A BICICLETA
Aquele dia estava frio, mas eu lembro a primeira vez que os vi. Caía uma chuvinha bem fina, mas ele estava lá, todo agasalhado, montado na sua bicicleta azul surrada, esperando ela sair. Ele sempre chegava uma hora antes, para não correr o risco de ela sair mais cedo. Religiosamente, seguindo seu ritual noturno, o jovem aguardava sua namorada na praça em frente à escola. Ficava imóvel quase, olhar atento, um pé no chão e outro no pedal e os braços sempre cruzados observando os alunos saírem, um a um e logo depois os professores. Era notável a diferença no seu olhar quando ela apontava ao fundo e vinha se encaminhando rumo ao portão que dá acesso à rua. Ela vinha sorridente, conversando com seus alunos, mas com o olhar terno em direção ao rosto de seu jovem namorado.
Ele não se mexia, sorria discretamente, às vezes mais na alma do que no rosto, e a recebia com todo o carinho do mundo. Não havia chuva que os segurasse. Ela lhe dava um discreto beijo, montava na bicicleta e lá se iam os dois, embora para a casa dela. Não raro, ficavam dando voltas pela cidade, ou ele empurrava a bicicleta e iam caminhando, conversando, sorrindo, se amando... Viviam assim. No rosto de todos e nos cruzados olhares sentia-se a magia do carinho existente entre ambos. Era um amor puro, distante dos amores de cinema. Era real, sem cenário, sem retoques, simplesmente assim.
Amores puros são mesmo raros. Essas cenas repetiam-se rotineiramente, mas não os parecia cansar. Casaram-se três anos depois. Cansaram-se apenas das constantes visitas, das idas e vindas muitas, dos andares para ir ao encontro um do outro. O tempo juntos começaram a se tornar insuficiente. A vida pedia algo mais. Agora possuíam sua casa, simples, tudo no lugar certinho. Uma sala e uma cozinha, um corredor e um quarto, além de um quartinho daqueles que a gente usa para guardar aquilo que nunca se tem onde colocar. No corredor, a foto dos dois, sorrindo como sempre, na sala apenas uma mesa com quatro cadeiras, um sofá, um tapete azul ao chão, onde almofadas completavam o espaço reduzido decorado com dois ambientes. A TV era mais um enfeite, pois eles apenas ouviam música e conversavam animadamente enquanto ficavam juntos na pequena cozinha preparando lanches.
O mundo lá fora parecia não ter importância. Tudo estava ali. A bicicleta compunha o cenário da varanda. Estava ali como testemunha daquele amor, como aquela que, se pudesse, diria frases lindas e brotadas do mais profundo das almas daqueles jovens enamorados.
Trabalho, cada um para seu lado, tentando cuidar da vida para ter em comum uma vida cada vez melhor. Viajavam muito, gostavam de conhecer cenários diferentes que emolduravam seus gestos de carinho. Aos poucos, as viagens foram reduzidas, o tempo escasso, a rotina diária cansativa. E ainda havia o tempo, ah cruel tempo!
Um dia levaram a bicicleta, doando-a para o irmão mais novo dele. Com ela também se foi o encanto. Ele disse estar cansado do amor, disse que as palavras sempre carinhosas dela estavam ficando chato. Ele já sabia de tudo, não precisava ficar dizendo o tempo todo. Não mais a chamava de amor, nem de bem. Perdeu-se o romantismo. Continuaram juntos ainda muito tempo, tentando reconquistar-se um ao outro. Não moram mais na nossa pequena cidade. Fiquei sabendo que moram na capital, ainda estão juntos. Mas a bicicleta faz falta. O caminhar faz falta. O esperar faz falta. Fiquei sabendo também que estão numa casa, mas as palavras de carinho anteriormente ditas entre olhares apaixonados foram substituídas por técnicos “bom dia” e “boa noite”. A TV fala por eles, está constantemente ligada. Na cozinha, comida pronta. Apenas vivem na mesma casa. Nada mais.
Ela pensou em comprar uma bicicleta nova, para caminharem, recordarem os bons e velhos tempos. Teve como resposta um sorriso irônico. Hoje, cada um no seu carro, não mais convivem. Restou apenas o retrato dos jovens sorridentes, numa parede qualquer, empoeirado. A bicicleta ficou no passado, assim como a história dos dois. Dizem que ela ainda anda, e que o irmão mais novo já foi visto carregando uma garota de quinze anos pelas ruas da cidade.