Passo Em Falso (ou A Cara No Chão)

“Acho que sei, afinal, a que vim.

E já me vou. Uma pena.

Não há mais tempo pra mim”

Darcy Ribeiro

Amanhece: chuvosa alvorada. À beira da estrada, um homem parado, caído, bêbado. Com a cara mergulhada em poças d’água, lutando para não se afogar. Sentindo os sussurros do dia anterior dizendo tudo o que ele nunca quis ouvir. “Enlouqueci?”, pensou. A realidade inteira, travestida em gotas de chuva, dizia que não e fazia com que doesse fundo cada palavra lembrada, como se fosse uma certeza ouvida.

Escuta passos. Passos pesados, que mergulham no abismo, chafurdando na água que cobre toda a estrada. Aproximam-se sapatos escuros na direção de seus olhos. “Doutor Camilo?”, uma voz grave, “Doutor Camilo?”. Erguendo a face e fazendo um grande esforço para não engolir água, consegue finalmente balbuciar: “Sim, sou eu”. “Procurava-o faz tempo, doutor, poderia vir comigo?”. “Mas quem é o senhor?”, retrucou o bêbado com a voz um pouco mais firme. “O que deseja? Não vê que preciso ficar sozinho?”. “É absolutamente necessário que me siga, doutor. Uma questão de vida ou morte”, disse o homem numa espécie de súplica. “Ajude-me a levantar, não me sinto bem, como pode perceber”, observou Camilo, enquanto se esforçava por movimentar-se. Enfim se pôs de pé.

Começava então a se lembrar da noite anterior, da noite que o trouxe até ali. Era seu aniversário, uma festa: todos os familiares e amigos celebrando o prolongamento gorduroso e estéril da vida, comemorando o futuro. Desde a manhã ele sabia que a doença estava ali. Havia entrado em seu corpo, silenciosamente, e devorava pouco a pouco seus pulmões. Fumou como nunca naquele dia, antes de anoitecer terminou o terceiro maço de cigarros. “Sou um médico”, pensou, “a morte é inexorável e eu bem devia saber disso”. Por volta das nove horas, chegou, enfim, em casa. Levava na boca o sabor agridoce da palavra “fim”. Agora, lembrava-se de ter começado a beber algo forte, um uísque talvez. E via os rostos, felizes e solícitos, implorando por um aceno com a cabeça ou um aperto de mão. Pensava em Tchekhov, pensava em Freud: “como morreram?”, perguntava-se. Em apenas alguns minutos toda a sua agonia exibiu-se como um filme em sua cabeça. Sentiu nojo. Resmungou para algum amigo umas palavras amargas e saiu da casa, do universo. Pensava, àquela altura, em como era terrível envelhecer, em quantas escolhas havia feito, em quantas mulheres poderia ter tido. “Que vida!”, pensava. “E agora? Tenho cinquenta anos e uma imensa pressa de viver e já não posso mais me dar ao luxo de ser familiar, de ser trivial como todos os outros.”

A cada copo o mundo passava; era amado em cada trago. Chegava ao fim a idade da razão. Absolutamente não podia dizer de si mesmo que foi homem. Não foi. Foi mísero e mesquinho e gostaria de gritar isso aos quatro ventos. Gostaria de impor sua vontade a Deus e dizer a Ele que fosse embora e deixasse que a vida corresse solta, sem saber da morte. Bebeu e bebeu. E agora aquele homem o recolhia na sarjeta e precisava dele, de sua ciência. “É tudo vaidade!”, Lembrava-se da exclamação de Fausto. Também ele era Fausto, mas sem um Mefisto que o fizesse sonhar. Já não desejava viver, não com o fim a assombrar-lhe diariamente os sonhos, não "com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens"*. Continuou, com muito esforço, a caminhada, como se carregasse a finitude do universo nos ombros. “Todos falharam”, pensou consigo mesmo, ao contemplar aquele amanhecer chuvoso. Quando era jovem seu Deus morreu. Adulto e médico, a ciência só ofereceu-lhe abismos. Há pouco tempo tinha se refugiado na arte, a derradeira metafísica para as almas inquietas. Mas foi tudo desespero. O sabor do nada começa a insinuar-se na boca dos homens ao mesmo tempo em que as rugas iniciam sua existência no rosto. O conhecimento vai se provando cada vez mais humano e, como humano, mais inútil. Ele já não tinha convicções e aquele homem cheio de vida e fé o arrastava cada vez mais rápido. “Um caso de vida ou morte”, pensou. “Todos tem um caso de vida ou morte, por que ficam tão chocados? Só querem saber de seus casos, como se valessem algo. São seres cheios de uma urgência estúpida e não percebem o quão ridículos parecem”. Preferia estar entre as coisas naquele momento, estar longe de tudo o que é vivo, longe da sujeira da vida.

“A eternidade ou o nada!”, gritou enquanto escapava dos braços daquele sujeito, que era limpo demais, e se atirou no meio da estrada, com a cara no chão, desejando ardentemente um desaparecer do tempo. Mas nenhum carro passou.

*Fernando Pessoa – “Tabacaria”