A extinção e o drama

Já fumei quase todo o maço de Marlboro. Tomei umas seis xícaras de café. No celular, nos jornais da TV e no computador, finjo não ver aquela maldita notícia. Pulo o conteúdo, mudo de canal, apago a mensagem, acesso outro site. Faço de conta que é só um sonho ruim. Não durmo direito há uma semana. Tenho rezado todos os dias para que consigam uma maneira de revogar esta nova lei, que, de nova não tem nada: parece ter sido criada nos tempos de barbárie. Em plenas dez da noite de uma sexta-feira, vegeto em casa, sem sono, mudando os canais na TV para ver se acho algo interessante. O telefone toca. Ao me aproximar vejo o número da Marcinha no identificador e não atendo. Como já sei o que ela vai fazer em seguida, pois é o que tem feito nos últimos dias, desligo o celular.

Os amigos perceberam que estou diferente. Lembro de cada palavra da conversa que tive hoje à tarde.

- Que é que há, Gil? Você está estranho estes dias. Não foi jogar bola no domingo, não apareceu no churrasco sexta passada, foi para o escritório vestindo a camiseta do pijama na quarta, não tem contado piada...

- Não estou bem, Heliosmar. Tenho me sentido sozinho.

- Pô, cara! Sério?

- Sério!

- Mas e a Marcinha?

- Ah, não sei... parece que ela tá perdendo o interesse. Faz quatro dias que não me liga.

- É só isso mesmo?

- Ué, como assim "só isso"? Você acha pouco?

- Não foi isso que eu quis dizer... olha, se o motivo é este, então tá fácil, meu chapa! Fica frio, fica tranquilo. Próximo churrasco vou te apresentar minhas novas vizinhas. Veja bem: são novas vizinhas e vizinhas novas! Quatro universitárias gatinhas que alugaram a casa do seu Nonô para tranformar em república. Pena que você não tava lá na sexta, já teria te apresentado a elas e hoje você não estaria jururu desse jeito.

- Puxa vida, obrigado meu amigo! - sorrio para ele e dou um tapinha nas costas. Ele sorri, crendo que cumpriu a boa ação do dia e vai embora. Felizmente acreditou na história.

Chegou a hora da verdade. Com o excesso de café e a ansiedade acumulada destes dias, a dor no estômago triplicou. Estou prestes a checar se a informação que recebi há cerca de um mês foi confirmada ou desmentida.

Ligo a TV às sete e quinze da manhã e sintonizo no SBT para acompanhar o jornal. A primeira notícia do dia é de tragédia na Indonésia. Acidente entre dois ônibus, quarenta e três mortos. Em seguida falam a respeito do fiasco do Flamengo no último jogo. Depois, uma longa e entediante matéria sobre o mais novo morador do Jardim Zoológico da cidade: um hipopótamo. Toca uma música de ninar enquanto o bicho flutua na água, parecendo não ter qualquer outra preocupação na vida. Desligo a TV e grito "merda".

Ligo o PC e enquanto o bichão carrega, vou até a cozinha e trago mais café na xícara. Acendo outro cigarro, trago bem devagar e o encaixo numa das bordas do cinzeiro. Abro uma janela do navegador. Tenho que repetir o endereço do site quatro vezes porque o nervosismo faz minhas mãos tremerem e digito errado. Faltam letras, faltam pontos e o navegador carrega outro site de fundo branco, fontes do tipo "circense" azuis e laranja, cheio de propagandas e com dezenas de links que nada tem a ver com o que preciso acessar. Dou um tapa ágil, forte e seco no teclado e exclamo: "vai demônio! Cê é burro?". Por fim consigo carregar o site da Folha Online. Nem preciso rodar muito entre as notícias. Ela está logo ali, entre a quarta e a sexta da lista. Está confirmado! A notícia parece ter me arrancado a calma, a fome e a coragem. Ali permanece apenas a minha carcaça com o resto. Um corpo inerte, imóvel, como um manequim, que por dolorosos quatro minutos lê a matéria. Posiciono os braços na mesinha e repouso a cabeça. "Eu preciso fazer alguma coisa", exclamo, com a voz rouca, quase não saindo. Tento chorar, mas não consigo. "Eu preciso pensar em alguma solução!". Junto com as coisas que a notícia me arrancou, foram juntos minha força e meu fôlego. Na tela a manchete: "Supermercados de SP param de fornecer sacola hoje".

***

Não adiantou faltar ao serviço para chegar cedo ao supermercado. Abriu há pouco e o número de clientes não é tão pequeno quanto eu esperava. Cerca de trinta pessoas já circulam, passeando com suas cestinhas e carrinhos. Adivinha onde é que a maioria está concentrada? Na porcaria do setor de hortifruti! Mas deixa pra lá. Que se danem. Vou procurar ser o mais discreto possível. O problema é se eles perceberem. Mas, pensando bem, vai ser difícil alguém ser inteligente o suficiente para descobrir minha intenção. Sempre compro três tipos de fruta e três de vegetais para salada por semana. Mas hoje, para valer a pena e o risco, vou ter que levar pelo menos uns cinco tipos de cada.

Chego à banquinha das laranjas e vejo que já tem dois infelizes escolhendo para levar. Sequer perceberam minha presença e não fazem ideia de que estão me atrapalhando. Passo reto e vou até a banquinha dos tomates. Agora não tem mais jeito. A única coisa que posso fazer é tentar agir da forma mais natural possível. Espero não encontrar ninguém conhecido hoje. Geralmente escolho saquinhos tamanho "P" para as minhas compras. Porém hoje será diferente. Quase assobiando, retiro três dos de tamanho "G" da bobina. Embalo cinco tomates. "Concentre-se, Gilberto", diz minha consciência, "não olhe para os lados. Apenas cheque a qualidade dos legumes". Minha imaginação dá à minha consciência voz do dublador dos filmes do 007.

Eis que uma bela morena do tipo Juliana Paes passa com o carrinho, deixando para trás um perfume que é coisa do outro mundo! Percebo na parte inferior das lindas costas não cobertas pela blusinha lilás generosíssima, o início dos traços de uma tatuagem que tenho certeza que noventa por cento dos clientes daquele supermercado adorariam saber onde termina. "Seu idiota! Eu mandei não olhar para ninguém! Tá querendo estragar tudo?". Minha consciência, agora com voz do Sargento Tainha me repreendia sem piedade. Por alguns segundos esqueci o quanto sou exigente comigo mesmo. "Ao trabalho, seu imprestável! E sem mais falhas!".

Antes de continuar com os tomates, percebo uma câmera posicionada à direita da prateleira dos laticínios, apontando seu olhinho sem-vergonha para mim. Deixo os tomates já embalados na banca e finjo ir consultar o preço do repolho na banca do lado oposto. Um minuto depois, volto para a banca dos tomates, mas desta vez de costas para a câmera. Fico numa posição em que acredito que não é possível filmar o que estou fazendo. Coloco os tomates já embalados dentro de outro saquinho. Repito a ação, utilizando o terceiro. "Pronto. Acho que ninguém reparou". Ponho o pacote na cestinha e repito esta ação nas bancas de goiaba, kiwi, cenoura, beterraba, limão, laranja, tangerina, maçã e pimentão. Cinco unidades de cada. Não tive contratempo algum, exceto na hora em que passava as beterrabas já embaladas em dois saquinhos para o terceiro e um senhor grisalho, magro, de camisa bege, bermuda marrom e sandálias da mesma cor flagrou-me. Ele me fitava sem qualquer reserva, desconfiado. Disfarcei e fingi que o bode não era comigo. Pus o pacote no carrinho e, ao olhar em qual direção eu iria, percebi que o homem ainda olhava para mim. Esboçando ar de simpatia naquele encontro, olhei para ele também. Cumprimentei-o com um bom dia dito com a maciez de um travesseiro, a leveza de uma pluma e a cara de pau de um deputado. "Bom dia", respondeu, muito sério. Se eu estivesse no lugar dele, diria: "companheiro, é melhor você começar a ser honesto. Porque para pilantra, não presta". Retirei-me, já concentrado, pensando em como reagir diante da situação de um funcionário perguntar-me o motivo de tantos saquinhos. "Putz... que maravilha, hein, senhor Gilberto Souza da Silva? Quase trinta e seis anos nas costas e agindo como um pivete no supermercado!". Me sentia até mal com o que estava fazendo. Mas a necessidade é maior que a vergonha.

Fiquei enrolando uns quinze minutos passeando entre as prateleiras . Aproveitava para ler a descrição dos ingredientes de uma caixa de sucrilhos e examinei a tabela de informação nutricional de uma latinha de Coca-cola. Vejo na prateleira os sacos de lixo de vários tipos: vinte, quarenta, sessenta, oitenta, cem litros. Os de cem são uns sacões gigantes. Dá quase para fazer uma barraca com o plástico. As cores são horríveis! Branco, preto e cinza! Não tem um pingo da alegria dos amarelos, azuis e verdes das sacolinhas que eu costumava receber com as compras. Para dificultar as pistas contra mim, recolhi alguns outros itens das prateleiras para "misturá-los" na cesta. Detergente, sabão em pó, biscoitos, panos perfex e até uma caixa de ovos. Tudo para não chegar ao caixa de até vinte volumes só com os legumes e frutas. Agindo assim, diminuía a chance da moça com olhos de fofoqueira se deparar com os saquinhos isolados no cesto e perceber que algo está diferente.

Passando próximo do caixa, vi que estava com sorte: três clientes na fila! Era disso que eu precisava! Tempo! Prazo para pensar numa resposta caso a funcionária perguntasse sobre os saquinhos. Porém a sensação de sorte minguou quando percebi que as pessoas da fila portavam poucos itens para registrar, o que fez meu prazo ser menor do que o esperado. A única desculpa que me veio à cabeça não era das melhores, mas por falta de tempo e criatividade, ia ter que servir. "Da última vez, quando eu já estava em casa, o saquinho arrebentou e os tomates foram para o chão. Por isso utilizei mais sacos para reforçar as embalagens". Consegui repetir mentalmente a explicação por mais três vezes antes de passar pelo caixa. Respirei fundo. Chegou a hora. Tirei da cesta a embalagem com as laranjas e entreguei para ela. A moça olhou para mim e fez cara de dúvida. Enquanto ela fazia a pergunta, eu enchia o peito para disparar a resposta como um foguete.

- Nota fiscal paulista?

- Da última vez, quando eu já estava em casa, eu... desculpe. O que foi que você perguntou?

- O senhor vai querer nota fiscal paulista?

- Ah, sim! Quero sim, por favor! Vou passar o CPF - Digitado o número do documento, a moça passou as frutas e legumes sem nada perguntar.

- O senhor trouxe sacola para as compras?

- Não. Vou levar uma! Quanto é?

- Dois e setenta.

- OK, fechado.

Depois de passar pelo caixa, o alívio era tão grande que me fez quase flutuar. Deu vontade de voltar ao caixa e agradecê-la uma vez mais por ela não ter percebido nada. Mas se eu fizesse isto, aí sim é que ela ia perceber e a trama toda teria ido por água abaixo. Pego a tal sacola retornável e sinto o quanto aquele novo hábito é estranho. Passo o braço pelas alças, dobro-o formando uma asa e seguro firme. Mas não carrego as mercadorias deste jeito por muito tempo: logo lembro que este é o jeito que as mulheres carregam as bolsas. Tiro as alças do braço e carrego-a como uma mala mesmo. Esta nova maneira de carregar as compras é desconfortável. Com as sacolinhas dava para equilibrar o peso das compras. A solução foi carregar um pouco em cada mão e mudar quando o braço cansasse.

Na volta para casa, durante meu percurso de quinze minutos, a pé, passo por um terreno baldio e vejo sacolas destas que eram distribuídas

nos supermercados. Até interrompo a caminhada para poder observar melhor. Elas parecem estar cheias de lixo. Contei seis sacolas. Aperto o passo, torcendo para que mais ninguém tivesse tido a mesma ideia que eu.

Em casa, ponho a sacola de compras na mesa da cozinha, abro a gaveta direita do armário, tiro meu par de luvas de borracha e apresso-me em voltar ao terreno. Queria ter fumado um cigarrinho ao chegar, mas não posso desperdiçar o tempo. Deixo para matar a vontade depois. Decido voltar de bicicleta ao terreno. Indiscutivelmente paga o maior dos micos um sujeito que pedala calçando luvas de borracha horríveis, de cor laranja, mas não podia fazer nada. Pedalei cinco quadras e cheguei baforando, quase sem fôlego. O cigarro e o sedentarismo fizeram-me ficar zonzo.

As sacolas ainda estão lá, graças a Deus. Rapidamente abro-as e esvazio uma a uma jogando o lixo lá mesmo. Uma delas exala cheiro horrível. Comida estragada ou então bicho morto lá dentro. Mas acho que um pouco de sabão e pó e desinfetante resolvem o problema. Ao esvaziá-la, vejo que acertei os dois palpites num só objeto. Era uma carcaça de frango assado. Um pecado, um desperdício! Jogaram fora o frango e tinha bastante carne ainda! Estava quase verde de tão podre. Devia estar ali já há bastante tempo. Contei errado. Eram cinco sacolinhas. Dobro-as várias vezes, subo na bike, arranco a luva da mão direita e pedalo de volta para casa, levando os objetos na mão esquerda.

Ao chegar, reparo que na sarjeta da calçada oposta há uma sacolinha vazia jogada. Entro depressa em casa, jogo as sacolinhas dentro do tanque, tiro as luvas e volto para a calçada. Não há muita gente na rua naquele instante. Uma mulher passa com carrinho de bebê, acompanhada de um garoto que aparenta não ter mais que seis anos. O vizinho da frente, seu Nestor, aposentado, sem camisa, de bermuda azul de náilon e calçando havaianas, está no alpendre, sentado confortavelmente numa das cadeiras. Ele lê o jornal, bastante concentrado. "Esta é a minha chance!", penso. Abro a porta da frente, abro o portão, espero, na calçada, um Palio e uma Hilux passarem, atravesso calmamente a rua, o mais lento possível, para que seu Nestor não perceba minha presença e para a moça do carrinho se distanciar mais.

Próximo da sarjeta, agacho, recolho a sacolinha e percebo que o fundo está rasgado! Um duro golpe inesperado! Sinto a expressão de dor no meu rosto. Enxergo-a em pensamento, como se estivesse na frente do espelho. Sinto a contração da face apertar as bochechas e fazer surgir as marcas de expressão na testa, que se parecem com os sulcos de um terreno arado. Involuntariamente minha boca forma um bico, daqueles de criança triste. Fecho os olhos e sinto por mais um minuto o rosto todo contraído de tristeza, apertado. Ao abri-los, percebo que seu Nestor parou de ler o jornal e está me olhando, curioso. Tento imaginar como é a cena de lá de onde ele observa: um sujeito agachado perto da sarjeta, fazendo cara feia com uma sacolinha rasgada na mão.

- Não está se sentindo bem, Gilberto? - pergunta meu vizinho, preocupado.

- Nossa, seu Nestor! Tô com as costas hoje que não aguento!

- Você quer que eu te leve ao hospital? Quer tomar remédio para dor?

- Não precisa não, seu Nestor. Obrigado! Isso aqui passa, viu? - solto um falso gemido ao levantar. Ponho a mão nas costas. - Lá em casa eu tomo um Buscopan. Despeço-me, dou meia volta e vou embora. Com a mão no coração, jogo a sacolinha rasgada no cesto de recicláveis da cozinha.

Ponho um disco do Syd Barret na vitrola e vou para o tanque desinfetar e lavar as sacolas que recolhi. Estendo-as no varal. Lavo as luvas e penduro-as também. Amanhã, quando estiverem secas, vou passá-las e guardar todas na gaveta, junto com as luvas.

Cinco sacolinhas do terreno e trinta saquinhos do supermercado. Foi difícil consegui-los. Será mais difícil ainda utilizá-los racionalmente para que durem até que eu recolha outras embalagens na minha próxima busca. Isto é, se eu conseguir encontrar sacolas! Este primeiro dia não foi nada fácil. Daqui para frente não sei como será. O futuro é incerto.