Café com leite no Céu

A princípio, ela o olhava com desconfiança e não se arriscava numa aproximação. Contudo, a curiosidade, esse imbatível adversário, prevaleceu. Aproveitou o momento em que ele estava sentado no banco mais perto do portão, do outro lado da rua que contornava a bem cuidada pracinha. Chegou-se a ele e optou por uma forma de abordagem que aos propósitos dela pareceu a mais acertada: Perguntou-lhe se queria café e pão. No alvo: Aquela pálida figura em que se mostravam salientes os ossos da face, dos ombros e dos membros superiores, restos de uma estrutura humana despojada dos músculos, não recusaria tal oferta. Nos dias subsequentes, ele se postava estrategicamente no mesmo banco. Não se deitava, como era comum aos que perambulavam sem destino quando paravam naquele logradouro para descansar. Altivo, sentava-se com aprumo e um resto de elegância, cruzando os braços e as pernas. Gesto inútil, senão para descansar o corpo, porque os transeuntes, quando o viam, não demoravam o olhar em sua direção. A barba sempre por fazer, associada ao depauperado físico, emprestava-lhe, por consequência, um ar muito mais velho que seus quarenta e poucos anos. Roupas surradas, mal arranjadas no corpo, sempre a denunciar o porte físico dos antigos donos. Porém, o que vale dizer é que aquele cafezinho com pão chegava-lhe ao estômago como uma bênção divina.

Certa manhã, ela ofereceu-lhe café com leite, e o pãozinho veio com manteiga, num copo maior, com um estranho desenho e uma escrita ainda mais estranha que ele não decifrou e, malgrado ser precário na função de ler, entendeu que não se tratava de sua língua. Com o passar dos dias, vindo sempre o mesmo copo, descobriu, assim por intuição, que estava reservado só para ele, comprado apenas para esse propósito, que se tornou, daí para frente, um ritual nas manhãs. Sabia que existem pessoas que têm aversão ao vasilhame que lhes retorna às mãos após servir a estranhos maltrapilhos. Entretanto, a candura com que aquela senhora trazia o copo, com o pão envolto em guardanapo de papel, não sugeria isso. E ele se comprazia com tratamento tão diferenciado, após anos de convivência com a repulsa humana. Em meio às incertezas cotidianas, apenas uma certeza: o café com leite e o pão com manteiga que, não raro, constituíam a principal refeição do dia.

O espírito atribulado, quando se enovela para dentro do próprio ser, num redemoinho, faz com que o exterior se torne irrelevante. Perdido em pensamentos, lembranças, angústias antigas e novas, ele puxava, absorto, o carrinho de mão, cuja grade, para aumentar a capacidade de carga, erguia-se a quase dois metros. Era só papel, mas pesava acima do normal estando parcialmente encharcado. A chuva da madrugada logrou achar uma brecha na cobertura de plástico que, em dupla função, lhe servia de abrigo e protegia o material, coletado na noite anterior depois de fechadas as lojas e lá fora ficarem caixas de papelão inservíveis. Pelo asfalto molhado, impelia com o tórax magro, mais que com os braços, o varal do carro, quando sentiu desviar-se num solavanco o esquadro de madeira, dentro do qual se posicionava, sendo bruscamente arremessado condutor e carga por sobre a calçada. O corpo aquecido pelo esforço de puxar o carro determinava que as dores daquele acidente só viessem mais tarde, após o relaxamento da estrutura corporal. No momento, o sofrimento era moral e financeiro, quebrado o carro de mão.

Os três rapazes desceram do automóvel, e um deles, deslizando a mão na lateral do reluzente veículo, num gesto que mais parecia um doce afago, conferiu a profundidade dos arranhões produzidos. Em seguida, comprimiu os lábios, entre irritado e triste, como se tocasse num ser vivo agonizante. Inútil o esforço de dialogar com aqueles jovens cujo hálito expressaria melhor que as palavras como tinha sido a noite recém-acabada: prazeres etílicos, gastronômicos e tudo o mais que o dinheiro farto pode comprar. O carro de mão e sua carga de papéis contrastavam terrivelmente com o luxuoso automóvel, mas o valor material não era o cerne da questão para aqueles três. Doía-lhes ter que parar sua trajetória naquele momento em que se dirigiam para casa em busca de descanso, depois de uma extenuante noite de prazeres. E aquele indivíduo tinha que se intrometer entre eles e o merecido repouso que os aguardava.

Quem anda sem rumo, sozinho e, nessa condição, desprezado, se ressente do contato físico e do diálogo que o põe em sintonia com o universo social. Enquanto aguardava atendimento no ambulatório para onde fora levado por uma viatura da polícia, foi-se evidenciando o quanto carecia de afeto, de calor humano. À proporção que ia ficando mais íntimo das dores que se distribuíam por todo o corpo, depois de medicado e liberado, deitado sob a marquise do prédio mais próximo que encontrou, vieram as imagens do espancamento. A lembrança da gravata que um dos rapazes lhe aplicara para imobilizá-lo, enquanto os outros lhe davam socos e pontapés, agora lhe surgia como quem colhe uma rosa e se fere nos espinhos: prevalece menos a dor e mais o contentamento pelo resultado obtido. Tivera a cabeça comprimida contra o corpo musculoso e quente do algoz, e essa lembrança o remetia a um tempo em que a mãe o pegava no colo; um aconchego do qual se ressentia. Há muito tempo não tocava no corpo de outra pessoa. Quando ocorreu o último aperto de mão ou abraço? Beijo, nem imaginava que sensação produziria. A partir daí, querer uma aproximação maior parecia-lhe uma heresia contra a humanidade. Que mulher aceitaria tê-lo nos braços, num contato íntimo, numa entrega de si àquele homem asqueroso? Ele não conseguia imaginar a cena sem se transportar para o outro ser e renunciar-se a si próprio. Não havia autoestima, só a negação da própria e miserável pessoa em que se transformara. Mesmo passados vários dias, bastava a lembrança daquele abraço marcial para que ele se reportasse à figura da mãe. Onde estaria àquela hora? E os irmãos? Saberiam dele e saberiam uns dos outros? Sempre negativas, as respostas eram como chaves que trancavam as portas do passado a determinar que ele, doravante, tivesse o olhar apenas no presente. E o futuro não tinha espaço em sua mente. Nenhum sonho, nenhum projeto; sem desejos que não os imediatos e ditados por aquela imperiosa necessidade de viver, que o corpo insistia em alimentar.

Cansado de esperar sentado no banco da praça, optou por não chamar sua gentil protetora; imaginava que, por alguma razão maior, ela não lhe daria naquela manhã o esperado café com leite. Decidiu-se voltar à lida de catar papel. Já estava a meia quadra de distância quando ouviu o chamado de alguém. Aquele “Moço!”, quase gritado, era com ele. Virou-se esperançoso de que fosse a boa velhinha. Não era. Uma mulher, trazendo pela coleira uma cachorrinha vestida e escovada como um ser humano, aproximou-se e, sem a preocupação de quem prepara o outro para ouvir algo trágico, simplesmente lhe disse que a senhora havido morrido. Estranho. Como poderia aquela mulher supor que ele não tivesse sentimento, que não sofresse com a morte de sua tão estimada amiga? Percebeu que há pessoas que imaginam a extrema pobreza como algo dissociado de qualquer manifestação mais profundamente humana como, por exemplo, o amor. Para elas, quem está no limite da sobrevivência já perdeu a afeição pelo próximo.

O choque da notícia deixou-o no ar, tomado de uma emoção há muito não experimentada. Retornou ao banco da praça, sentou-se e pôs-se a olhar a casa onde não mais estava aquela pessoa amada. Reparou na construção muito antiga. Talvez a senhora tivesse morado ali longos anos. Talvez tivesse sido abandonada pelos filhos. Sozinha como estava, talvez carente do afeto filial, adotara aquele homem que todas as manhãs vinha se sentar no mesmo banco e esperar carinho na forma de um copo de café com leite. Agora, imagens daquelas manhãs vinham uma a uma para se oferecerem como doce e triste recordação. Ele preferia aquelas em que ela lhe pedia que voltasse para casa, dizendo que o quarto dele continuava arrumadinho, tal qual ela o deixava nas manhãs em que ele saía para o trabalho. E ele não compreendia, mas aceitava que assim ela procedesse. Mesmo naquelas ocasiões quando, após o desjejum ali na praça, assim que ele se levantava para sair, ela, lacrimosa, segurava-lhe a mão e suplicava para que ficasse. Mas ele não podia ficar. Certa vez, aparentemente em tom de brincadeira, ela tirou do bolso do casaco um pequeno espelho e duas fotografias. Pôs-lhe diante do rosto o espelho fazendo-o mirar-se nele e disse-lhe: “Olhe. Você é igualzinho a esta foto e veja como se parece com esta do seu irmão”.

A juventude, quando impulsiva, caminha ao lado da aventura. E esta, por sua vez, é amiga íntima da tragédia. Não havia mais o que fazer senão procurar documentos nos bolsos e identificar aqueles três desafortunados rapazes, em meio aos destroços do carro. Para os três, a história já não se conta mais neste plano da existência; ela continua, já dispensada a presença do corpo e dos seus acessórios. A sensação era de extrema leveza, um estar sem o corpo, sendo conduzido por uma inexplicável força em direção a uma claridade opaca, diante da qual pararam, cessada a força que os impelia. “Tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; estava nu, e não me vestistes”. Eles conheciam aquela passagem do Evangelho e não ousaram qualquer defesa ante essas afirmações vindas daquele ponto na difusa luz. Prepararam-se para algo que deveria ser igual ou maior que as tempestades, os vulcões, os furacões. Terrivelmente pior. A luz opaca, que sugeria ser o outro lado de um ser reluzente, foi se esmaecendo e, antes que desaparecesse, aqueles três ouviram algo como “Afastai-vos de mim, malditos”; dito assim sem qualquer emoção ou exclamação, como quem já não faz sequer questão de ser ouvido. E cada um sentiu condensar-se a treva em sua volta, esmagado, prensado até à nulidade, no mais absoluto isolamento que se pode imaginar, náufragos na escuridão.

A chuva começava. Ele atravessou a rua, indo até o portão de grade, que deixava ver parte da entrada da casa. Olhou na direção da janela que dava para a praça e onde ela costumava ficar todas as manhãs aguardando a chegada dele. Mas ela não estava lá, não mais. Voltou-se e principiou a travessia da rua, experimentando outra sensação: Chorava, e as lágrimas associaram-se aos pingos da chuva, mascarando-lhe no rosto aquele sentimento. Descontrolado, não sabia como lidar com aquilo e mais aqueles soluços altos, que chamavam a atenção de quem passava, e assim não se dava conta do que ocorria em sua volta, perdido em seu sofrimento.

Deus, que dor! Um corpo humano arremessado contra ele, aquele pneu de motocicleta esmagando-lhe o tórax e atirando-o à distância no asfalto; tudo, num piscar de olhos, aconteceu e já não mais existe. Foi-se a dor. Estranhou que agora já não soubesse como tinha sido aquele sofrido momento. Só tinha ideia de que a sensação penosa existira. Agora, levitava, mas onde? Uma claridade surgia, crescia e iluminava um grande, imenso, portão que aos poucos foi se abrindo e deixando ver o interior esplendidamente claro. Acostumado a estacar sempre às portas e nunca convidado a entrar, parou diante daquela portentosa edificação. Súbito, uma voz semelhante à soma de todos os acordes musicais mais belos que se pode imaginar disse-lhe: “Esperava por ti, filho amado. Entra”. E ele sentiu uma sensação que, no mundo material, corresponde a um abraço. Não era um contato físico, que corpo não havia, era a interpretação de uma intenção divina. Envolvido pela claridade, notou que seu ser se confundia com o Outro e, assim, inundado de luz, viu que se misturavam, se fundiam aqueles dois seres, como uma mistura de café com leite: são dois em um, se mostram, mas não se separam.

Ao passar sob o grande portal, ele vislumbrou alguém vindo lá de dentro. Era ela, a velhinha. Reparou nela à medida que se aproximavam um do outro: A criatura mais bela que se pode imaginar. Não deixava de ser a mesma, porém irradiava tal beleza que ele não compreendeu, de início, como não a vira assim antes. Era o amor, puro, cristalino, essa abstração, que agora, liberta, reinava em plenitude. Irradiando felicidade, ela lhe disse: “Chegou bem na hora, meu filho. Estão servindo neste momento um delicioso café com leite. Vamos lá”.

E os dois sumiram na luz que inundava o ambiente.

Gerson Silvestre
Enviado por Gerson Silvestre em 10/03/2012
Reeditado em 21/02/2013
Código do texto: T3546340
Classificação de conteúdo: seguro