O MONSTRO

O menino entrou na classe e caminhou calado até seu lugar, ao fundo da sala, sentando-se numa carteira que ficava junto à grande janela, por onde o sol derramava a luminosidade cansada de outono. Como de costume, ele abriu um velho livro ilustrado e pôs-se a lê-lo com atenção, indiferente aos colegas que faziam uma algazarra terrível. Gostava de estudar a vida dos gigantes da história, como aquele Felipe da Macedônia - pai de Alexandre - Napoleão, Calígula, ou Herodes, o grande, que tentara matar o menino Jesus. Súbito, um dos garotos, que permanecia de sentinela no corredor, entrou afobado na sala de aula, gritando desvairado:

- A criatura vem vindo...

Um silêncio artificial estendeu-se sobre a classe feito um poncho de lã, dando a impressão de que findara ao mesmo tempo a corda de mil gramofones. O mestre-escola atravessou a porta arrastando seu passo coxo, o mesmo que o acompanhava desde os doze anos, quando um de seus pés fora mordido pelas engrenagens da maria-fumaça. Todos os meninos levantaram-se mecanicamente, com os olhos atados ao chão, mas com os pensamentos gazeteando livres pelos campos frescos da velha Áustria, cobertos de trevos e margaridas.

- Sentados! Grunhiu o mestre com seus dentes de javali a escapar pelos beiços mal-humorados.

O professor era um velho judeu asquenazita, alto, chupado e sinistro. Vestia-se invariavelmente com o mesmo paletó amarfanhado, gorduroso, a recender um aroma nauseabundo de coisa velha, de naftalina. Trazia a cara sempre muito bem escanhoada, os cabelos grisalhos penteados para trás, untados com pasta mentolada de alfazema. Metessem nele uma capa vermelha e preta e ali estaria o próprio conde Drácula a lecionar os rudimentos de álgebra e composição para os meninos do primário.

- Fizerrram o que pedi?

Nenhum boca ousou responder. O que o velho mestre havia pedido nada mais era do que uma lição de casa um pouco extravagante. Sugeriu que os alunos trouxessem algum objeto de sua estima, para que este servisse de tema às próximas redações. Como ninguém se manifestou, o menino que ainda há pouco lia sobre os grandes vultos da história ergueu o braço timidamente e disse:

- Eu trouxe.

- Muito bem... muito bom mesma... trrraga-o parrra eu verrr...

O menino levantou-se e caminhou até o mestre, impávido como um orgulhoso general diante de inimigo sabidamente mais forte, procurando não demonstrar qualquer sinal de medo ou apreensão, se apreensão ou medo lhe falasse dentro d’alma naqueles breves segundos em que atravessou toda a sala, sob os olhares de ratoeira que a curiosidade dos colegas semeava. O professor esticou todas suas enormes mãos de rapina sobre o menino, que lhe entregou o pequeno pacote, embrulhado em papel celofane. Antes de desembrulhar o misterioso objeto, o velho mestre arriscou um palpite, procurando ser simpático diante da classe:

- Serrrá uma frrrauta?

Não era. A forma longa e delgada traíra-lhe o juízo. Na verdade, tratava-se de um belíssimo caleidoscópio, feito pelo próprio menino, numa tarde feliz de engenho e destreza. Amava o caleidoscópio como mais tarde amaria cegamente a cruz adotada pela sua fé. Passava horas e mais horas contemplando aquelas formas mágicas que o acaso esculpia nas cirandas de um carrossel alado. Quando, porém, o professor meteu dentro do caleidoscópio seu olho obtuso, faminto de beleza e novidade, quase teve um troço. Atirou violentamente o brinquedo ao chão, dando tamanho pulo para trás, que quase desatarraxa a bunda. As crianças todas assistiam ao espetáculo mal podendo conter as gargalhadas. No instante em que o menino, proprietário do caleidoscópio, apanhou-o do assoalho e, fitando o seu interior, lançou-o novamente ao chão, como se tivesse os dedos queimados em brasa, não houve jeito e a sala inteira irrompeu numa apupada de circo.

- Silência! Vamos fazerrr silência! Berrava o velho mestre, batendo com punhos apopléticos sobre a mesa.

Ainda sem compreender, com os joelhos trêmulos de susto e dedos cuidadosos de amante sutil, o menino colheu outra vez o caleidoscópio sobre o piso de tábuas envelhecidas. Céus!... Não sei como o diga. Havia ali dentro uma coisa horrorosa, terrível, macabra. Até hoje sinto certa repugnância ao recordar tal imagem, mas agora preciso contar tudo. No interior do caleidoscópio havia nada menos do que um dinossauro, quero dizer, uma lagartixa... viva!

Naquele instante, o mundo inteiro parecia despencar sobre as costas do pobre menino. Compreendera que seu trabalho fora sabotado, certamente na hora do recreio, quando saíra para o pátio e deixara o caleidoscópio em sua carteira, fiando-se descuidado na probidade dos homens. Molecagem desse quilate não tinha perdão e, por muito menos, deuses justiceiros fulminavam os mortais com raios lançados do impiedoso Olimpo. Corja de patifes! Tinha certeza que a autoria daquela canalhice levava a assinatura de três colegas de classe, que ele odiava. Na semana passada, haviam lhe chutado o traseiro diante da pequena Eva, a menina mais bonita da escola. Deus, como os odiava! E tudo porque lhe invejavam a pureza de seu sangue. Um deles era um menino judeu, que pegara o costume de lhe colar às costas bilhetinhos com dizeres indignos. Outro, um moleque russo, vermelho como o diabo, habituara-se a lhe chamar por nomes feios lá na língua dele e o terceiro era um cigano desprezível, apenas tolerado no colégio, pois se dizia que sua mãe prestava serviços indecentes a cavalheiros abonados.

O velho mestre apanhou a detestada palmatória e bradou satisfeito como um cavalo:

- Estique o monzinha, menina danada!

O pequeno ainda tentou argumentar que era inocente, que fora vítima de uma conspiração maquiavélica e quis acusar os verdadeiros culpados daquela brincadeira sem graça, mas não teve como escapar ao castigo. Dolosamente, foi recebendo os golpes violentíssimos, um... três... cinco... dez bolos bem pesados, que lhe marcaram para sempre, não as palmas vermelhas, mas sua consciência enlutada. Chorando de dor, com os olhos pingando veneno, o pobre menino pensava apenas em se vingar de toda aquela infâmia recebida. Eles que aguardassem...

- Senhorrr Adolf, bradou o mestre, Senhorrr Adolf, agorrra volte parra seu lugarrr! Esperrro que hoje tenha aprrendido o liçon!

O pequeno Adolf obedeceu e caminhou calado até sua carteira, olhando com desprezo para fora da classe, além da grande janela, além dos campos cobertos de trevos e margaridas, além do impiedoso Olimpo, onde os deuses continuavam tramando contra a fortuna dos homens.

José Martino
Enviado por José Martino em 20/01/2007
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