TODA UMA VIDA
Está é minha História.
Manteiga no pão, não propriamente manteiga, pois aprendi que margarina é manteiga, e bem mais tarde – não sei quando – descobri que passada com a colher é bem mais fácil. Um dia nublado, longos dias nublados, uma canção num radio colado ao ouvido, de vez em quando a intromissão bem vinda de um locutor. Lousa de sala de aula, cheiro de giz, merenda escolar; um canto refugado, um tempo perdido e esquecido; crepúsculo pelos vidros das janelas; festas que não fui convidado, imagino como seria lá. Esqueço. Nunca anotei nada. Jogo de dama, tinha um lado meu que era sempre melhor que o outro. Janela aberta, tempo debruçado, cismando; um filme insipido na televisão, que repete a todo ano. Novelas agitadas. Romances tão bem urdidos, tantas coincidências ligando seres incríveis e belos. A surpresa era meu canto escuro, esperando um sono. A comida quase morna. A família, os membros espalhados para cada lado. Cada dia um segue seu destino, sua solidão de vela na mão, iluminando seu próprio caminho escuro e vazio. Ouvimos o toc-toc dos nossos passos no chão duro e liso. Seguimos, cabeças baixas, a mão em concha protegendo a flama acesa da vela. O caminho é obscuro, incerto, vazio. Sei de um dia que acreditei, mas não foi assim. Teimei. Queria. Mas não era assim. Contei que fora assim como mesmo achei que fora assim. Lembrei-me de uns óculos escuro num rosto empoado. Aromas baratos, sorrisos magros. Seguimos de cabeça baixa com nossas velas na mão; a flama oscila a um vento, existem cortinas que fustigam ao vento, assim como os nossos cabelos que aos poucos embranquecem. Muitos vão ficando pelo caminho. Enterramo-los, esquecemo-los. Que memoria? Que mundo foi esse? Onde estamos? Sinto as paredes, sinto meu corpo. Sou presente, agente seguido de verbo, situado, às vezes, em advérbios. Conversas altas, risadas esparsas. Dias quentes, chuvas intensas e torrenciais. Um vitral com rosto belo e puro numa mascara viril em barba. A flama da vela oscila, a cera queima, arde, urde a urgência. Espaço vazio, longo, sem lembranças. Lembrei-me que liguei um dia, ouvi vozes sem ver os rostos, deu-me cocegas, mas nunca revelei. O horizonte é longínquo, sempre cheio de nuvens, denso e obscuro. Quando a noite queda quero prolonga-la, mas ela esconde-se, aperta-se. Quando começou? Meu punho apoiou o meu queixo: meditei. A vela morre em nossas mãos, contudo caminhemos, a flama mais intensa e bruxuleante, a cera derretendo-se. Nosso tempo morre. Em que memoria ficaremos? Os mortos se enterram. Enterrar-nos-ão. Seremos fotografias em sépia. O verbo muda seu tempo e seu modo. Teremos nossas nodoas sobre algumas paredes. Somos sebos em sombras. Somos paredes ensebadas, nossas memorias, nosso vago e fugidio luto, nossa carnificina, ensanguentados de fome, famintos pelo suor de nossa luxuria. O que temos é apenas só. É isto. Engavetados o que seremos. Para aonde nos guiarão nossos olhos fechados? Tanto que vi,e muita coisa vi convosco. Por que meus lábios se abriram num sorriso, meus olhos se arderam em lagrimas? Meus ombros bateram-se em indecisão, meu cenho franziu, meus contornos se fecharam. Caminhemos devagar, no toc-toc dos nossos passos no chão duro e liso, dentro do vácuo vazio, segurando nosso resto de flama da nossa vela que queima, sabendo que ao mais ameno sopro ela poderá se apagar antes da hora final.
Rodney Aragão