Pareço gente grande

O menino estava pra se jogar no colo da mãe. Queria a mãe, que empurrou ele pra longe, xingou o coitado, "Minha mãe nao liga pra mim, vó ". "Liga sim, é que ela é ocupada, muita roupa pra lavar". Saiu pro quintal, se jogou no chão, sujou a roupa, quando voltou levou um tapa na cabeça. "Vê se não suja a roupa assim". "Ta vendo vó, minha mãe não gosta de mim". "Gosta sim, é que você não ouve ninguem". saiu pra rua, desceu até o fim, dobrou a esquina e passou o mata-burros.

Andou pelo mato, pelas trilhas sinuosa, se protegeu da quentura do sol, nas copas dos pés de ingás. Se afundou na capoeira, imitava um indio, um general, um matador, um assassino dos filmes . Com uma vara grande fazia de espingarda. Matava passarinho, matava capivara, saruê. Pá Pá Pá. Virou e matou o pai, a mãe. pá pá. Teve prazer em sua mira. Ainda deu uma coronhada na avó, que pedia clemência, sem culpa, deu-lhe um tiro na cara. bem no mei da cara. Pá. Deu uma risada pra fora, não sabia dessa vontade de ser mal. E atirou pro céu. Pá Pá, Pá. A garganta doeu de tanto tiro que deu.

Uma imensidão de verde e de céu lhe abriu aos olhos. Nunca tinha tinha ido até ali, seu limite era a esquina da sua rua. Nao sabia que fora da cidade, as cores eram tão fortes, tão vivas. Nao sabia tambem que existia tanto tipo de pássaros, e tanto vento, e que no fim do horizonte, a terra se grudava no céu.

Voltou quase no fim da tarde. As donas de casa na janela, parou de frente o bar de Seu Aurélio, e viu muitos homens, todos grandes, velhos, de bigode, chapéus e cinto de couro. Contando casos, jogando pinga no chão para o santo. E rindo e rindo e rindo. Acreditou que as pessoas mais velhas são mais felizes. Veio uma vontade de crescer, ser gente grande. Andou bem devagar, vendo tudo que antes não olhava com cuidado. Viu que sua cidade estava mais bonita depois do calçamento de pedra. Olhou também o muro da escola, pintado de amarelo, de cima até em baixo. Viu a terra toda contornando a cidade, que antes parecia separada do mundo. Os pontos brancos nas fazendas, vaquinhas comendo capim. Sentiu tão aliviado. Na porta de casa, sua mãe estava na janela. Esperava já um tapa na orelha ou coisa assim. Entrou de cabeça baixa, nao disse nada.

- Jandir!!!

A mãe gritou quando dobrava o corredor da cozinha, sentiu medo. Virou e perguntou o que era..

- Mamãe fez biscoito de goma. Deixei um pra você. Tem café na garrafa. Sua avó que fez.

Não entendeu nada. Levantou o pano de prato que cobria a caçarola, havia dois ximangos, grandes e suculentos. Na prateleira, copo de esmalte descascado, pegou o que mais gostava, de asinha torta de velha. Encheu de café. Fumaça forte. Deu mordidas grandes nos biscoitos, muito tempo sem comer. Banhou o resto no café quente. Comeu com gosto, viu que a boca tem varios lugares que sente diferente. Ficou degustando em cada cantinho dela. Sentiu culpa por ter matado a mãe, mesmo de brincadeira, agora ele chega e ela lhe dar biscoito, chama pelo nome. Pensou no pai, que deu um tiro bem na cabeça, caindo de costa, sem chance de se defender. Ele caiu morto, nem se mexeu.

Está agora louco pra ver o pai, saber se está bem. Tinha medo de que tudo que pensasse virasse realidade. Descobriu que passava muito besteira em sua cabeça. Mordeu mais uma vez o biscoito. Viu que a mãe colocou manteiga, fez com amor. Por isso estava cremoso. A xicara, que de tao velhinha quase nao tinha mais a cor branca, esquentava por fora, quando o café estava quente. Foi da sua bisavó, que morreu no ano passado. Não fazia nada, o dia todo sentada, costurando, e cuspindo fumo na latrina, um nojo, mas era bom ter ela perto.

- Quando esfriar o café, toma banho, antes do seu pai chegar!

- Ta bom, mãe.

Não desobedeceu. Nao teve raiva, não enfrentou. Viu que dentro dos olhos da mãe tinha uma faisca de alegria.

Correu até o quarto da avó e disse que ela estava bonita. Ela riu. Gostou de ser chamada de bonita. E viu que gente grande parece criança.