Beco da Fome

Miguel Rodrigo estava bêbado no “Beco da Fome”, sentado à mesa do botequim ainda aberto, eram seis e meia da manhã, um reflexo da luz do sol batia no seu rosto. Um pirralho apanhou uma cédula de dez mil-réis que caíra do seu bolso, e falou:

- Meu velho, olha o seu dinheiro, caiu!

- ...

Miguel Rodrigo agradece com gesto de cabeça e faz menção com o dedo indicador da mão direita na palma da mão esquerda pedindo tempo.

Dois policiais fardados que passavam pelo beco, um deles deu um cascudo no pirralho, que revoltado disse:

- Não sou ladrão, tá pensando o quê?

- Esse filme já passou! – disse um dos policiais militares.

Miguel Rodrigo se levanta com esforço e, com gestos, pede paz. Sendo no entanto, conduzidos para a Chefatura de Polícia!

Na “Sorbonne” da rua da Aurora, ficou sem o seu bonito cinturão marrom Calvin Klein e sem os seus dez mil-réis. A guarnição de polícia levou o pirralho para o Juizado de Menores.

(...)

Marginalizadas também eram aquelas crianças no Cais do Porto do Recife, dormindo nas “Cupiras”, se alimentando com os despejos dos bares no Cais do Apolo. Para sobreviverem, muitos durante o dia iam engraxar sapatos, guardar e lavar carros. Outros preferiam furtar no Mercado de São José; enquanto isso, os pais “Cara Beba”, “Chico Trampa”, “Arribação”, “Bacalhau”, “Doidinha”, “Perneta” e “Pé de Ferro”, faziam a ‘perua’ (álcool com água e açúcar). Os pivetes quando regressavam de suas tarefas, entravam também na “Festa da Perua”. Embriagavam-se para esquecerem-se das misérias. “Pé de Ferro” relembra um acontecimento:

- Vocês não viram mais o padre Yank por aí?

- Não fala, ‘Pé de Ferro’. Queres morrer?

- Aqueles homens eram da polícia?

- Sei lá, eu sei que o padre é bom pra gente pobre... – é entrecortado por Chico Trampa, já bêbado com uma garrafa de cana na mão:

- Cala a tua boca, pirralho.

- Que nada, eu ouvi eles falando, dizendo que o padre era safado, mas tem apoio do Governo.

- O que é que a gente ganha com isso? Arranjei esse frasquinho de éter, vamos cheirar?

“Doidinha” adianta:

- Eu vou ficar na cola, que é mais fácil, né, meirmão?

- Aquilo é que é padre – diz Cara Beba, e dorme. Nisso diz Cocorote – Eles não estão mais perseguindo o padre não, e eu sei porque...

- Eles quem?

- A polícia, vocês não sabem que ele já foi preso?, lá no Beco da Fome?!

- Pior que foi mermo!

- Rapaz...

Nas proximidades do Beco da Fome, na 7 de Setembro, o menino arrancava as penas do pombo, quando é chamado atenção por José Azambujanra (O Poeta). O seu amigo diz:

- Vai se trocar com menino por causa de um pombo?, o pai é até crente...

- Aquilo é crente entre aspas do “Paraguai” – Risos - , terça-feira mesmo, aí no Beco da Fome, presenciei um policial militar torcer o braço deste menino, que aos gritos chamou atenção de todos que passavam. Inclusive, um oficial da PM que comandava a operação presenciou o fato. Cadê o pai dele?, analfabeto, só sabe andar com a bíblia embaixo do braço! O meganha só não deu continuidade por causa da minha interferência.

Azambujanra, com o seu amigo, foram à Livro Sete. Estudantes, intelectuais... conversavam sentados num dos bancos de madeira. A poetisa Poeta levanta-se do banco e abraça Azambujanra demoradamente. Eles se beijam à la... E o Vento Levou, e se retiram da frente da livraria. Já eram sete e meia da noite a livraria estava fechando as suas portas, quando um grupo de ‘crentes’ chegaram pregando o evangelho.

O seu amigo ficou ouvindo as pregações dos evangélicos. Enquanto isso, o casal de poetas decidiu tomar uns drinques no Uirapuru, na Matias de Albuquerque. Uma komby em frente ao bar trazia um adesivo no pára-choque, onde se lia: JESUS TE AMA.

(...)

Poeta e Azambujanra levantaram-se e seguiram em direção à Avenida Conde da Boa Vista. Via-se cartazes nos cinemas Art Palácio e Trianon: DOROTHY LAMOUR – EM ‘ A DEUSA DA FLORESTA’. Mais adiante: CUQUITA CARBAJO – AMANHÃ NO TEATRO ALMARE – NÃO PERCAM... HOJE O CANTOR ALMIR TÁVORA... Na Ponte Duarte Coelho juntaram-se a um grupo de jovens estudantes.

- No Gambrinus não tem isso...

- Mataram o rapaz com trinta e três anos de idade, e hoje usam e abusam do nome dele. Aí é que está a hipocrisia desse povo. Os adesivos estão por aí nos carros: DEUS É FIEL! Valha-nos, Nossa Senhora!!!

- Desse jeito, aonde iremos nós?

- Olha lá um grupo de crentes do ‘Paraguai’!

(Risos)

- Pega o beco! Recitando as poesias de Azambujanra...

(...)

Azambujanra observa na música, quando no equipamento de vídeo de um dos botecos coloca a fita retransmitindo o show dos Roling Stone (Gimme Shelter), a quantidade de gente que fica vidrado na TV é impressionante, incontrolável e provoca um processo de verdadeira histeria coletiva. Principalmente na hora em que os Roling Stones tocam Under My Thumb. Contrastando, é claro, com o show no autódromo de Altamont, na Califórnia. Numa verdadeira miscelânea, ouvia-se baião, xote, samba-rock, forró-pé-de-serra, poesia...

* Do livro Trem Fantasma, pp. 15-21. Edição 2005.

José Calvino
Enviado por José Calvino em 02/03/2012
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