A janela que abre para dentro e os passos de agora
Dentro de mim um monte de fios se ligavam uns nos outros e acendiam uma lâmpada no meu coração. Como era todo ao contrário, as pessoas quando abriam meu peito não enxergavam nada porque fazia tempo não trocava a luz quebrada por uma nova. Na minha cabeça o céu sempre me deixava calmo, mas acho que foi isso que me impediu de enxergar o caos dentro de mim. Além do meu coração sem luz, tinha meu estômago revirado por coisas bobas como borboletas, e as que eram pra estar lá dentro já tinham morrido sem se renovarem. Não tinha mais larvas e todos os insetos do meu pulmão estavam duros e presos. Meus ossos tão moles que não via nada além de músculos retorcidos no intuito de firmar o corpo. Mas meu corpo já caía à toa.
Quando me abriram pra ver qual era o problema, se assustaram com o número de remendos. “Esses músculos não eram pra estar assim...”, olhos se assustaram enquanto a lanterna fuçava as paredes por detrás da pele, algumas moscas ainda vivas conseguiram fugir. “Olha isso! Não era para estar assim! E essa lâmpada quebrada... Tem sorte porque o coração já tinha sido trocado por um mais resistente, senão esses cacos já tinham perfurado sua vida fora.” O outro tirou a mão de dentro do pulmão. Já estava quase sem osso, me parecia. A caixa torácica já tinha ido, aberta como asas, mas das que caem podres. Ainda lembro a primeira troca que fiz, quando me partiram o peito, partes tão fortes, ossos tão brancos. Pareciam mesmo asas. E apesar de tudo, leves. O problema é que nunca precisei de asas pra ir aos céus. Esse minha mãe me deu de presente – nunca o tire da cabeça, meu filho e será abençoado pra todo sempre. – eu obedeci até hoje, mas os médicos insistiram que eu precisava sentir pra poder avisar onde estava o problema da dor.
“Nós vamos tirar bem devagar e à principio o senhor vai morrer. Mas vai ser bem rápido! Na volta é que a coisa piora, porque aí vai doer de verdade.” Eles colocaram os grilos, borboletas e besouros mortos dentro de uma jarra com água pura. Eu senti vontade de bebê-los de volta... Tinha muito medo de me perder deles, ir sendo desmontado sem pedir, sem saber. Eu vi meus pedaços pela sala, mas não eram meus porque não sentia falta. Já aqueles seres pequenininhos viveram, voaram, beberam meu sangue... Chorava por eles. Foi então que tive meu chapéu retirado. De súbito apaguei e esqueci tudo. No escuro, vi algo se aproximar com garras. Essa coisa não tinha forma, assim como eu. E tentava me pegar, me juntar, e me amassava e socava. Carne, sangue, ele suava e socava, os dedos com unhas grandes e sujas penetravam minha carne fresca e vermelha e amassava e socava. Esticou-me sobre a pia, cortou fora coisas que não faziam parte. Ouvi um chamado: era o caos. De surdo passei a ouvir tudo, e o que era isso de ouvir que não sabia distinguir, apenas sangrava o ouvido. Queria minhas abelhas de volta e elas voaram vivas de novo pra dentro da orelha. Pude sentir o cheiro de mel. Estava crescendo outra vez. Mexi os dedos dos pés e cocei um pouco o ar pesado. Vi a névoa ou desfoque ficar colorido, e fazer o rosto de um dos médicos. E dentro de mim, fiz um sorriso que custou pra sair, mas quando foi, cuspi fora meus dentes todos. Eles jogaram um pouco de água e limparam todo o sangue. As abelhas não paravam de entrar pelas orelhas, parecia que chamavam mais irmãs e irmãos. Nisso eu sorria e a água limpava meus dentes. Os zumbidos iam crescendo e crescendo e eles falavam de dor. Que dor que eu não via?! Foi quando voltei.
Minha língua ficou pronta a tempo de me ajudar a gritar. A dor veio mais de dentro que de fora, embora não soubesse se tinha costas ou um fundo pronto. O vazio porque ainda não tinha coração – vinha de lá meu grito e minha dor; não sabia o que provocava o quê. Mamãe, me dê o céu de volta! Minha cabeça, meus fios... Sentia uma pontada por vez até vinte e sete trilhões nascerem por todo meu corpo pra só depois estufar uma pele dura. Eles jogaram mais água pura sobre mim e fui ficando leve até sentir macia e saber que estava deitado no chão; a cabeça ainda aberta da queda. Estivera na pia, mais fui crescendo tanto que caí e abri a cabeça. “Parece que ainda tá tudo ali, olha!” Um falava pro outro e meus olhos molhavam de sangue. “Acho que não era um caso descerebrado. Tenho quase certeza que só fora abafado!” O outro admitiu certa razão ao primeiro e vi o teto. Lindos, inúmeros, centenas de milhares de insetos! Moscas, besouros, borboletas, mariposas, joaninhas, grilos, percevejos, formigas, e até um par de louva-deus vieram me saudar. Eu queria falar, vinha essa força e se embolava na língua: “Vocês os trouxeram?” – perguntei, mas ainda sem voz e consequentemente sem resposta. Sabia que eram pra mim. Encaixaram os pulmões e fui inundado de ar.
O momento mais lindo: meus pequenos bichos voadores, zunindo, batendo suas asas contra a vida do sol entraram em mim. Em espiral, faziam redemoinho no ar – um pequeno tornado – indo ocupar suas casas. As borboletas pousaram de leve no estômago e senti uma pontada fria que me fez esticar a perna e quicar. Os médicos riram. O coração refletiu a luz; funcionava sua nova lâmpada que ainda ia me economizar energia por ser uma dessas luzes frias. O médico com meu coração evitava coçar os grilos que deitavam por ali. Mas eram tão verdes contra luz... E não via mais o sangue. Ele colocou com cuidado (senti as perninhas pularem para fora) e acendeu a lâmpada. Inspirei fundo e me pus sentado no chão. Todos os pelinhos do meu rosto eriçaram na presença da respiração do outro médico: o que usava óculos e tinha longas tranças loiras mais um lindo sorriso que me deixava como se ainda tivesse o céu na cabeça. Foi então que o vi, em cima da mesa, faltando algumas nuvens: meu céu, ainda lugar de paz e silêncio. Ainda lugar de refúgio e solidão. De repente arregalei os olhos e depois senti surpresa. “Notei que era só e fiquei triste e chorei.”, falei quase gritando. Os médicos riram enquanto chorei. “Você quis dizer que está chorando agora, não é?” eu respondi que sim sem dizer. “Então não precisa dizer, meu amigo! Já está chorando.” A médica limpou o que estava úmido no meu rosto. O outro foi recolhendo as ferramentas. Disseram que deveria descansar, dormir com a janela aberta e ir acordando aos poucos, cada dia um pouquinho. Quando sentisse meus dedos do pé esticarem e uma vontade enorme de falar o sono, deveria olhar o sol e sentir sua luz sobre os olhos. Só assim, depois e depois, devia ir colocando os pés no chão e andar acordado. Se não fizesse assim, meu coração era capaz de não aguentar e parar de bater.
“A senhora volta?”, perguntei à médica, quando eles me deixaram na cama. “Sim claro.” Ela sorriu de novo e quis levantar; me vi de pé, mas ainda estava deitado. As abelhas riam de mim, meu nariz escorria. Queria perguntar um monte de coisas que ia esquecendo e falar antes de esquecer, mas nada era certo nesse caos. “Você vai querer seu chapéu de volta?” Eles fizeram cara de silêncio sério e fiquei estranho. “Não sei...” pensei em mamãe, pensei em proteção, pensei no meu filho que um dia ia vir, bater na porta e deixar um tanto de amor pra mim. Ia querer que vivesse nos céus e partilhar dessa felicidade de vê-lo. Mas daí pensei na solidão que senti em estar lá, e em como isso me deixou relapso a ponto de quase morrer; em como nem vi ou soube do morrer da minha mãe. Não sentia que estivesse viva, mas também não tinha história pra contar. Pedi que deixassem o chapéu onde estava; que era o destino dele ficar onde está. Que as nuvens que já escaparam possivelmente iriam se rearranjar nesse céu de todos nós. “Mas por que você volta ‘sim claro’?”, perguntei sem pensar.
A médica e o médico já tinham saído e eu estava sozinho no que calculei serem oito dias. Mais uns vinte e sentiria meus dedões. Ou seriam trinta? Mais que um mês? Não! Não tomaria tanto tempo! Talvez. Tudo ainda se mexia lentamente dentro de mim. Tão inseguros, meus pequenos. Quando pisquei, já tinham passado mais duas semanas. Devo parar de pensar antes que esqueça de contar. Eu pensei que pudesse controlar algumas coisas minhas: que pudesse parar os zunidos, que fizesse os pensamentos contarem o tempo e que o tempo fosse devagar quando ficasse perdido só comigo. Mas nada disso pareceu verdade aos ouvidos de uma coisa que passei a chamar de consciência. De repente, sabia de toda minha vida: estou vivo, estou agora. Daqui a pouco, já pensei e já era o daqui a pouco. Estou agora vivo e a doutora veio aqui algumas vezes e segurou minha mão. Ela falou sobre coisas que pensava que queria ouvir, mas depois falou coisas que queria falar. Falou sobre a filha e apertou mais forte minha mão. Riu e chorou, contou piadas e cantou. Falou que o meu céu estava despedaçando na mesa. E comentou sobre minha aparência e desejou estar comigo nos tempos que se sucediam rápido. Mas não está aqui agora. Eu estou. E hoje, estou andando acordado, daqui a pouco já poderei procura-la e segurar sua mão firme na minha. E falar o que ela quer ouvir pra depois dizer o que quero, mesmo que com vergonha, mesmo que com medo. Algumas outras pessoas nem vão perceber, mas o tempo passou e já estamos longe. Sumimos.