Cap. 1
Tive um susto quando a vi nua em minha frente, despudoradamente. Sem máscaras, desvelada, completamente entregue ao buliço. Quando estou só e pensativo é a imagem que me vem ao pensamento. Lembro-me a primeira vez que a toquei, depois a segunda e outras tantas seguidas. Nunca forcei que viesse a mim. Nunca supliquei sua presença. Também não a esperei. Preciso estar só. Ela vem ao meu encontro e me possui.
Ontem eu liguei para a Clarice. Expliquei as imagens que estavam frequentando minha memória . Marcamos um café. Contei sobre o que tem me acontecido. Ela reparava a música que saía da minha preocupação, os gestos do meu corpo, do meu rosto, meus sorrisos e as mãos que tentavam ampliar o que eu dizia.
- Gostei do cordão que está usando no seu braço.
Não tinha nada que comentar sobre o cordão hippie no meu braço. Minhas preocupações eram mais importantes. Imagens eróticas com alguém que já havia falecido.
- O que tem feito de bom?
Expliquei meus projetos e mudei a música sem perceber. Falei dos meus planos e minhas conquistas. Disse que estava pintando coisas novas. Girassol. Adoro girassóis. Ela sorriu. Clarice nunca entendia o que eu dizia, mas sabia ouvir. Aprendi com ela a ouvir o canto e os desencantos daqueles que me confiam segredos.
- Você tem o talento da oratória e, eu, o da escutatória.
Depois do café saimos. Fomos sentar à beira do lago. Estava frio. No carro já tinha um cobertor quadriculado bem grosso. Talvez tivesse prefigurado nosso encontro e se preparou para o momento. Nos embrulhamos e ficamos calados, vendo o reflexo da lua crescente no lago.
- O lago está calmo.
Ou seria ela quem refletia sua calmaria no lago?
- Lembra do Stanislau?
Como poderia esquecer. Gostava das mesmas coisas que eu e procurava sempre fazer o melhor para seus inimigos. Aprendi muitas coisas com ele, não nego e era muito divertido também. Tinha uma estatura exagerada, loiro e com um cavanhaque mal feito. Olhos azuis e mãos longas. Magricela, igual a mim. Tinha um sotaque russo, mas era brasileiro. Passou um ano na Rússia, por conta da sua mãe, e voltou com sotaque.
Um dia, lembro-me bem, saímos. Eu, Stanislau, Clarice e uma amiga sua. Ela era uma camponesa do Mato Grosso. Stanislau ficou "caidão" por ela. Ele era todo atrapalhado. Nós fomos visitar a feira da torre e os dois saíram para nosso lado oposto. Quando retornamos a amiga da Clarice estava suja de molho.
- Foi o Nis.
Tinha que ser. O que ele tinha de atrapalhado, tinha de amigo.
Claro que lembrava do Stanislau, era um companheirão. Aprendi muito com ele. Era bom ouvir suas histórias e seus conselhos. Nem sempre me serviam, mas ele falava com tanta segurança e de uma forma tão fraterna, que poderia ser ouvido sem chateação ou suspeitas.
- Ele está morando na Rússia faz dois anos. Me escreveu no natal. Disse que estava aprendendo a falar russo com sotaque brasileiro. Ainda está solteiro, mas namora uma moça chamada Rebecca Knütz.
Pensei no molho de frango daquele encontro e comentei com Clarice. Sorrimos juntos. Espero que ele esteja bem. Senti saudades...
Ela segurou minha mão e olhou o meu pulso.
- Ficou bem em você. Diferente.
Ela falava do meu cordão hippie. Nunca havia usado algo preso no meu pulso, nem mesmo relógio. Comentei que estava pensando em fazer uma tatuagem no braço esquerdo. Tribal. Algo sem forma. Ela sorriu e disse que eu não faria. Ela me conhece bem. Uma tatuagem seria algo improvável.
- Você é muito previsível. Creio que se eu convivesse com você, saberia, em pouco tempo, seus medos, seus defeitos, suas qualidades e suas reverências religiosas. Sei o que você mais gosta: suco de laranja e chás sem açúcar, não é?
Era bom estar com Clarice.
Tinha um ânimo natural que brotava do mais profundo estado de serenidade. Olhei seu rosto. Estava absorta em pensamentos distantes, longes… O que estaria pensando? As vezes eu reparava nela como um poeta repara na lua. E via alta demais. Tinha cabelos curtos e negros. Sua pele era clara e os olhos grandes e expressivos. Ela falava mais com os olhos que com sua boca. E eu a entendia. Ela não era alta. Seu corpo era abarcado pelos meus braços num abraço.
- Vamos?
De fato, já estava tarde. Passava das dez. Eu não tinha horário para chegar em casa e podia ficar mais tempo com ela. Levantamos. Dobrei o cobertor quadriculado e seguimos, de mãos dadas, para o carro.
- E aquelas imagens?
Pensei que havia esquecido. São só lembranças. Me aparecem quando estou só. Leio para driblá-las. Escrevo como um método de sublimação. Exorcismo. São só imagens. Uma hora ou outra serão substituídas.
- Você precisa sair mais. Ver gente. Mas precisa assistir televisão em dia de domingo. Aprenda a falar futilidades. Que tal literatura inútil? Deboche das coisas sérias. Divirta-se.
Não gostava de ouvir essas coisas, mesmo que sua música fosse de preocupação por mim. Hoje ainda é domingo. Se fosse sexta ou sábado poderia colocar em prática no dia seguinte, mas é domingo e no dia seguinte trabalho. Quando terminhar o expediente voltarei cansado. Tomarei banho, comerei algo, lerei ou escreverei um pouco e depois irei dormir. Farei isso por mais quatro dias e, no final de semana, estaria livre da rotina.
- O que quer fazer agora?
Achei que sua pergunta estava deslocada. Pensei que estava voltando para minha casa, mas a sua pergunta sugeria tudo, menos, voltar para casa. O que sugere?
- Não digo. Confie.
Por mim tudo bem. Era um tempinho a mais que eu poderia ficar com Clarice. Eu queria beber absinto. Uma dose apenas. Absinto me deixa mais criativo e ela sabia disso. Mas não fomos ao bar. Passamos por ele. Estava cheio. Fomos ao seu apartamento.
- Nunca trouxe você aqui.
De fato, nunca estive lá e por que iria? Faltava-me o convite.
Não havia elevador.
Tivemos que subir calados cada degrau. Ela segurava minha mão.
Faz tempo que conheci Clarice. Foi no tempo de ciclismo. Andava no parque vestido a rigor, capacete azul, bermuda de lycra e luvas. Distraído, me desequilibrei. Caí aos seus pés. Ela sorriu. Perguntei se algum homem já havia caído aos seus pés.
- Você é o primeiro.
Depois dessas palavras fui tomar água de coco e ela me acompanhou com salada de frutas. Conversamos por muito tempo sobre diversas coisas e, no mesmo dia, nos demos por conhecidos e trocamos contatos. Passados duas semanas nos encontramos novamente no parque. Ficamos algumas horas conversando. Nesse dia caiu uma chuva tão forte que tivemos que ficar abrigados num ponto de ônibus encolhidos. Foi então que senti seu abraço. Buscava abrigo junto ao meu corpo e eu procurava protegê-la dos pingos frios da chuva.
Retirou da bolsa as chaves. Escolheu uma e entramos.
- Você bebe?
Afirmei com a cabeça e um resmungo enquanto reparava na parede quadros desenhados em pastel.
- Imitação minha de Martha Barros.
Não sabia que tinha dotes artísticos. Segurei da sua mão um copo de uísque com gelo e um guardanapo branco por baixo.
- Gosto de Martha Barros. Acho fácil imitá-la. É só fechar os olhos, imaginar os limites da folha e desenhar bem pequeno uma baratinha esmigalhada. Gosta de música? Sei que não é adepto de televisão.
Colocou baixinho o acústico do Clapton. E saiu em direção ao seu quarto. Fiquei só. Eu, Clapton e Martha Barros. Estes eram só companhias. Eu é que existia em carne, ossos e nervosismo. O que Clarice foi fazer?
Quando voltou, meu copo estava vazio e Clapton tocava "Laila".
Tive um susto quando a vi nua em minha frente, despudoradamente. Sem máscaras, desvelada, completamente entregue ao buliço. Não era mais uma imagem guardada na memória. Era Clarice que me convidava ao amor com seu olhar, com sua boca desejosa, com seu corpo nu. Quis me demorar diante daquela imagem. Quis guardar cada variação de luz que seu corpo branco apreendia. Uma iluminação bruxuleante acentuava seus traços femininos. Deixara o pescoço exposto. Cabelo, mesmo curto, estava preso. Num gesto terno estendeu seus braços buscando, num abraço, meu corpo.
Fizemos amor. E o amor foi feito, sem falarmos nada.
Agora trago, como tatuagem na minha alma, a imagem nua da Clarice.