O Piano
Era um piano antigo. Teclas em marfim, cordas entrelaçadas e uma placa em metal que garantia uma boa afinação.
Além do prazer ao deslizar seus dedos em seu tapete branco intercalado em negro, era também seu instrumento de trabalho.
Quando nele se debruçava, deixava que sua alma volitasse. Diziam: "Está a debulhar o piano em transe". E estava, nesses momentos ouvia vozes, percebia cores, arranhava o etéreo.
Transformou-se na menina do piano. Não tão menina, uma jovem.
Alunos foram aparecendo, garotinhas e garotinhos a beber da mesma magia. Magia essa com paciência passada e repassada nas manhãs e tardes em que se propôs a dar aulas.
O burburinho foi grande e despertou o interesse de um dos vizinhos. Um tantinho mais velho que a jovem, músico também, dedilhava seu violão com maestria. Com paciência foi aproximando-se da jovem, que de natureza tímida e introspectiva demorou a abrir uma fenda em seu casulo.
Com o passar dos dias, a intimidade aumentando, embora não a afinidade... Deslumbrada pelo sedutor vizinho, viu-se a jovem apaixonada. Cega pela paixão não percebeu os sinais que indicavam algo de errado na relação entre ela, o vizinho e seu amado piano.
Amar o piano, idolatrar e dedilhar mais do que a seu futuro consorte, para ele era inadmissível que aos poucos foi minando a confiança da jovem com críticas às músicas por ela executadas, naturalmente em sua maioria clássicas, como também à metodologia usada para seus estudos o que demandava horas de afinco e dedicação solitaria debruçada sobre as teclas.
Mas o amor tem desses deslizes e ainda que não fosse um glissando sobre o piano, escorregou a jovem em achar que seu amado com o tempo assimilaria a sua paixão pela música.
As brigas tornaram-se uma constante depois do casamento, mesmo a jovem seguindo à risca suas obrigações recém adquiridas e assim dedicando-se menos ao piano, que entre trancos e barrancos foi transportado para sua nova morada, seu esforço não era para o marido suficiente que cada dia reclamava mais e mais.
O piano esse, chorava calado e prostrado a falta dos dedos que tanto amava. Já o violão, esse era o centro das atenções daquele que por ciúmes ou egoísmo não conseguia compreender sequer a propria música que dizia também apreciar.
A jovem foi definhando e entristecendo a olhos vistos, nem a chegada dos filhos aplacou o vazio que sentia.
Um belo dia ou em um negro dia, em uma visita aos familiares demorou-se a jovem mais do que deveria.
Ao retornar encontrou seu piano fora de casa, torto, avariado, emudecido por completo sob uma chuva torrencial. Ao tentar acariciar suas teclas, gritos de dor ouviu, ferido não mais música era capaz de emitir sem ouvidos arranhar. Chorou a jovem seu infortúnio, chorou sua vida.
O marido esse finalmente vencedor de uma guerra absurda deu-se por satisfeito, sorriu zombeteiro.
Anos mais tarde separaram-se. Ela sabia que seu casamento acabara com a morte de seu amado piano. Apenas covardemente protelou o inevitável.
Restou à pianista além do amargo na alma e nos dedos, a certeza de que às vezes a admiração e atração podem gerar os mais baixos sentimentos como a inveja e o ciúmes doentio. Trazendo com eles o desejo de exterminar o que está além, muito além da matéria física, dos corpos e da carne, ou seja o extermínio da nossa essência.