A OCASIÃO ESPECIAL
O tempo. Nenhum dos convidados percebera, mas o tempo fora o primeiro a sentar-se, à cabeceira da mesa, tendo um guardanapo preto preso ao peito impassível e trazendo, nos punhos de bronze eterno, aceradas facas que tricotavam dolorosas melodias de epílogo. Somente dona Constância, agora velha, mera anfitriã daquela família que já não era sua, sentia a presença gigantesca do infalível convidado. Lá se ia o filho para os regalos da esposa, como um dia ela própria também fora viver entre as gentes do marido. Assim regulavam-se os sucessos nas tábuas aritméticas do destino. Toda felicidade traz latente em si o germe da dor. Dona Constância bem compreendia essa sentença terrível e servia a todos com o orgulho altivo do guerreiro que sabe que jamais voltará da guerra. Era seu último almoço com o filho. As conchas cheias.
Embora sorrisse, a mulher trazia o coração embrulhado em folhas de jornal, como costumava fazer com os mamões para torná-los maduros. Ouvia as vozes dos convivas expandindo-se em modulações vertiginosas, brindes carregados por uma euforia fugaz, risadas coloridas, animadas, febris, tudo tão igual e tão diferente dos velhos banquetes de outrora, quando a família se reunia à mesa sem qualquer motivo especial, simplesmente pelo prazer gratificante da convivência fraterna, pela alegria fresca e venturosa que um dava ao outro.
Ninguém imagina quão grande é a parte do passado que permanece no presente. As farpas... Dona Constância esgrimia os morcegos que voejavam nas catacumbas de seu cérebro armada com uma tocha de chamas grisalhas. Uma vez, quando o filho fez dez anos, ela chegara a pôr os copos de sua avó na mesa, mas arrependera-se e os guardara novamente na velha cristaleira antes da criançada chegar à festa. Servira toda groselha em copos de geléia Colombo, e o fez muito bem, porque muitos deles transformaram-se em cacos naquela tarde. Agora, porém, fora mais longe. Servira a bebida em copos de papel...
Certas imagens não desbotam nunca, mesmo que lhes deitem por cima a baba do tempo. Os copos... Era ainda uma menina, quando ganhara da avó aquele presente extraordinário. Impossível esquecer a textura macia que o laço de seda produziu em seus dedos melífluos ao desatar o gracioso nó do embrulho. Dentro da caixa, a pequena Constância descobriu, com seus olhos maravilhados de estrelas, um conjunto de copos de inacreditável beleza. Mil brilhos fulgiam em cintilações acetinadas, como se o cristal refletisse a própria alma da menina, arrebatada por uma legião de borboletas travessas. A tão velhinha avó chamou a neta num canto da casa, que cheirava a verniz de taco de assoalho, e lhe entregou o pacote, dizendo:
- São copos de cristal da Baviera que pertenceram à minha mãe. Nem ela nem eu tivemos oportunidade para utilizá-los. Guarde-os com carinhos para usar numa ocasião especial!
A ocasião especial seria a festa de seu casamento. Decidira isso aos doze anos, quando se apaixonara pelo menino mais bonito da escola e sonhava beber champanhe num dos copos nacarados da avó, tendo os braços entrelaçados nos dele, como vira fazer o Rodolfo Valentino com uma atriz numa fita do cinematógrafo. Constância fora crescendo e durante anos os copos permaneceram calados na cristaleira, observando as pessoas que iam e vinham sem dar por eles. Não casara com o menino mais bonito da escola, nem tivera oportunidade de usar os copos em seu casamento, pois a festa aconteceu na casa dos sogros e Constância ficou sem jeito de levar os copos. Enfim, teve de adiar a estréia para outra ocasião.
Esteve para utilizar os copos logo após o nascimento do filho, mas achou melhor esperar pelo batizado e, quando chegou o batizado, resolveu adiar para a festa do primeiro aniversário do pequerrucho.
E os anos foram passando... Sempre que alguém precisava de copos, Constância dizia:
- Pegue qualquer um, menos os que estão na cristaleira da sala, pois os estou guardando para uma ocasião especial.
Não é preciso dizer que esta ocasião nunca chegou. Os copos continuaram dormindo virgens na solidão da cristaleira, ano após ano, alheios ao pó indomável que o tempo soprava sobre eles. Dona Constância passou a nutrir pelos copos uma espécie de afeição mórbida, doentia, quase como se eles fossem uma relíquia sagrada. Ai de quem lhe pusesse os dedos em cima! Finalmente, decidira que os usaria no casamento do filho, mas mudou de idéia no dia em que conheceu a futura nora, pois a achou detestável. Por pirraça, serviu as bebidas em copos de papel...
Do que dona Constância morreu, algumas semanas após o casamento, ninguém nunca soube direito. Dizem que, enquanto delirava no leito de morte, houve um momento em que ela arregalou os olhos e grunhiu:
- Os copos!
Mas ninguém entendeu o que ela queria dizer com isso. De qualquer forma, os tais não foram para o lixo sem uso. Durante o velório, alguém se lembrou de preparar um bule de café e saíram a procurar copos pela casa:
- Aqui tem uns, gritou a nora, muito satisfeita.
Todos concordaram que dona Constância parecia sorrir. Enfim, era uma ocasião especial!