O pedreiro e o cérebro de Einstein

Texto revisado como uma dedicatória à jovem Raylce Neves - aluna exemplar.

Lembro-me de ter contratado o Zé Pedreiro. Lembro-me de ter pedido referências e ele indicado o irmão do meu sogro. Quando o irmão do sogro decidiu contar que não conhecia o Zé, eu já o tinha contratado por empreita e a tarefa ia pelas metades. Não dava para voltar atrás.

Sou médico, engenheiro civil e filósofo. Um amante do conhecimento envolvido em reforma doméstica, iniciada pela construção de um minúsculo banheiro social. Combinamos o preço, o Zé não gostou. Acrescentei as refeições por minha conta e o sábado livre, pagos. Parece ter ficado satisfeito, mas num dia em que foi necessário ficar até altas horas concluindo o assentamento dos azulejos numa diagonal – ideia dele – saiu resmungando que eu não valorizava o trabalho de gente esforçada.

Depois foi a quebra do piso da cozinha. Saí cedo a providenciar mantimentos e suprimentos. Quando cheguei, um susto: minha casa infestada de estranhos. Um baixinho atarracado marretando a velha cerâmica, sem dó. De pele clara, mas com cabelos, nariz e boca de afrodescendente. O cabelo, pintado de um amarelão carregado. Cantava a toda altura e sem parar, esses funks insuportáveis. Depois tinha o irmão do Zé: um mulatão alto, forte e velhaco. Trabalhara em São Paulo por muitos anos, o que, no final das contas, não me passava confiança alguma. Quando fui fazer o acerto com o Zé Pedreiro, intrometeu-se na conversa, sugerindo valores e não gostei nem um pouco. O terceiro era um negro muito alto, magricelo, desasseado, dando um tapa de weed (1) num cachimbo de durepox. Tinha o cabelo moicano, vermelho e, nas orelhas perfuradas, dois piercings de PVC de ½ polegada. Havia sido meu aluno quando eu era acadêmico e fazia bicos. Chamavam-no Andinho e era de boa paz. Fiquei aliviado ao ver o Andinho por lá. Finalmente o Zé. Tão semelhante ao atarracado funkeiro que pensei serem irmãos. No final do dia o pedreiro só disse “pagaí” e eu tive que acertar com os camaradas. Mais tarde, encurralei-o e disse que não estava agindo conforme o combinado. Ele disse que o combinado estava errado. Ele podia contratar gente para ajudar na empreita e o doutor que pagasse, porque era justo: estava adiantando a obra do doutor. Paguei, de má vontade, e decretei que iria descontar nas próximas empreitas.

Depois do banheiro e da cozinha, foi a vez do meu escritório. A essa altura, o Zé Pedreiro estava se mostrando um ganancioso de mão cheia, tentando me passar a perna. Lidar com peão de obra nunca foi fácil, mas o Zé... O Zé era carne de pescoço.

Comecei a explicar o que eu queria e ele nem parecia ouvir o que eu dizia, como se concordasse com tudo. Viu um cérebro de plástico em cima da escrivaninha, um esqueleto no canto à sua esquerda, pipetas, tubos de ensaio, um microscópio, livros e aparelhos. Tomou o cérebro entre as mãos e perguntou “ o que que é isso”? Respondi que era uma cópia do cérebro de Einstein. Quis saber mais. Quem era Einstein? Por que eu possuía uma cópia do seu cérebro? Que importância tinha aquilo e – o que mais interessava -, aquela tranqueira toda dava dinheiro? Impaciente, falei para o pedreiro que o Einstein tinha sido o homem mais inteligente do mundo e que inventara as viagens espaciais. Morreu; seu corpo foi cremado, mas o Dr. Thomas Harvey, realizador da autópsia, levou o cérebro do alemão para casa. Dez anos depois, cientistas retomaram os estudos, com o objetivo de descobrir a causa ou as causas da genialidade do formulador da Teoria da Relatividade. O peão interessou-se: “E deu certo”? Disse a ele que não era tão simples. Era preciso seguir o método científico. Primeiro a observação: Einstein utilizara dez vezes mais o seu cérebro, que os homens comuns. Em seguida, houve a elaboração do problema: quiseram saber por que o famoso físico era tão inteligente. Os neurocientistas começaram a levantar hipóteses. Achavam que o cérebro do físico era diferente dos outros cérebros. Nossa colega, Dra. Marian Diamond, comparou as glias (2) e os neurônios de Einstein, áreas nove e trinta e nove, nos lóbulos frontal e parietal, respectivamente, com áreas análogas de onze homens comuns, mortos mais ou menos aos setenta anos - idade próxima à que morrera o gênio da física. Diamond acabou descobrindo que o Einstein possuía muito mais glias que os homens comuns. Isso talvez explicasse a sua genialidade. Esta havia sido a fase da experimentação. Agora era só analisar o resultado dos dados observados na fase de testes e concluir se as hipóteses eram válidas ou não. O Zé abriu um sorrisão de criança malina em flagrante. Trabalhou e assobiou sozinho o resto do dia. E não deixava de sorrir e sorrindo foi-se embora. No dia seguinte, nem tirou as ferramentas da bagagem da bicicleta e atirou a pergunta à queima-roupa: “o cérebro do doutor é parecido com o de Einstein”?

Arregalei os olhos para aquela ideia estapafúrdia. Nem respondi. Tinha coisa demais para fazer e não queria ficar resenhando com peão.

Perdi quase toda a tarde no banco e, quando voltei, o Zé não trabalhava, mas folheava meus tratados de neurologia, filosofia, álgebra, estatística... A biblioteca era um pandemônio. Eu gostava de estudar qualquer coisa. “O doutor aprendeu tudo nesses livros”? Perto de sair do sério e esganar o pedreiro, respondi que muita coisa eu aprendera nos livros, outras tantas a vida me havia ensinado, mas o mais importante eram as habilidades inatas. As pessoas já nasceriam com talento para uma coisa ou outra. Einstein havia nascido com 20 vezes mais glias que os comuns e ninguém saberia explicar esses privilégios cósmicos”. Zé Pedreiro retrucou de lá que não queria ser pedreiro. A vida era sofrida e o ganhame era pouco. Se ele tivesse nascido com um cérebro melhor, hoje estaria rico. Passei a odiar aquele ressentido. Esses, em vez de se esforçarem, preferem se fazer de vítimas.

No dia seguinte, o pedreiro era a ansiedade em pessoa. Não parava de ligar para alguém, no celular. Andava para lá e para cá. Eu, insistindo em cobrar o atraso na empreita. O servente, Antônio Pisão, fingindo cumprir o combinado. O Zé, no telefone. Eu, a ponto de ter um infarto por causa dos atrasos.

A manhã foi-se embora, completamente improdutiva. O almoço; demorado. Já cogitava dispensar os dois quando resolveram trabalhar. Sem pressa, pegaram a tralha e se dispuseram a recomeçar a malhar naquela "academia". Não demorou muito e o sol já dava sinal de cansaço, querendo rumar para detrás da serra.

Não sei como aconteceu. Só sei que o Zé Pedreiro, mal havia começado o trabalho, parou, a fim de telefonar para o cunhado, que trabalhava não sei onde. Finalmente resolveu voltar ao serviço. Antônio e eu puxávamos a linha diagonal para assentamento da cerâmica, quando senti uma pancada seca na nuca. Foi aí que me vi agonizando numa poça de sangue. Meu corpo lá embaixo, no chão da cozinha e eu conseguindo enxergá-lo. Engraçado é que meu corpo estava sem a cabeça, mas eu conseguia vê-lo mesmo assim. Uma picareta alvião ensanguentada, jogada de qualquer jeito. Eu, vendo tudo, em angustiante lucidez de ver. Enquanto isso, o pedreiro apressava o Antônio: “liga no IML que o Valdomiro tá esperando a gente”.

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1 - Dar um tapa de weed: fumar maconha.

2 - Glia: células não neuronais do sistema nervoso central, responsáveis pelo suporte e nutrição dos neurônios.