Cérbero Hermafrodito
Sentou-se, ereta em frente à penteadeira, a figura. Sim, figura, indivíduo, coisa, criatura, porque era humana. Era humana, e sua humanidade era marcante, em seus traços multifacetados, um verdadeiro caleidoscópio de carne. Comecemos por seu rosto: Era andrógino? Hermafrodita? Não, era um mosaico fluido, como as organelas multifacetadas de seus milhões de paredes celulares das muitíssimas células que constituíam aquele corpo anormal. O rosto, uma massa de carne, parece, alterava-se em feições humanas aleatórias, que competiam por espaço, por brilho, por hegemonia. Ali estava uma criatura formada por muitas outras criaturas. Era como fosse um Cérbero bípede, humanóide, que guardava aquele espelho naquela penteadeira. Era ela, a Criatura Coletiva. O incessante guarda do Ego. A esfinge dominadora do tesouro enterrado no âmago da alma humana. Disse dominadora? Sim, era exatamente isto. Mas não possuidora. Guardava ela aquilo que não podia ter. E contemplava-se, embevecida da própria anti-naturalidade, os confins infinitos daquele espelho que é a Reflexão Humana. Mirava-se ao infinito cristalino, e observava impotente, a massa de carne de seu rosto e corpo mudar. Ora crespos cabelos cresciam-lhe, e a pele enegrecia, para ser substituída pelo alvo da nevasca, dos longos cabelos lisos, louros, e os olhos azuis semelhantes a safiras despontavam, assim como os seios fartos. Logo depois, as pernas tornavam-se musculosas, o queixo quadrado, másculo, e os cabelos curtos. Ali estava um perfeito indivíduo homem, o pênis surgindo por último, a glande arredondada, as veias salientes, azuladas. Aquela massa de coletividade, então, envergonhava-se de si mesma. Queria ser uno. Queria ser estável, e abandonar o gasoso ideal das muitas possibilidades aleatórias de sua multiforme existência. E, no embevecimento narcisista de sua agonia, contemplava-se no espelho, como que chorando de admiração por sua feiúra dignificada no desejo de tornar-se Ideal. Tornava-se, em seus sonhos, uma só mulher e homem, belos, musculosos. A mulher era loura, de longos cabelos lisos, e olhos azuis. Possuía seios fartos, círculos róseos, e mamilos pequeninos. Os quadris eram fortes, definidos, largos, e as coxas eram seus contrafortes, protegendo a entrada da fortaleza que, uma vez invadida, leva ao prazer. Sua forma masculina era, como a fêmea, de pele bronzeada, de uma masculinidade nata. O queixo forte, os lábios sensuais, os cabelos curtos, escuros, num penteado arrojado. Seus braços eram potentes clavas, e seus músculos explodiam, como que numa humilhação do Davi. O torso era poderoso, definido, e os músculos ali, também, faziam parte. As coxas eram duras, e o genital, de tamanho anormalmente grande. Assim, o aríete perfuraria as defesas da fortaleza, e roubaria seu mel num ato de volúpia, gemidos, e gozo. E sonhava o Cérebro com isso, contemplando-se em seu espelho, desejando livrar-se de todos os outros aspectos de seu ser. Necessitava que todos eles se adaptassem ao seu padrão para que, assim, fosse pura harmonia, e pudesse, desta forma, livrar-se da agonia de seu ser. E, então, obrigou como pôde, pela força, a todos os seus aspectos se adaptarem. Gritou-lhes, humilhou-lhes, ofendeu-lhes. Queria a Perfeição, e desejava encontrá-la, em seu mais puro conceito. E na pouca subjetividade de sua racionalidade exacerbada, considerou-se no caminho da perfeição. Assim pensava. Até que, então, algumas de suas faces recusaram-se a aceitar. Protestaram, e disseram que não gostavam de padrões. Pareciam, por mais absurdo, muitíssimo mais alegres que as outras, que competiam entre si em busca de quem era menos diferente. E riam-se, as rebeldes, daquele carnaval de grotescas imitações. E a criatura, em sua racionalidade, então, expulsou suas faces rebeldes. Glorificou a si mesma, e contemplou-se, sentada em sua penteadeira, no espelho, que é a reflexão da superfície. Mas aí, passou-se o tempo, e suas muitas faces iguais envelheceram igualmente. Nem uma única ruga estava fora do lugar. E de algum lugar, as rebeldes, que jamais perderam a juventude, riram-se. E foi aí, então, que a Criatura Humana Padrão compreendeu, enfim: Era Plena por ser Diversa. Era Perfeita por sua Imperfeição.