O CALÍGRAFO DE DEUS
O CALÍGRAFO DE DEUS
Por Walter de Queiroz Guerreiro
Realizaria a obra daquele dia, como a de todos os dias. Ele era um artista, o calígrafo mais respeito da corte do Shah, conhecido como Ibn Suleiman, o mago.
Pensou outra vez naquilo que aprendera quando ainda discípulo: Deus criou a escritura nas nuvens para que os homens pudessem lê-la. Quando ele conseguiu, enrolou-as e as colocou de lado. O mundo era um Véu, uma ilusão, e expressa aquilo que todos sabiam pela Tradição. Deus criara setenta mil véus de luz e sombra, separando-nos da presença Dele. Por outro lado a própria presença do Universo era a existência de Deus, já que nele se revelava a divindade. O universo, portanto escondia e revelava, o véu tornando manifesta a Presença. E a expressão máxima da Presença era a escrita, revelada por Deus aos homens. A mão que escrevia tornava manifesto o Criador, uma vez que somente o Homem recebera esse dom.
Dessa maneira ele se tornara calígrafo, e cada vez que executava as letras sobre o papel executava o plano do Criador. Olhou as folhas separadas em blocos bem arrumados, cada papel com suas características, o fir’auni ásperos e espessos, os solaymâni, os já’fari, os talhi e tahiri, além dos mais finos nihi, cada um respondendo de uma maneira à sua mão. Em escaninho separado estavam os hairi, gouni e mukhayyri coloridos, raramente empregados, utilizados apenas a serviço real, quando a correspondência exigia a cor da justiça ou a do luto. Separou uma folha de já’fari, colocou-a sobre a prancha de castanheira, dura como mármore e com o ovo de cristal esfregou a superfície, tornando-a lisa, brilhante e escorregadia como o próprio cristal. Tomou então da cartela com as linhas traçadas e marcadas da esquerda para a direita com fios de seda, pressionando ligeiramente o papel sobre os fios – a folha estava pautada. Como águas espraiadas sobre a dura superfície das lajes de pedra dos rios, correm os sulcos de luz, caminhos de uma corrente impetuosa suspensa com o simples erguer da mão, da mesma maneira como o fez o Criador, jamais se comparando a Ele, um simples servo de Deus.
Escolheu em seguida a pena que usaria naquele dia: o melhor qalaun da Babilônia, tratado por imersão na água fria do degelo, com fibras absolutamente retas, a ponta inferior macia e a superior dura, o lado macio com o dobro da espessura do outro – era a pena certa para a escrita naskh . A tinta seria a madad, feita com negro de fuligem misturado com mel e goma, um riacho negro murmurando os sons do mundo, espelho impossível da vaidade humana.
Concentrou-se por um longo tempo no segredo da criação da Palavra. A natureza da letra era viva e como todas as coisas vivas, em constante renovação. Cada letra pertencia a um dos quatro elementos da natureza, que deveriam se harmonizar para levar ao todo. Traçou a primeira letra, o alef de A, com dez pontos de altura, no formato de uma lança sem ponta, na parte mais larga com meio ponto, os lados paralelos e apenas a ponta se estreitando ligeiramente. Pensou: é como um homem de pé que olha ligeiramente para a ponta de suas babuchas. Continuou traçando as letras com cuidado, cada letra na sua proporção, a escrita cobrindo o papel. Quando a pena parou de correr sobre o papel polido, Ibn Suleiman olhou o que escrevera: Não existe deus além de Deus, em que a revelação do Nome mostrava a presença do divino.
Seu coração se rejubilou com o que escrevera e sentiu-se embriagado com a presença Dele. No seu quarto entre os papéis, os cálamos e a tinta, somente sentia a presença da Palavra. Mais uma vez realizara a tarefa, por instantes cumprira com sua obrigação de Homem, deixando a mão executar a obra do Criador.
Notas:
1 Qualun- Cálamo,haste de gramínea usada para escrever.
2 Naskh - Uma das formas clássicas de caligrafia muçulmana,tendo como base as proporções de um ponto feito com a ponta do cálamo,obedecendo a escala de seis para um nas letras .
O CALÍGRAFO DE DEUS
Por Walter de Queiroz Guerreiro
Realizaria a obra daquele dia, como a de todos os dias. Ele era um artista, o calígrafo mais respeito da corte do Shah, conhecido como Ibn Suleiman, o mago.
Pensou outra vez naquilo que aprendera quando ainda discípulo: Deus criou a escritura nas nuvens para que os homens pudessem lê-la. Quando ele conseguiu, enrolou-as e as colocou de lado. O mundo era um Véu, uma ilusão, e expressa aquilo que todos sabiam pela Tradição. Deus criara setenta mil véus de luz e sombra, separando-nos da presença Dele. Por outro lado a própria presença do Universo era a existência de Deus, já que nele se revelava a divindade. O universo, portanto escondia e revelava, o véu tornando manifesta a Presença. E a expressão máxima da Presença era a escrita, revelada por Deus aos homens. A mão que escrevia tornava manifesto o Criador, uma vez que somente o Homem recebera esse dom.
Dessa maneira ele se tornara calígrafo, e cada vez que executava as letras sobre o papel executava o plano do Criador. Olhou as folhas separadas em blocos bem arrumados, cada papel com suas características, o fir’auni ásperos e espessos, os solaymâni, os já’fari, os talhi e tahiri, além dos mais finos nihi, cada um respondendo de uma maneira à sua mão. Em escaninho separado estavam os hairi, gouni e mukhayyri coloridos, raramente empregados, utilizados apenas a serviço real, quando a correspondência exigia a cor da justiça ou a do luto. Separou uma folha de já’fari, colocou-a sobre a prancha de castanheira, dura como mármore e com o ovo de cristal esfregou a superfície, tornando-a lisa, brilhante e escorregadia como o próprio cristal. Tomou então da cartela com as linhas traçadas e marcadas da esquerda para a direita com fios de seda, pressionando ligeiramente o papel sobre os fios – a folha estava pautada. Como águas espraiadas sobre a dura superfície das lajes de pedra dos rios, correm os sulcos de luz, caminhos de uma corrente impetuosa suspensa com o simples erguer da mão, da mesma maneira como o fez o Criador, jamais se comparando a Ele, um simples servo de Deus.
Escolheu em seguida a pena que usaria naquele dia: o melhor qalaun da Babilônia, tratado por imersão na água fria do degelo, com fibras absolutamente retas, a ponta inferior macia e a superior dura, o lado macio com o dobro da espessura do outro – era a pena certa para a escrita naskh . A tinta seria a madad, feita com negro de fuligem misturado com mel e goma, um riacho negro murmurando os sons do mundo, espelho impossível da vaidade humana.
Concentrou-se por um longo tempo no segredo da criação da Palavra. A natureza da letra era viva e como todas as coisas vivas, em constante renovação. Cada letra pertencia a um dos quatro elementos da natureza, que deveriam se harmonizar para levar ao todo. Traçou a primeira letra, o alef de A, com dez pontos de altura, no formato de uma lança sem ponta, na parte mais larga com meio ponto, os lados paralelos e apenas a ponta se estreitando ligeiramente. Pensou: é como um homem de pé que olha ligeiramente para a ponta de suas babuchas. Continuou traçando as letras com cuidado, cada letra na sua proporção, a escrita cobrindo o papel. Quando a pena parou de correr sobre o papel polido, Ibn Suleiman olhou o que escrevera: Não existe deus além de Deus, em que a revelação do Nome mostrava a presença do divino.
Seu coração se rejubilou com o que escrevera e sentiu-se embriagado com a presença Dele. No seu quarto entre os papéis, os cálamos e a tinta, somente sentia a presença da Palavra. Mais uma vez realizara a tarefa, por instantes cumprira com sua obrigação de Homem, deixando a mão executar a obra do Criador.
Notas:
1 Qualun- Cálamo,haste de gramínea usada para escrever.
2 Naskh - Uma das formas clássicas de caligrafia muçulmana,tendo como base as proporções de um ponto feito com a ponta do cálamo,obedecendo a escala de seis para um nas letras .