Porcobol
Uma tora com um serrote cravado até o meio compunha o escudo do glorioso Serraria Esporte Clube, bordado em vermelho sobre o bolso branco assim como a gola e as barras das mangas, destacando-se do rubro do restante da camisa.
No elenco, o SEC contava com atletas dedicados, que jogavam e, às vezes, acompanhavam o time em suas excursões às próprias custas, por puro amor à camisa. Dentre tantos, merecem destaque: Kiss-Kiss, moreno alto, de corpo musculoso; jogava na ponta esquerda e era conhecido como o demolidor de defesas, apesar de ser ligeiramente míope. Tãozinho, baixinho ágil e manhoso, por sua excelente colocação, jogava no ataque e sempre surpreendia os adversários, dada a sua capacidade de saltar; era quem concluía os lançamentos de Kiss-Kiss. Apoiando a dupla de ataque pelo meio, jogava o Waltinho, que descobria os companheiros, na hora de um lançamento mais longo. Zé da Nega e Baiano eram a escora da retaguarda, e o que passava por eles dificilmente escapava do goleiro Tiziu.
No auge do sucesso, o SEC tinha a agenda lotada. Das fazendas, vilas e cidades vizinhas chegavam convites diariamente. Afinal, todos queriam ver ou disputar uma partida com o campeão da várzea. Um desses convites, recebido pelo técnico Pedrinho, teve tratamento especial. Havia muito que ele o aguardava e tinha certeza que, mais dia, menos dia, haveria de chegar. Era o convite para jogar em Zelúndia, sua terra natal.
Zelúndia estava comemorando aniversário de sua elevação a vila e sonhando com a emancipação política, quando se tornaria município. A liderança local promovia uma grande festa, cujo ponto culminante seria a partida entre a Associação Esportiva Zelundense - AEZ e o Serraria Esporte Clube - SEC.
Criara-se uma grande expectativa em torno da peleja: pela torcida do SEC, por ser contra o time anteriormente dirigido pelo seu técnico, do qual ele vivia dizendo maravilhas; já a da AEZ, pela ânsia da fama, que certamente viria, se derrotasse o grande campeão.
Na vila, pequeno aglomerado de casas que se desenvolvera a partir de uma estaçãozinha da linha férrea da Rede Mineira de Viação, o jogo era o assunto predominante em todos os botequins. No bar de Seu Godinho, única mesa de bilhar da vila, entre uma tacada e outra, discussões e apostas iam surgindo. Nego Zuca, titular absoluto da AEZ e eterno sonhador com o esporte profissional, freqüentemente era surpreendido apoiado no taco, olhar distante, imaginando a presença de um “olheiro” das equipes da cidade grande, entre a comitiva do SEC, que o descobrisse e o revelasse para o mundo.
Na calçada da praça, uma roda comentava a futura partida. Cada qual fazendo planos, entabulando a melhor maneira de tirar proveito da festa. Dessa roda faziam parte Nico Carneiro e Prudêncio, dupla como muitas existentes nos vilarejos e pequenas cidades interioranas. Meio sócios, meio rivais, os dois partilhavam tudo: às vezes brigavam entre si por uma garota; às vezes brigavam juntos para tirá-la de alguém. Nico, arreliento e gozador, tinha uma mascote que o acompanhava a toda parte. Agora mesmo estava ali, no meio da roda, de barriga para o ar, sendo coçada pelo dono, roncando como porco que era. Isso mesmo! Um leitão caruncho, gordinho, liso e bem tratado. Nico, enquanto o coçava, fanfarreava dizendo que no ardor da partida conquistaria Carmem Lúcia, sua última paixão. Prudêncio rebatia, dizendo que a Carmem já era farinha de seu saco e que, se o Nico se metesse, iria se dar mal... Todavia os planos da garota eram bem outros, pois esperava encontrar na comitiva do SEC o príncipe encantado que um dia a levasse para sempre daquela terra de fofoqueiros.
No dia da festa, a vila apinhada de gente vivia seu grande momento. Todo o espaço em torno do campo estava tomado de torcedores, que aguardavam inquietos o início da partida. O Sol declinava no horizonte, quando, após uma série de maçantes discursos, as equipes entraram em campo. O juiz silvou o apito e a pelota de couro rolou no chão de terra batida.
A ovação das torcidas e os atletas estudando-se mutuamente em lances cautelosos, faziam crer que aquele seria um grande jogo! Passados os primeiros minutos, a equipe zelundense começou a atacar de maneira agressiva, intimidando, com os cravos da bicanca, o talento da defesa do SEC. Estratégia que acabou dando certo, pois, sentindo a violência, o time visitante recuou e, aproveitando a superioridade imposta pela força, Nego Zuca cavou espaço e foi lançado por Geraldão que vinha com tudo, levantando poeira com o bico da botina (ele nunca jogava de chuteiras: atrapalhava-se com os cravos, por isso preferia as mateiras). Oportunista, Nego Zuca não perdeu a chance e fulminou sem defesa para Tiziu. A torcida delirava e pedia mais! Perdendo na bola e na canela, o SEC sentiu-se aliviado quando o juiz encerrou o primeiro tempo.
No vestiário, Pedrinho, descontrolado, falou poucas e boas aos seus comandados, induzindo-os a reagir. Não viera para ser derrotado por um timeco que, além de tudo, jogava de botinas; ademais, ele conhecia toda aquela raça de pernetas e jamais admitiria levar, para casa, algo que não fosse a vitória!
Iniciado o segundo tempo, o sol a favor e o palratório do técnico começaram a gerar resultados, surgindo as primeiras oportunidades, ainda sem conclusão pelo SEC. Na torcida da AEZ, Nico Carneiro e Prudêncio dividiam os olhares entre a partida e os passos de Carmem Lúcia. Num contra-ataque, Waltinho recebe de Zé da Nega e dispara pelo campo adversário. No canto do barranco que servia de arquibancada, Nico descobre a Carmem de mãos dadas com um estranho. Prudêncio também vê. Os olhos dos dois se cruzam e, aos empurrões, vão vencendo a pequena distância até aproximarem-se do casal. No campo a bola rola conduzida por Waltinho, buscando os companheiros. Na torcida, Nico dá o primeiro tapa. O estranho revida, bate firme, derrubando Nico. Prudêncio entra na briga e apanha também. Waltinho carrega a bola sobre si, faz uma cobertura de “chapéu” e avança. Kiss-Kiss desloca-se. Nico já se levantou e tornou a cair pelo menos mais duas vezes, sob o peso dos punhos do estranho. Prudêncio também está no chão. Waltinho vê Kiss-Kiss e faz o lançamento. Tãozinho procura posição: sabe que chegou sua vez. Nico, sangrando, corre e entra no campo; a mascote segue-o. A bola rolando, o porquinho correndo, Tãozinho colocado. Kiss-Kiss, com as vistas embaralhadas pela miopia somada às torrentes de suor, chuta e cai contundido. O massagista do SEC corre para socorrer seu atleta. Ainda no chão, Kiss-Kiss, contorcendo-se, grita para o homem atender o Tãozinho, que cabeceou o porco.
O juiz, mais míope que Kiss-Kiss, validou o gol. Uma grande confusão se formou. Sobrou pancada para todo o mundo. Ao fim do tumulto, o árbitro havia desaparecido sem encerrar a partida. Protegida pela polícia, a comitiva do SEC embarcou no ônibus que a levaria de volta.
Os primeiros momentos na estrada empoeirada foram rodados em total silêncio, que aos poucos começou a se dissipar. Logo alguém fez uma piada e em pouco tempo o moral da turma estava em franca recuperação. Mais alguns quilômetros e aquele fatídico jogo já pertenceria a um passado mais remoto que a própria distância que os separavam de Zelúndia, não fosse a dor e os hematomas que insistiam em lembrá-los daquele infortúnio. Ao cruzarem a ponte sobre o Rio das Velhas, logo acima da hidrelétrica, o técnico Pedrinho deu ordens ao motorista para fazer uma parada no bar e restaurante de Seu Zé Dias, no povoado às margens da estrada. A pequena bodega estava lotada de fregueses, moradores da região, além dos passageiros de outro ônibus que também fizera escala naquele local. Do lado de dentro do balcão de tábuas, Seu Zé atendia a todos, no bar, auxiliado por um ajudante, enquanto vigiava com os olhos, através da pequena janela, o movimento crescente no salão do restaurante nos fundos.
Aproveitando a afobação do proprietário, alguns componentes da comitiva do SEC resolvem, à custa do homem, levantar de vez os ânimos combalidos da turma. Iniciam, então, uma diversão cruel, um jogo de ações e palavras para confundir o bodegueiro, ao fim do qual, muitos saem sem pagar o que consumiram, outros levam mercadorias ou recebem troco sem desembolsar quaisquer numerários. Claro que Seu Zé Dias percebeu a manobra, mas deixou passar, para não tumultuar ainda mais, evitando, dessa forma, maiores prejuízos ao estabelecimento.
Anos mais tarde, o SEC já falecido e enterrado, muitos daqueles antigos companheiros, agora respeitáveis cidadãos, ainda mantinham uma saudável relação de amizade, cultivada a salgadinhos e regada a cerveja, todas as tardes de sábado na calçada do Bar Carneiro. Numa dessas tardes, o retorno de um companheiro há muito desgarrado, despertou saudades e lembranças. A conversa, como não poderia deixar de ser, girou em torno das peripécias e das gloriosas campanhas do velho SEC. Papo vai, papo vem, Zelúndia veio à tona. Quem visse aqueles senhores comentando suas aventuras e peraltices, certamente haveria de estranhar. No rol das lembranças, a bola da vez era a bodega de Seu Zé Dias. Ouvindo aquelas histórias, Zé Carneiro, o dono do bar e amigo de todos, parou um minuto prestando atenção ao papo.
— Quem diria? – imaginava ele, com um sorriso maroto nos lábios.
Sem interrompê-los, Zé Carneiro afastou-se e entrou na casa, contígua, voltando em seguida, acompanhado de um senhor grisalho que ninguém reconheceu. O papo seguia animado e o ancião deliciava-se com as fanfarronadas dos beberrões. Quando a prosa começou a esfriar, o Zé Carneiro entrou na roda e apresentou a todos seu tio: José Dias - que viera passar uma temporada com o sobrinho. Ao ouvirem aquele nome todos os olhares convergiram para o velho de semblante tranqüilo que tanto rira naquela patuscada. Balançando levemente a cabeça, de modo afirmativo como que adivinhando a indagação silenciosa de cada um, ele respondia, sem palavras, apenas com uma expressão de gozo nos olhos vivos e brilhantes:
— Sim, sou eu!
Houve muitos pedidos de desculpas e até quem quisesse saldar a dívida pelos queijos que surrupiara. Entretanto Seu Zé levou na gozação e se disse pago pelos bons momentos que acabava de viver.