PARTIDA
É uma sensação estranha. Sinto-me um rio que chega à foz, em seu findo caminho, completando as transposições de montanhas e curvas tão várias, tão necessárias e tão constantes. Pareço ouvir o barulho do encontro do rio com o mar. E está cada vez mais próximo. Olho em volto, mas não vejo quase nada. Meus olhos estão cobertos por uma névoa densa que me traz alívio em meio à dor que me atormenta e dilacera corpo e alma. A névoa me remonta à fazenda Santa Efigênia, propriedade de meus antepassados que nos foi passada de herança por gerações.
Num súbito de consciência vejo mamãe abrindo a janela daquele casarão e nos gritando:
__ Josias, Marcos, Hermelinda, Estêvão, venham, o almoço está pronto.
Posso ver as grandes janelas daquela casa que abrigou tantos vivos e tantos mortos, uma incontável família que despede-se de uns e acolhe a outros. Os morros da fazenda ainda estão vivos em minha lembrança ainda lúcida, por pouco tempo neste quarto. Mamãe parece me sorrir aqui do lado e como que a esperar pela minha partida. Vejo também papai, vestido com sua roupa de vaqueiro tirar solenemente o chapéu, aqui porta deste lugar onde Deus escolheu para me chamar.
A névoa densa de meus olhos vidrados contrasta com o luminoso cenário que posso ver através de meu espírito e de minha consciência agora tão vivos neste corpo já quase inerte. Posso contemplar em relances rápidos as forças de minha juventude e o vigor dos amores tantos. Sinto uma brisa suave a tocar meu rosto como uma carícia última da vida na Terra e um afago derradeiro para que eu vá com um certo conforto.
Sim, eu estou indo com um certo conforto. Ouço vozes ao redor de mim. Vozes que lamentam e choram, vozes que discordam disso que é a mais profunda natureza humana. Não sinto mais dor, embora meus olhos não mais vejam, minhas pernas não mais caminhem e meus braços não mais se erguem. Estou sorrindo por dentro ao perceber que estou me abrindo para um mundo maior, tal qual uma criança expulsa do ventre materno amedrontada por temer o que a espera fora do seu pequeno mundo de conforto e de sustento. Sim, há sempre um mundo maior por vir e parto na esperança e expectativa deste. Ouço barulho de máquinas que me deixam a vida por um fio ainda na existência. Tenho um misto de alegria e tristeza, sinto a dor da humanidade no meu corpo e alegria da eternidade se abrindo à minha frente. Que estranho!
Como gostaria de poder falar aos que me rodeiam:
__ Não chorem, estou renascendo, estou revivendo, estou apenas me mudando...
Mas minha boca rejeita minhas palavras. Minhas forças impedem um afago verbal e um consolo verdadeiro àqueles que sentirão minha falta. Como gostaria de dizer a todos eles que estou feliz, que não estou com pesar. Queria que não se entristecessem por mim, mas que compreendessem que parto para outro mundo e não termino aqui minha existência. Por mais que eu busque o ar e as forças lá no fundo, meus lábios não mais desejam pronunciar palavra alguma. Talvez seja o meu silêncio a maior fala, talvez eu não possa partilhar aquilo que vejo, literalmente, com outros olhos.
Meus ouvidos ouvem canções que guardo na memória já quase finda. Ainda posso ouvir acordes soando de papai cantando nas festas de roça e dos animados bailes de juventude. É estranho, mas a cada minuto que se passa sinto que meus sentidos vão se cobrindo de um vigor jamais existente. Pareço estar readquirindo uma vitalidade e uma força jovial, tal como minha mocidade. Os ouvidos da alma escutam aguçados sons de uma vida inteira, detalhes de uma vida intensamente vivida e que agora entendo continuar. Tudo passa como um grande filme em alta velocidade, imagens ininterruptas, em fragmentos que me trazem uma sensação de sobriedade infinita.
Meu tato também parece tocar em algo macio, que meu olfato sente adocicado como a caminhar por um belo jardim. Meu corpo preso a esta cama parece querer se arrancar daqui e sentir o gosto do mel que anseio degustar num paladar aguçado de forma desconhecida por mim até agora. Parece uma luta épica de meu corpo como um prisioneiro neste mundo a pedir a remissão da pena para voar a liberdade do que me espera. Não sei se estou sentindo uma alucinação, só sei que ouço choro sentido de meus filhos, não consigo mais falar nem sentir, mas ao mesmo tempo sinto uma força revigorante tomando conta de mim. Sinto o corpo flutuar como que caminhando em nuvens e uma leveza de alma tamanha, que em nada lembra meu corpo velho e cansado, cheio de dores e lágrimas.
Ainda vejo ao lado, Maria, com um sorriso tão terno quanto o carinho de uma mãe quando apanha no colo o filho vez primeira assim que nasce, a quem sempre pedi diariamente “...agora e na hora da nossa morte...” Entendo o que se passa. Estou indo, chegou minha hora.
Bruscamente me ergo, mamãe me deu a mão, chamando-me:
__ Venha Josias.
E segurou forte na minha. Papai me dá um abraço e vão me conduzindo para um caminho tão lindo que nunca se viu tão parecido na Terra. Olho para trás e vejo rapidamente olhares úmidos, corações aflitos, dores inexplicáveis. Sinto. Mas sei que um dia nos encontraremos, talvez eu venha confortá-los no dia de sua partida. Despeço-me de uma existência, vejo detalhes de uma vida inteira, sem saudade, sem mágoa, sem dor. Só queria dizer a todos, antes de partir que...