Time (Don't) Cure Hearts
"I wanna shine on in the hearts of men
I want a meaning from the back of my broken hand".
Existem poucas coisas piores do que ser assaltado por um piriri depois de sair de casa de banho tomado e atrasado para algum compromisso. Uma delas é estar diante de navalhas e de uma bacia com água morna, se afogando em lágrimas ocas e doces, pronto para cortar os pulsos, e o telefone tocar, você atender, e do outro lado haver uma pessoa que você daria o sangue que está prestes a derramar, chorando copiosamente. Poucas coisas te deixam mais confuso do que o fato de ter atendido um telefonema numa hora tão crucial da (in)existência. A confusão do desespero de ser naquele aparelho o repousar de uma ânsia aguda. Foi assim que aconteceu comigo: atendi, e do outro lado estava alguém que me fazia perder as poucas estribeiras que me restavam; alguém que tinha plena ciência e deleite disto/nisto. Eu sabia mesmo antes de o maldito tocar que ele tocaria; eu sabia que mesmo antes de olhar a bina seria ela do outro lado.
- Você não perde essa mania de ligar na casa de um trabalhador às cinco da manhã, não é?
- O que você estava fazendo?
- Criando mais coragem.
- Você não está falando sério, está?
- O que você acha?
- Que está... Desta vez foi diferente te ler. Senti que aquilo não era só catarse, desabafo, choramingo... O seu saco cheio naquelas linhas me tirou o ar.
Suspirei.
O aparelho pesando uma tonelada.
Meus olhos ardendo.
- Sabe? Foi uma das coisas mais bonitas que eu já li...
- Mais lindas do que as coisas que te escrevi?
- Não disse "lindas", disse "bonitas", ô, pretensioso.
- Não fode, neném!
Desliguei. Queria bater o troço, fazer um estrondo do outro lado da linha, mas era um modelo portátil metido a besta.
Que, pelo menos, tinha sinal no banheiro.
Sentei na privada, nu, e depositei os pés na água já quase fria.
Li que a água morna facilita o fluxo do sangue pra fora do corpo.
Apressa a hemorragia.
Eu tinha pressa em me esvair todinho de sangue no banheiro de casa.
Deus que me livre de correr o risco de me encontrarem com vida.
Tocou, e atendi no segundo subseqüente ao primeiro alarido.
- Chora.
- É aquele tal de hipotético mosquito disseminador de incuráveis comichões existenciais que voltou a te picar?
- Andei passando repelente, e transcendi isso aí, Crenquinha.
- Como assim?
- Essa definição Negsziana¹ do inferno que me assolava deu lugar a uma apatia filosófica, se é que posso tomar essa liberdade de expressão...
- Hum... Que mais?
- E cheguei à conclusão de que só existe um problema filosófico realmente sério: e é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida.
- Você pirulitou de vez, mesmo...
- Essa constatação é do Camus, ele que era empirulitado, mas ela é tão óbvia e tão eu que bem poderia ser minha.
- Então quer dizer que, sob seu ponto de vista, viver não vale a pena?
- Não ultimamente... Ando muito cansado das velhas mesmas repetições, sabe?
- Sei... E essa... [...] - Folhas sendo viradas e reviradas. A voz volta: - "O novo é, de qualquer forma, o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem"².
- O bem não é necessariamente o bem, bem.
- Vai se foder então, caralho!
E desliga.
Aproveito o ensejo do desligamento e das contrações do intestino e faço um pouco de força para esvaziá-los; ao passar o papel, vejo sangue. Meu corpo já clamando pelo desencarne antes mesmo de eu pô-lo em prática.
A ideia de morrer sangrando pelo cu não me soava elegante.
Lavei as mãos e esfreguei-as nos meus pés, já engiados, com as carnes ao redor das unhas esbranquiçadas e moles.
Me imaginei dentro de um caixão, dentro de uma cova, com toda a terra úmida em volta, ficando esbranquiçado e mole tal qual meus dedos.
Não se pede pra nascer, morre-se feiamente, e o intervalo entre um desgaste e outro é sofrido e sem graça, enfeitado com ilusões de grandiosidade e pompa, com sonhos de dinheiro e fama, que sempre resultam no mesmo tédio.
Vida... Esse grande bolo de bosta com calda de chorume querendo se passar por cupcake.
O telefone tornou a tocar.
Se devo atender ou não, eu não sei.
Já estava bem fatigado da supressão do que sentia pela mulher ingrata que me ligava; se demonstrava o que sentia, ela desaparecia por semanas.
Por meses.
E quando eu pensava que estava livre de seu cabresto invisível, ela tornava a me ligar. Sempre às quatro da manhã. E tudo voltava ao ser-ou-não-ser, ao joguinho de sedução, a ela lindamente saçaricando com a minha cabeça de João Batista.
Se ela demonstrava o que sentia por mim, eu enlouquecia, mesmo sem saber discernir O QUE era sentido naquele coração de gelo.
Qualquer esmola que ela me oferecia me dava forças pra enfrentar o dia seguinte.
Atendi.
- Eu não acredito que você tenha coragem de fazer!
- Espera aí! [...] - Vamos lá [...] - Pronto, fiz o primeiro corte, na horizontal, só pra sentir como é.
- Como o faria segurando o telefone?
- Prendi entre a cabeça e o ombro.
- Você NUNCA conseguiu fazer isso!
- Consegui, agora mesmo; inclusive, ainda estou com ele nessa posição.
- Você é burro demais pra conseguir fazer isso, compreenda, toda vez que você tentou fazer eu não entendi uma palavra do que falou...
Era verdade. Me conhecia tanto!
Atravessei a casa, entrei no quarto, e a paisagem de sempre: coleção de copos sujos na mesa do computador, livros espalhados por todo canto, poeira, roupa suja que ficava oscilando entre a cadeira e a cama, dependendo de qual utensílio eu fosse repousar as ancas e etc.
Duas décadas e meia de vida, e este era todo o meu espólio.
Era de se encher de orgulho pela inutilidade com que vivi.
Meu ninho... Ali, entre os copos, ainda jazido o bilhete trocado em sala de aula.
"É bom a gente se voltar pra dentro: parar e ficar na introspecção. Acho que é questão de sobrevivência"³.
Teorias de viver.
E de morrer.
Numa província não tão longe da capital sufocante que tenho como cidade natal, ela falava sozinha ao telefone; da cama, eu pude ouvir as dezenas de alôs oriundos de uma caixinha preta que era morta, que só trazia morte em cima de morte; tudo morrendo através dos quilômetros de cabeamentos, dos milhões de quilômetros de ondas via satélite, de ondas via crucis; tudo atrasado e embaralhado, falso e desgastado.
Deitei.
Já longe da ideia das navalhas e da água avermelhada.
Deitei de bruços, com a munheca dobrada sob o travesseiro, com a bunda mais ou menos limpa apontada pro teto.
Amanhecia, e eu não tinha o que fazer além de esperar outro dia passar para eu ficar biologicamente mais perto da morte. Não conseguia arranjar emprego, e tudo o que eu tinha de experiência não me servia pra nada.
Escrever... Que bela bosta!
Uma ex-chefe escrevia "descançar" pra ganhar oito vezes mais que eu.
Se um dia em meu peito pulsou a esperança de que ficar vomitando palavras me tornasse especial, tal esperança minguou de tanto desencanto.
O celular toca, e é ela novamente.
- Melhorou?
- Sim.
Nem sentia mais revolta. Nem vontade de atentar contra meu corpo. Nem mais nada.
Letargia.
- Eu nunca te falei isso, mas te acho tão lindo...
- Por quê?
- Por que o quê? Você é lindo?
- Não. Por que está falando isso? Só agora?
- Você, mais do que ninguém, sabe o que a cogitação da possibilidade da perda gera nas pessoas, não é?
- Gera apego. Gera saudades. Gera vontades. Gera desejos. E zera desejos, no seu caso.
- No meu caso?
- Você, mais do que ninguém, sabe o que a ânsia por ter perto suscita nas pessoas, né?
- Gera afastamento. Gera preguiça. Zera possibilidades.
- Temos um impasse.
- Temos um disfarce.
- Temos um engodo que nunca dá em nada.
- Dá, dá sim! Você se supera sempre que te firo.
- E isso te é aprazível?
- Não me é; TE é.
- Você é uma bruxa filha da puta!
- Você é meu escritor favorito, entenda. Não pode(mos) passar disto.
- Por que essa aglutinação? Por que essa hesitação?
- Porque não sei como será o dia de amanhã!?
- Ainda tem dúvidas? Você não dá o braço a torcer. Nunca.
- Nunca diga nunca.
- "Mimimi, nunca diga nunca". Você, com um clichê desses?
- Oras, ele serviu bem nesse contexto!
- Daqui a pouco você se sai com um "o essencial é invisível aos olhos".
- "Não tenho tempo pra nada. Ser feliz me consome muito".
- Me fazer infeliz te consome muito também, né?
- A estatueta de Melhor Drama do Oscar pesa quantos quilos, menino?
Os bem-te-vis e pardais já rachavam o bico na/pra alvorada.
O gato da vizinha recém tinha virado o lixo atrás de restos de frango.
O ar frio e fresco da manhã roçava sorrateiro nos meus calcanhares.
O meu coração pulsava tranqüilo, manso, e com uma alegria pequenina e sincera.
- Por que sou bruxa?
- Porque você tem a mão que me empurra e me tira do limbo.
- Você é um bebezão carente!
- Teu cu que é carente, biscate!
Aquela risada estrondosa e relinchante suprimida pra não acordar a mãe.
Por um minuto - de glória - inteiro.
Um alento para um dia inútil.
- Preciso desligar... Acordo daqui a uma hora.
- Você não perde a mania de não dormir, né?
- Tenho insônia, que posso fazer?
- Dormir é mainstream demais pra você, cultzinha.
- Não ser pedante é mainstream demais pra você.
- Bom, também tenho que dormir... Pra nada, mas tenho.
- Posso ficar sossegada, então?
- Pode sim, amor.
- Amor?
- Força de expressão adquirida em ambientes laborais, sabe? Tipo aqueles "florziiiiinha" irritantes de vadia falsa.
- Mas você me ama que eu tô ligada.
- Amo sua prepotência.
- Consciência de classe.
- Tchau, Crenca!
- Chatinho... Vê se dorme de uma maneira que se possa acordar, viu?
- Deixa comigo. Qualquer coisa arranco o pau e ponho num vidro de maionese com formol pra você, no estilo Rasputin.
- Faz isso não, que é capaz de eu comer pensando que é uma azeitona.
O relincho. Metade do outro dia já salva.
Desligamos.
Sozinho novamente.
Caminho até a lavanderia e pego um balde.
Encho-o com a água quente do chuveiro.
Rasgo os antebraços do cotovelo ao pulso.
Delirando, mergulho-os, tingindo a água.
Sentindo ardência e fraqueza.
A sístole e a diástole concentradas na pele arreganhada.
Resvalando para uma brancura estranha; resvalando para o tal dia salvo.
Morrer é tão simples e prático.
Um dia para sempre.
Um dia eterno.
Um dia...
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Referências.
¹ - Eduardo Negs Castro
² - Friedrich Nietzsche
³ - Maria Julia C.
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27/02/2012
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Windsor for the Derby - The Melody of a Fallen Tree
The Lawrence Arms - Are You There Yet, Margaret? It's me, God!
Green Day - Scattered
The Killers - All These Things That I've Done