Comigo-ninguém-pode

A eles.

Enquanto eles estavam sentados um ao lado do outro, quietos e calados, ela ficava à espreita no canto da janela, do lado de dentro dos dormitórios, vigiando-os constrangida. Mas ainda não compreendia bem o efeito que aquele encontro lhe causava; se a repulsa era provocada pelo que se deflagrava nela ou se era a própria escassez de entendimento de si mesma.

Desde que fora contratada pela chefia do asilo como cuidadora de idosos, ela passou a ser conhecida pelos moradores do local como a estranha. “Lá vem a nova estranha”, cochichavam os velhos. Sempre calada, andava sorrateira e com os braços cruzados atrás das costas pelos corredores, a cara amarrada e as sobrancelhas contraídas. Achava-se obrigada, como parte da delegação que recebera da direção do asilo, a agir com rigidez – dirigia palavras ásperas aos velhos que infringissem suas regras. Parecia falar com crianças ordeiras. Um exemplo simples: mexer nas plantas do jardim; ai de quem descumprisse essas regras. Era exatamente essa uma das atividades prediletas de dona Lúcia, a moradora mais antiga do asilo. Vez em quando era flagrada mexendo nas plantas, sempre só.

Quando a estranha não estava por perto, a velha aproveitava para retirar algumas folhas secas dos galhos da roseira e do pé de comigo-ninguém-pode. Essa última era a preferida de dona Lúcia. Isso porque as folhas verdes dessa planta, que apresentavam manchas de cor branca bem no centro, poderiam ganhar um efeito especial: as nódoas esbranquiçadas se alargariam e tomariam quase toda a dimensão das folhas de comigo-ninguém-pode e essas se tornariam invisíveis a qualquer olho humano, menos para os de dona Lúcia. Com esse efeito, o da invisibilidade das folhas, a comigo-ninguém-pode seria toda dela, seria ela própria.

Com as mãos trêmulas, a velha fazia seu trabalho em segredo e colocando todo seu amor. “Nasci para cuidar de plantas, pois aos filhos e netos já dei a minha cota”, dizia ela, baixinho e a si mesma, enquanto revirava apressadamente as folhas e retirava a sujeira do jardim – embora tivesse a certeza de que isso, o mexer com plantas, exigisse a concentração de um desenhista ou pintor enquanto esses estão em seu processo de trabalho.

Mesmo que fosse com as plantas mais perenes, corpulentas e fortes, era necessário senti-las, envolver-se com elas, tornar-se íntima delas para depois regozijar com a resposta que certamente viria: elas floresceriam e ganhariam um ar metido a besta. As plantas de dona Lúcia deviam ser metidas a besta. Quando esse resultado não ocorria a contento, bastava uma conversa afetuosa com elas, cheia de elogios, e dizeres, como: “você vai conseguir, minha querida, vai vencer esse mal que te quer vencer”; bastava isso para tudo mudar o estado em que as plantas se encontravam.

No asilo, a estranha era responsável por assistir aos idosos tanto da ala feminina quanto da masculina. A entidade possuía dormitórios coletivos e exclusivos, para ambos os sexos, além de refeitórios, banheiros e um enorme corredor que levava ao jardim, onde todos podiam desfrutar do banho de sol. Pela larga experiência profissional, a cuidadora passou a ganhar o respeito da diretora e a ser a única funcionária a poder circular em ambas as alas. Os demais empregados eram responsáveis por setores específicos. Isso significava que a aplicação das regras aplicadas pela estranha tornara-se rígidas com todos os moradores e a arrogância dela crescia em tamanho e virulência, em som e fúria, em expressão e materialização no próprio toque físico – e os velhos necessitavam diariamente desses toques durante os cuidados na hora do banho, do almoço e do jantar. A estranha suavizava na impostura apenas quando a diretora estava por perto.

A mais severa das normas era a de que os velhos não podiam entrar na ala uns dos outros. Isso significa que eles só se viam uma vez por dia, entre doze e treze horas, durante o intervalo destinado ao banho de sol, ao relaxamento depois do almoço. Ali, no pátio, os velhos podiam se encontrar e conversar e trocar gracejos ou até se divertir uns com os outros.

Naquela manhã, durante o banho de sol, a estranha observava atentamente os movimentos e os passos dados por dona Lúcia, que estava sentada num banco de ferro, ao lado de seu Rodolfo, o morador mais novo do asilo. Vez em quando ambos substituíam a mudez por alguns olhares e sorrisos envergonhados. Era um silêncio profundamente revelador, que brotava da pouca curiosidade que tinham e se permitiam sentir um pelo outro. Mesmo que naqueles encontros, que passaram a ocorrer com certa frequência nas últimas duas semanas, eles pudessem falar sobre o passado, filhos, amigos, profissão, pressentiam que alguns passos naquele enamoramento, no se dar a conhecer um ao outro, se aligeiravam. Era ele, o silêncio, que fazia o seu respeitoso e atrevido serviço, possibilitando que os dois se conhecessem com quase nenhuma palavra. Eles se amavam profundamente. Amavam-se em sorrisos e olhares e acanhamento e vergonha. Amor de silêncio avolumado pela escassez de tempo.

Um dia antes, um fato ocorrido fez com que dona Lúcia tomasse consciência de que a estranha tornara-se ainda mais estranha e punitiva com ela, mais do que com os outros. Ela estava cuidando apressadamente das plantas do jardim quando, de súbito, foi repreendida pela cuidadora.

– Olhe aqui, já falei com a senhora pra largar mão dessas plantas e voltar pro banho de sol. Vai, retire-se daí. Não é permitido, a senhora sabe bem disso. Sai – ordenou.

Dona Lúcia abaixou a cabeça, bateu com as mãos uma noutra para retirar a terra e andou com vagareza até o banco, onde se sentou calada. Mas antes, deu seu recado.

– Tenho visto como a senhora vem me tratando e sei bem por que, mas isso não importa. Eu gosto delas e não largarei disso. Pode ir dar com a língua nos dentes, vai.

A partir daí, a velha decidiu que passaria as próximas semanas sem dedicar às plantas seu pouco tempo disponível. Porém, antes, tratou de recolher uma rosa de cor escarlate que crescera saudável e já apresentara um ar metido a besta. Dona Lúcia estava certa de que aquela beleza fora impressa à flor após seus cuidados diários, o que lhe deu o direito de retirá-la com as mãos, quase furando os dedos com os espinhos. Depois, se recolheu ao dormitório. Mas, antes, guardou a rosa, sem várias de suas pétalas, debaixo de sua cama, abaixando-se com dificuldades para escondê-la.

Na manhã do dia seguinte, mais um banho de sol, como de praxe. Dona Lúcia encaminhou-se novamente ao banco para se encontrar com seu Rodolfo. E eis que a estranha passa exatamente ao lado dos dois no momento em que a velha, com um largo sorriso, ofereceu a rosa escarlate ao vetusto e lhe disse: “te amo velho”.

A estranha agiu rápido. Descreveu a cena que testemunhara à diretora do asilo, pedindo para que o casal fosse proibido de se encontrar durante o banho de sol.

– Por quê? – inquiriu a diretora.

– Estão todos falando desses encontros. Daqui um dia eles vão querer se encontrar nos dormitórios, escondidos? Velhos sem... Você vai permitir isso? Dois velhos? Não é essa a norma?

– Eles só poderão fazer isso se forem para os quartos particulares, se a família assim permitir e pagar. Está certo! Não vou proibir ninguém de se ver no pátio. Muito menos de entregar rosas, mesmo que seja do nosso jardim. Não interessa. Agora tenho que voltar para o trabalho.

A estranha agiu rapidamente. Tratou de espalhar o caso. A notícia correu pelos fracos ouvidos dos velhos, pelos corredores do asilo, foi criando garras na inveja de alguns, povoando o medo de outros, e trazendo para o asilo um pouco da modernidade, aos olhos de todos os moradores, que existia naquele romance.

Dona Lúcia e seu Rodolfo mantiveram os encontros regularmente e se amaram sem silêncio, sempre flagrados pela majestade o Sol, e sonhando com volúpia úmida e silenciosa da noite, no quarto dele ou no quarto dela. O primeiro beijo de dona Lúcia e seu Rodolfo foi entre os velhos e funcionários, durante o banho de sol, e tornou-se o principal comentário nos meses seguintes no asilo.

A escassez de entendimento de si mesma passou a ser o maior comentário da estranha-cuidadora para consigo mesma, sigilosamente e por toda sua curta vida.

Fabricio Fernandes
Enviado por Fabricio Fernandes em 11/03/2012
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