O MILAGRE!

O manto negro da noite envolveu o azul do céu. Num asqueroso beco, dois mendigos embriagados choravam suas lamúrias. José, o mais afoito era deficiente visual, enquanto Pedro era paraplégico. A noite era fria, o açoite da sofreguidão batia em seus raivosos corações.

- Pedro, já percebeu que fomos esquecidos e marginalizados pela avareza do destino?

- Nem me fale! A partir de hoje não mais acreditarei no criador, não adorarei santo algum. É tanto pluritarismo que não seguirei o budismo.

Pedro acendeu um cigarro torto e desabafou:

- Também compartilho contigo. Já viu os muçulmanos? Não gosto da prática do Wudu e não olho para hindu.

- Belas palavras, colega. Devemos acreditar num Deus que nos reservou o pior dos destinos? Nem de longe eu tencionaria ser um monge, nunca tenho otimismo quando penso no espiritismo.

- Sabe, - disse Pedro - chego a imaginar que “o” hoje é pior que antes, detesto cartomantes!

José buscou um gole de Cachaça, o álcool desceu rasgando tudo. Falou:

- Viu aquele treco de Hare Krishma, protestante, fadinhas débeis itinerantes; os morcegos e duendes?

- situação adversa, a nossa. E pensar que existem falsas almas de Javé. Não acredito em Jeová, e dou as costas para candomblé.

Embriagado, José perguntou:

- Pedro, não estamos sendo ríspidos demais para com tudo?

- Ríspidos? E a nossa situação que beira a duas aberrações? Veja o Oriente Médio, sempre existe um alarde quando se encontram um Judeu e um árabe.

- Muito bem. Nada se forma por encanto. Adeus curandeiros e pais de santo.

- É isso mesmo. Basta de tanto cinismo, baboseiras e cristianismo.

Pedro acendeu mais um cigarro e engoliu um copo de cachaça.

- José, porque somos parias, que fizemos de tão hediondo?

- Devemos sempre dizer adeus, nunca, até. Não siga o profeta Maomé.

- Exatamente isso. Se não sucumbiu no seu eu, e ter uma epilepsia, não vá. Reflita e não pense em Alá.

- Hoje nós estamos azedos, hein! – comentou José.

Pedro assentiu, estava desistindo de tudo. Mais um gole.

- Já esteve em algum centro de mesa branca, José?

- Não suporto mesa preta, mesa branca e não sei mais o quê, chega de seicho-no-le.

- É verdade – disse Pedro. - Falsos devotos conscientes no cinismo, criticam a religião ortodoxa e repousam incrédulos no monoteísmo.

- Partindo do princípio de que a religião ensina que qualquer um se arruma, vou montar um terreiro de macumba!

- Ah, ah, ah...Essa foi boa!- Falou Pedro em gargalhadas.

- E tem mais, espanta-me este mundo crédulo, alicerçado em falsos em conceitos. Não passam de loucos, suicidas, carrascos e clérigos.

Pedro entornou o último gole de cachaça, passou o braço rente a boca e acendeu uma bituca de cigarro que estava dentro da lata de lixo. Depois, coçou o saco e disse com o semblante carregado pelo álcool e aparente ira:

- Estes calhordas governam e premiam a imbecilidade. Decerto a religião deveria ponderar, fazer refletir e coibir a criminalidade.

- Como você fala com desenvoltura, Pedro. Qual seu grau de instrução?

- Fiz direito, e você?

- Filosofia. – respondeu José com uma lágrima a escorrer da esquelética face.

- Pois é, nos formamos na faculdade, entretanto nosso doutorado é nos becos, suplicando um adjutório.

José enxugou a solitária lagrima e derramou seu ódio:

- E o que vemos nesta pocilga apelidada de mundo, é a insensatez do celibato, a guerra santa dos fanáticos muçulmanos, juntamente com a miséria se arrastando séculos após séculos.

Pedro buscou o último gole, nada mais havia para ser ingerido.

- Olhe, José, com base em sua deixa, vejo todo mundo fantasiando orar em prol da paz. Haveria capitalismo se não existissem guerras?

- A hipocrisia é um nó que nunca desata – confessou José.

- Que tal um riso coletivo? – perguntou Pedro, com um sorriso amarelo.

- Cada regra uma diretriz. O mundo aniquila os alegres e impõe o riso aos infelizes.

- Ah, ah, ah...

- Ta rindo de mim, ou pra mim? Indagou José.

- Nenhuma das duas opções, estou fazendo careta!!! – respondeu Pedro, agora sorrindo da própria fala.

Pedro e José adormeceram envolvidos por folhas de jornais. O frio era glacial. O cheiro exalado pelo álcool ingerido era insuportável. Algumas ratazanas estavam se alimentando com os farelos deixados. Um cão doente abanou a cauda e achegou-se entre os dois. Pedro e José sonharem com um mundo belo, maravilhoso, onde toda doença fora erradicada; deliraram ao se verem em um lar, com suas vidas reconstituídas, e muita comida.

Na manha seguinte quando acordaram, ambos estavam com um crucifixo onde mostrava Jesus Cristos no calvário.

- Pedro, - gritou José – olhe que coisa mais linda. Venha ver também.

Pedro andou normalmente e viu-se vislumbrado com a imagem de Cristo. Num segundo, olhou para José e perguntou?

- Você está enxergando?

- Estou! Já reparou que você está andando, Pedro?

Estavam instalados numa linda e aconchegante casa. Passaram a ter uma vida normal, constituíram família. Sempre liam uma mensagem que acharam no beco: “Eu lhes devolvo a vida que perderam e lhes disponho dois caminhos, um reto, com dificuldades, e outro, sinuoso, onde a riqueza brota em abundância”.

Paulo Izael
Enviado por Paulo Izael em 16/07/2005
Reeditado em 20/07/2005
Código do texto: T34898