Dr Lauro e Tolstói - Cem dias sem laços - cap XI

Capítulo XI

Alberto nem tivera ainda tempo de falar. O Sr Lauro tinha uma terrível necessidade de falar o tempo todo. Parecia uma pessoa muito solitária, não obstante vivesse, segundo ele com a esposa.

_ Anamaria sempre queixa-se de meu silêncio. Diz que não converso com ela. Eu sinceramente não acho sentido em ficar falando de coisas corriqueiras. Ela sim, conversa sem parar: “aquela galinha ródia está choca, vou botar quinze ovos para ela chocar, a cabra Roxinha está para parir a qualquer hora, minha samambaia chorona está com piolhos quando você for à cidade me traga algum produto que salve as minhas lindinhas.” Anamaria é muito dengosa, sabe? Eu disse a ela: se for pulgões o remédio é aplicar uma calda de fumo que eu sei a receita, se for cochonilhas basta um banho com óleo e detergente, que eu também sei a receita, se forem lagartas, ó (e fazia um gesto com os dedos) catação manual mesmo. Eu sei por que sou advogado e sempre tive colegas mulheres que falavam desses assuntos amenos para disfarçarem os estresses forenses, mas Anamaria é turrona e quer porque quer esses remédios inventados, modernos, caríssimos e de resultados duvidosos, não me escuta, Sr Alberto. Mulher é assim mesmo. O senhor é casado?

_ Sim, Dr. Lauro, eu sou casado. Minha mulher Ângela está fazendo uma peregrinação pela Europa.

O velho pareceu não entendê-lo, absorto em uma repentina preocupação:

_ Meu Deus, que será feito do Tolstoi? Se o diabinho some nem preciso voltar para casa, que Anamaria vai querer comer meu fígado. Faz favor, meu rapaz. Me ajude a ficar de pé.

Alberto ergueu-se e deu a mão ao velho que se sustentando com a outra mão na bengala, e com certo custo de ambos, pôs-se de pé, pondo-se a gritar a plenos pulmões:

_ Tolstoi? Tolstoi? - E dirigindo-se a Alberto: é nosso cachorro. Anamaria quis chamá-lo de Totó. Eu achei muito ridículo, então comecei a chamá-lo de Tolstoi e ele gostou mais do nome russo, especialmente quando eu falo Leon Tolstoi. Ele balança o rabo e chega a sorrir. – E elevando novamente a voz: Leon Tolstoi? Ô, Tolstoi?

Não tardou e apareceu um cãozinho raquítico, nanico, comprido e peludo, meio poodle, meio basset, completamente vira-lata, preto com muitos fios brancos sob o focinho, Lembrando mesmo o genial escritor russo. Olhou para Alberto e rosnou. Aquietou-se a uma interjeição do dono.

_ È nosso amigo, Toltoi. Vai almoçar conosco hoje. Não é isso mesmo Seu Alberto?

Era um convite, que Alberto pesou cautelosamente: iria esperar por Sabonete até a tardinha, não tinha nada para fazer, não sabia de recursos ainda para fazer uma refeição decente. Ainda lembrou-se da conversa de Isac sobre a chamada Providência. Era isso. Não tinha por que recusar:

_ Anamaria não vai se incomodar?

_ É claro que não! O misantropo lá em casa sou eu. Anamaria adora quando tem alguém além de mim para quem servir um de seus pratos.

Empreenderam uma lenta caminhada pelo meio da vegetação das margens do rio, além das limitações do velho, a micose no hálux de Alberto voltara a doer em consequência da caminhada em terreno tão desconcertado, por fim saíram num descampado onde repousava à sombra de um pequizeiro uma velha Parati vermelha. Era mesmo o carro de um homem que já se desvencilhara das garras da vaidade. Estava destrancado, os vidros abertos. Havia lama nas rodas e poeira na lataria queimada de sol. No pó que se acumulara no para brisa estavam as marcas dos limpadores com riscos comprobatórios do desgaste das borrachas e da falta de manutenção.

_Não repare, meu rapaz. Entre aí e fique tranqüilo. Este seu amigo sem pernas é um excelente motorista.

Entraram. Tolstoi acomodou-se no assoalho entre os pés de Alberto, já quase íntimo. Sr. Lauro, com muita dificuldade e não poucos gemidos e imprecações, sentou-se ao volante, depositou a bengala no banco trazeiro e o caniço de pescar com o pé sobre o porta malas e a ponta saindo pela janela. deu a partida, ajeitou o chapéu de palha. Engatou uma ré e manobrou realmente com perícia o velho VW.

_ Pelo que eu entendi você está separado da esposa.

O comentário repentino e inoportuno merecia uma reflexão. Estava ou não estava?

_ Não, Sr Lauro. Minha mulher está viajando. è uma viagem de cem dias. Estou aproveitando para dar umas voltas a meu jeito.

_Não acha difícil ficar tanto tempo sem mulher?

O velho era ladino e aquela pergunta era um tanto capciosa. resolveu brincar com ele:

_ Ficar sem mulher eu não acho difícil, Dr Lauro. O que não é fácil é ficar sem a minha mulher. Sinto saudades, sim. Se é isso que o senhor perguntou.

Dr Lauro o olhou por cima dos grandes óculos e riu gostosamente, enquanto reduzia a marcha para subir uma ladeira pela estradinha de terra. Teve novo acesso de riso como que se reiterando da comicidade do assunto.

_ Você é ótimo, meu amigo! Muito perspicaz. Anamaria vai mesmo gostar de você.

Chegaram a uma delicioso recanto ao pé de uma montanha. havia uma casinha branca com um pátio gramado á frente. Algumas mangueiras formavam um pouco mais à frente um aprazível sombreado onde haviam duas redes armadas, um banquinho de tabuas e uma mesa de madeira tosca. Por toda parte onde se olhasse haviam flores plantadas. Muitas flores. Dr Lauro estacionou a velha Parati, tomou mais um trago do seu cantil, acendeu um cigarro e antes de sair do carro comentou:

_Você disse muito bem, rapaz. Ficar sem mulher é fácil. Difícil é ficar sem a mulher da gente. Estou casado há quarenta e seis anos, acho que já te contei, mas velho tem mesmo mania de repetir, e nunca, nunca mesmo, tive outra mulher durante esse tempo. E vou lhe dizer uma coisa. Um homem casado e fiel é quase um celibatário...

E foi aí que Dr. Lauro disse aquela frase tão conhecida de Alberto:

_ Eu penso assim. E você?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 08/03/2012
Reeditado em 18/10/2013
Código do texto: T3541847
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