Contos do eremita: Escolhas

Ah, então é você. Você é o que lê as nossas letras sombrias. Entendo. Elas tem algo muito importante e interessante para contar dessa vez. Sobre um eremita, e uma curiosa fogueira de fogo azul. Sim, azul. E o eremita é algum tipo de criatura que parece um humano e passa suas eternidades olhando a fogueira, de vez em quando, ele recebe visitas e conta histórias. Uma dessas visitas foi uma garota. Uma mera garota. Uma garota qualquer. Ela vai aparecer daqui a pouco, só mais uns passos. Mais alguns...isso... agora.

- Olá, filhote de humano. O que viestes fazer aqui? – perguntou o ancião com a voz rouca de sempre.

- Ainda não sei, ainda não sei. E você, o que faz aqui?

- Eu sou aquele que espera, humana.

- “Aquele que espera”, que velho enigmático... – disse a garota, pensando alto demais. – E o que você espera tanto, senhor? Desde quando você espera o...a...seja lá o que for?

- Desde sempre, caro filhote, desde sempre. Desde sempre aquela fogueira está acesa. Desde sempre eu estou sentado e esperando. Eu sou aquele que espera a luz, humana. Nada mais que isso.

- “Desde sempre” não é tempo demais para alguém estar esperando?

- Sim...e não. O que te garante que o tempo passe de maneira idêntica a todos vós, mortais humanos? Enquanto um pode estar passando pela eternidade em uns segundos, outro pode ter passado por décadas em um instante. Na vida, nos pensamentos, no nada. Por isso os humanos são tão interessantes, e por isso, esperar desde sempre não me parece tão fatigante a mim quanto parece a ti.

- Ah... – respondeu a garota, mesmo sem entender muito bem o que aquele velho aparentemente maluco dizia. “E como vim parar aqui?” perguntou-se de sopetão.

- Ainda tens coisas a perguntar a mim, humana? Suspeito que eu seja o que precisa responder dessa vez.

- Então nem todas as vezes você responde?

- Não tenho todas as respostas, só o grande regente as possui, e ainda assim, espanta-se com os mortais e sua capacidade de serem imprevisíveis.

- E que tipo de respostas você não tem?

- “Até quando eu devo esperar” é uma resposta que não posso prever, por exemplo. Muitas outras. Há muitas perguntas que não podemos prever ou responder, as tentativas e o percurso para chegar na resposta (que talvez nem exista) é o que torna esse tipo de pergunta a mais interessante e deliciosa a se fazer, humana.

- E o que exatamente é a tal ‘luz’ que você espera? Isso é algum código, né?

- Tudo no mundo humano é código e enigma, filhote. A luz que espero não pode fugir a essa regra, apesar de carregar o poder de quebrar várias outras. A luz que os humanos procuram pode ser qualquer coisa, e coisa nenhuma. Uma palavra, uma ideia, uma pessoa, uma direção. Tudo pode ser a luz. Nada também pode ser a luz. A luz que procuro é um pouco de Tudo.

- Por que você sempre dá um jeito de fugir das perguntas?

- Cada um precisa encontrar o jeito de correr para alcançar as respostas. E cada um deve encontrar a sua luz, trilhando o caminho que escolheu sem arrependimentos pelas belas paisagens ou desertos inóspitos.

- Sei...sei...e o que demônios é a tal da luz que você tanto procura? Por que não sai dessa floresta escura e vai procurar, se quer tanto encontrar? Faça uma tocha com essa fogueira e vá! E tinha que chover logo agora? – diz a garota olhando pra cima, espantando-se depois com o velho e a fogueira, que não cederam um milímetro para a chuva.

- Ah, a chuva... a chuva me lembra uma pessoa. E a fogueira me lembra a luz. Por que não conseguimos de admitir que água e fogo são partes da mesma coisa? Sim, são. São um pouco de tudo.

- Então o que você espera tanto é...a chuva!? Aiai, pra que diabos eu vim até aqui?

- Não, não... chuva e fogueira são apenas lembranças. Uma aparece as vezes, outra eu ‘roubei’. São pedaços da luz. A segunda pergunta é interessante, uma que também não sei responder. Mas não foi uma escolha sua sentar-se aqui, perto de uma fogueira com fogo azul e ficar aqui mesmo debaixo de chuva ouvindo o velho que está esperando a luz, humana?

- F-foi...

- Eu sou o que escolheu esperar a luz. As consequências disso são um pequeno calor inextinguível, um pedaço roubado da luz que devo entregar assim que ela venha até mim, algo que lembra do calor e do poder que a luz tem em fazer das sombras o que são. A chuva que aparece por vezes para tentar abalar isso, traz a lembrança que uma fogueira de lembranças pode apagar a qualquer momento. E pessoas que vem e vão, para testar a força de uma promessa.

- Ah... – disse a garota, como na primeira vez, dessa vez, entendendo alguma coisa.

- Eu sou o que espera a luz por escolha própria. Escolhas são o que cada um deve fazer. Suportar as consequências boas e ruins das escolhas é o que os humanos chamam de ‘viver’, filhote. Eu sou o que vive com as escolhas que fiz. Não importa se há apenas uma fogueira, se a luz não vira, se nunca mais aparecem pessoas, se choverá eternamente, se a fogueira apagar, se existem outros “se”. O que deve importar é a escolha e a certeza de carregar, enfrentar e suportar todas as suas consequências. Para os filhotes de humano, nada deve estar acima das escolhas.

- Você não parece com nada que existe nesse mundo...

- Então sou igual e diferente de tudo que existe nele, ou talvez realmente não seja daqui. Não me faz muita diferença, filhote. O que me importa é esperar a luz. O importa para você, humana? Qual a sua escolha? Quais as consequências que você vai suportar? Essas são coisas que apenas você pode decidir, e ninguém mais deve interferir na sua decisão final. - Então...até a volta. – disse a garota, após um suspiro, se levantando e afastando-se a passos lentos sob a chuva.

- O que vais fazer, garota?

- A minha escolha. Eu escolhi fazer isso agora.

- Entendo...não te direi até a volta, posto que ela já é certa, daqui a uns instantes ou eternidades. Até sempre, filhote de humana... até sempre.

Dija Darkdija
Enviado por Dija Darkdija em 31/01/2012
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