeza o selo e podia então dar início à obra, porque estava hermeticamente selada e nada do mundo externo ali entraria. Apoiado sobre o crucibulum o ovo foi esquentando, a temperatura interna se elevando e Jan Pieter de Ghent mais uma vez esperando pelo resultado de sua busca da pedra filosofal. Com o fole fez subir a temperatura ainda mais e manteve um fluxo constante de ar, que acreditava uniria o Sol e a Lua...união da matéria viva submissa às leis da mutação e da progressão. Passou-se tempo até Jan abrir o recipiente de ferro, a prima materia se transmutara passando ao estado de corvo³. Retirou a massa com cuidado, a dispôs sobre um funil recoberto de fino duplo tecido de linho e deixou a aqua pluvialis 4 correr sobre a cabeça do corvo, esfriando e limpando possíveis impurezas. A simples observação indicava que chegara ao cisne55, tão regular, como se cada partícula cúbica fosse um dado de jogo, todas absolutamente iguais. Por um instante recordou do medalhão inscrito em pedra que vira na Notre Dame de Paris, na figura do cavaleiro lançado em terra por seu corcel, e da inscrição: O orgulho que tropeça, mas em seu coração não existia orgulho.
Sentiu-se feliz, passara pela impregnação, pela purificação, nãoatingira o grande Elixir, mas a cor branca, a pedra branca era o pequeno Elixir, aquele que transformaria todos os metais em prata. Restava o último estágio, a dissolução, que se com provada seria o coroamento da Magnum Opus. Tomou então do vitriolum5 e da aqua pluvialis derramando-os sobre os cristais brancos. O gás imediatamente se desprendeu. Seria o Pássaro de Hermes?
Jan teve seu último pensamento: o cisne voou.
Cansado de chamar pelo mestre, Roger deu a volta à casa, todas as janelas estavam trancadas, impossível forçar passagem pelo postigo que se abria para o pátio, como último recurso a gateira do porão, embora gradeada talvez fosse possível. Forçou a grade junto às velhas pedras e se esgueirou. Tudo estava quieto, uma quietude estranha, uma vez que se ouviria ao menos o borbulhar dos líquidos nas retortas. No espaço de trabalho o ambiente anormalmente quente provinha do crucibulum com as janelas fechadas para que o segredo ficasse entre quatro paredes.
Viu o banco caído e Messer Jan envolto num céu estrelado, um leve odor de amêndoas amargas no ar, e ele tombado sobre o caderno de registros. Um simples olhar confirmou o pior, estava morto sobre a obra realizada. Nada mais restava a fazer a não ser pegar com rapidez o caderno junto daquele outro que viera do Oriente e fugir, afastar-se o mais longe que pudesse dali, quem sabe embarcar na primeira barcha que saísse do porto com os linhos de Flandres.
Notas:
¹ Crucibulum – Fornalha em forma de torre.
² Leões vermelhos e lírios brancos – A interação de matérias opostas, chamadas na alquimia de impregnação.
³ Corvo – Matéria negra, o estado na alquimia chamado putrefação.
4 Aqua pluvialis- A água da chuva, usada por ser pura como a água destilada.
5 Vitriolum - Ácido sulfúrico.
OBS. Infelizmente o caderno levado por Roger se perdeu como documento, ficando a memória da experiência recontada por gerações sucessivas de alquimistas. Sabemos assim hoje que Messer Jan Pieter de Ghent sintetizou o ácido prússico ou cianídrico quinhentos anos antes de seu registro oficial em 1782, pelo químico Karl Scheele em Stralsund na Alemanha, também vitimado pela redescoberta.
ALQUIMIA
por Walter de Queiroz Guerreiro
Ia dar início agora à Magnum Opus. Vestia a túnica talar, de um azul profundo como o universo desconhecido, bordada com estrelas de prata, a cabeça recoberta com o barrete frígio dos iniciados. Lavou diversas vezes as mãos para a purificação como os árabes o faziam, quer nas orações diárias quer naquilo que era a mais sagrada das obras, os caminhos do Senhor. Enxugou-as a cada vez na toalha branca de linho de Flandres, dispusera cuidadosamente todos os aparelhos, os almofarizes das mais duras pedras e os de bronze, as retortas, os vasos fechados; abastecera o crucibulum¹ de matéria ígnea suficiente para manter a temperatura elevada unindo os leões vermelhos aos lírios brancos² no ovo filosofal. Este era de ferro fundido pelo maior forjador de Antuérpia, e capaz de atingir temperaturas que nenhum outro recipiente alcançaria.
Da extensa fileira de boiões de cerâmica, contendo terras amarelas de Nápoles e Siena, vermelhas de Veneza e de Espanha, castanhas da Turquia e negras do marfim africano, lado a lado com os pós metálicos em estado puro, moídos, peneirados e decantados nas mais finas tamisas, identificados como Cuprum, Ferrum, Hydrargirum, Plumbum, todos seguidos das palavras In res Metallica, e os vidros com os elixires, os líquidos destilados, as essências, separou aqueles elementos que seriam a síntese da Criação.
Sobre a mesa o in-fólio de valor inestimável do Ímã Djabir e seu caderno de experiências, incansavelmente anotadas desde que se iniciara com o Mestre Villard de Honnencourt, as proporções e os agentes, os resultados e os erros, as repetições e os caminhos que trilhara na realização da Magnum Opus. Escreveu no alto da página: Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo 1290, dia de São Cosme e de São Damião, duplamente propiciatório por serem santos patronos, e iniciou as anotações do trabalho. Colocou o Natrium in natura Metallica (sódio metálico) e o carbo (carvão mineral), este que previamente moera com o pistilo vagarosamente, produzindo um pó fino e regular. Adicionou o ammonium (amônia) e fechou o ovo com uma volta inteira; pegou o lacre de Corinto, girou com a mão esquerda a pedra negra encastoada no grande anel que usava no dedo mínimo expondo o selo de Hermes Trismegisto. Calcou cm firmeza o selo e podia então dar início à obra, porque estava hermeticamente selada e nada do mundo externo ali entraria. Apoiado sobre o crucibulum o ovo foi esquentando, a temperatura interna se elevando e Jan Pieter de Ghent mais uma vez esperando pelo resultado de sua busca da pedra filosofal. Com o fole fez subir a temperatura ainda mais e manteve um fluxo constante de ar, que acreditava uniria o Sol e a Lua...união da matéria viva submissa às leis da mutação e da progressão. Passou-se tempo até Jan abrir o recipiente de ferro, a prima materia se transmutara passando ao estado de corvo³. Retirou a massa com cuidado, a dispôs sobre um funil recoberto de fino duplo tecido de linho e deixou a aqua pluvialis 4 correr sobre a cabeça do corvo, esfriando e limpando possíveis impurezas. A simples observação indicava que chegara ao cisne55, tão regular, como se cada partícula cúbica fosse um dado de jogo, todas absolutamente iguais. Por um instante recordou do medalhão inscrito em pedra que vira na Notre Dame de Paris, na figura do cavaleiro lançado em terra por seu corcel, e da inscrição: O orgulho que tropeça, mas em seu coração não existia orgulho.
Sentiu-se feliz, passara pela impregnação, pela purificação, nãoatingira o grande Elixir, mas a cor branca, a pedra branca era o pequeno Elixir, aquele que transformaria todos os metais em prata. Restava o último estágio, a dissolução, que se com provada seria o coroamento da Magnum Opus. Tomou então do vitriolum5 e da aqua pluvialis derramando-os sobre os cristais brancos. O gás imediatamente se desprendeu. Seria o Pássaro de Hermes?
Jan teve seu último pensamento: o cisne voou.
Cansado de chamar pelo mestre, Roger deu a volta à casa, todas as janelas estavam trancadas, impossível forçar passagem pelo postigo que se abria para o pátio, como último recurso a gateira do porão, embora gradeada talvez fosse possível. Forçou a grade junto às velhas pedras e se esgueirou. Tudo estava quieto, uma quietude estranha, uma vez que se ouviria ao menos o borbulhar dos líquidos nas retortas. No espaço de trabalho o ambiente anormalmente quente provinha do crucibulum com as janelas fechadas para que o segredo ficasse entre quatro paredes.
Viu o banco caído e Messer Jan envolto num céu estrelado, um leve odor de amêndoas amargas no ar, e ele tombado sobre o caderno de registros. Um simples olhar confirmou o pior, estava morto sobre a obra realizada. Nada mais restava a fazer a não ser pegar com rapidez o caderno junto daquele outro que viera do Oriente e fugir, afastar-se o mais longe que pudesse dali, quem sabe embarcar na primeira barcha que saísse do porto com os linhos de Flandres.
Notas:
¹ Crucibulum – Fornalha em forma de torre.
² Leões vermelhos e lírios brancos – A interação de matérias opostas, chamadas na alquimia de impregnação.
³ Corvo – Matéria negra, o estado na alquimia chamado putrefação.
4 Aqua pluvialis- A água da chuva, usada por ser pura como a água destilada.
5 Vitriolum - Ácido sulfúrico.
OBS. Infelizmente o caderno levado por Roger se perdeu como documento, ficando a memória da experiência recontada por gerações sucessivas de alquimistas. Sabemos assim hoje que Messer Jan Pieter de Ghent sintetizou o ácido prússico ou cianídrico quinhentos anos antes de seu registro oficial em 1782, pelo químico Karl Scheele em Stralsund na Alemanha, também vitimado pela redescoberta.