A CASA VAZIA

A roupa molhada molhava suas anáguas e um vento provindo do sul banhava a face diante do varal estendido no fundo do quintal. As mãos trêmulas e cálidas sustentavam a peça desbotada e surrada pela maestria do tempo num esforço quase sobrenatural. Estava fraca, esquálida, e impossibilitada de reger os desígnios do seu destino. Só a vastidão da desesperança em cumplicidade com aquela nefasta forma de viver norteava cada segundo daquela ínfima vida. Um olhar tênue, vez ou outra, aparecia na janela para apaziguar ou desgraçar ainda mais a alma. Um olhar de súplica, de desdém ou condenação cravava em seu peito as lâminas da desilusão, da falta de perspectiva, com o intuito de um leve suborno na tentativa de obter uma resposta em retornar, talvez, o mesmo desgraçado olhar. Ela mantinha-se indiferente, e se não há castigo pior, o inferno guardou dentro dos seus escombros de morte e sofrimento algo que possa agredir com muito mais horror, a alma de um reles ser. Sim, esta era a forma que a mãe achava para castigá-lo. Já que era desprovida de qualquer reação por falta de forças. E não era por maldade. Era por um amor inefável e sublime. Se pensarem que ela era louca ou demente, estão errados. Não era. Era uma nesga de vida, um sopro proliferado em cada partícula do seu ser. A miséria mais mísera, mais inexprimível existia naqueles dias de seca e fome. Um sóbrio vento sempre soprava pelas longas tardes trazendo notícias de um mundo injusto. Não era má. Nunca havia tocado o dorso daquele menino com sadismo. Às vezes reservava uma profícua força para abatê-lo junto ao seu colo. Esboçava, de quando em vez, um afago em seus crespos cabelos. E esse gesto o alimentava e supria a sua sede de vida. Ele sofrera o mimetismo que a miséria promove na vida dos seus súditos. Sim, ambos eram súditos da miséria de uma vida onde a melhor saída era uma morte menos doída, menos sofrida no momento crucial entre a divindade e a peia da existência.

-Ô, João! Vem tomar sol, menino! Gritava para dentro de si mesma.

João aparecia por instinto, e não porque a ouvia. Ficava a catar gravetos embaixo da velha goiabeira. Juntava tudo em montinhos e tentava fazer um mini cercado. Achava que era para simular uma criação de cabras. Ela o observava sem pejo e sem aprovação. Observava mediocremente pelo reles fato de não haver nada de mais útil a fazer. João divertia-se inocentemente com aquela singela saída do seu mundo régio. No cerne da sua existência havia apenas os gravetos e a velha e desgraçada mãe: Marilda.

Costumavam sair no meio da tarde para tomar banho num pequeno córrego que ainda trazia no seu leito um filete d`água. Uma água barrenta com gosto de ferrugem renovava o espírito daquelas duas vidas incólumes. Incólumes porque nada mais poderia ser mais sofrido, nada mais poderia ser menos virtuoso. Essa era a grande virtude. Depois do banho, levavam as pedrinhas que ficavam nas pequeninas margens para casa. Devia ser uma forma nobre de guardar uma recordação daqueles momentos que passavam juntos. Ou uma forma de agradecimento pela existência das águas daquele córrego. Ou eram as duas coisas.

A casa onde moravam, se é que podemos chamar aquela joça de casa, era de taipa, uma espécie de armação de madeiras entrelaçadas e encorpadas com barro para tapar os orifícios. O telhado era à base de tabua, uma planta de folhas finas e compridas, que cresce no brejo. E brejo era algo difícil de se encontrar num lugar tão remoto e seco. Mas, nas épocas de chuva, o pequeno córrego dava os ares à sua condição de prover a vida e conseguia fertilizar essas plantas e outras formas de existência. O quintal era imenso com toda a vastidão que os cercava. Havia apenas três pequenos cômodos, uma saleta, uma cozinha singela e o pequeno quarto que dividiam. Nos fundo tinha o banheiro feito nas mesmas características da casa com uma fossa que os antigos moradores cavaram para as necessidades fisiológicas. Dormiam em rede, que já era costume da região.

João era o troféu de uma fracassada relação. E se Marilda achava que não havia desgraça pior do que aquela vida que levavam naquele fim de mundo, ainda não conhecia a verdadeira desgraça.

Numa manhã calada, Marilda tomou rumo para o quintal numa automática ação costumeira de olhar o horizonte à volta. Juntou os gravetos do João num canto próximo da parede e foi preparar o café. Cozinhou algumas mandiocas e ficou esperando que João aparecesse para fazerem a refeição num istmo de união que os ligava religiosamente todos os dias. Este começava levantar-se por volta da sete horas da manhã. Passou-se cerca de meia hora e João não apareceu. Aflita, esboçou um chamado.

- João, meu filho. Está na hora de acordar. Gritou na direção do quarto. Mas não houve resposta.

Esperou mais um pouco. Deve estar bastante cansado por ter ficado brincando com aqueles malditos gravetos e não quer se levantar. Pensou consigo.

- João! Bramiu, entrando no quarto. Mas ele estava inerte, não respondeu nem murmurou nada. Ficou apavorada e correu de encontro à sua rede. Colocou as mãos no seu rosto e sentiu que estava muito quente. Mas respirava e tremia como uma vara de pescar. Estava com febre. Quantos graus, não sabia. Mas estava muito alta.

- Meu Deus! Que há com o meu filho? Porque ele está desse jeito?

Enrolou-o num cobertor maior deixando-o em repouso na rede e correu para o quintal no intuito de apanhar algumas ervas-doces com camomila para tentar baixar a febre e curar a possível gripe. Só podia ser gripe. Que mais poderia ser? Na sua alta concepção de uma reles ignorante, não podia inferir sobre outra doença.

Fez o chá e levou para o João tomar.

- Beba, meu filho. Tome que Deus vai te curar desta maldita gripe.

João delirava e tremia mais ainda. Bebeu alguns goles goela abaixo quase se engasgando e continuou deitado na fina rede. Cobriu-o com mais um lençol e foi tecer umas preces junto a nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Pediu a Nossa Senhora para que o livrasse daquela enfermidade e, em troca, fez uma promessa, não poderia deixar de fazer, o levaria até a igreja situada na pequena vila para que ele pudesse se ajoelhar aos seus pés e agradecer pessoalmente.

O dia passou lento como tudo naquele lugar. A noite veio sorrateira e cruel baixar sobre a casa como uma sombra no prenúncio do seu negrume. O menino continuava na mesma, noite afora. Gemia uns grunhidos de delírios intercalados. Paulatinamente tremia. Não sabia mais o que fazer. O jeito era levá-lo ao médico no dia seguinte. Mas num lugar perdido no além mundo como aquele, médico era quase impossível. Havia um pequeno posto médico no Município mais próximo. Este ficava umas duas léguas e meia de distância do, se é que podemos chamá-lo assim, vilarejo. Estava decidido. Ela o levaria nem que fosse a pé ao tal posto médico. Já que não dispunham de nenhum tipo de transporte ali. Só havia a carroça de um vizinho rude e mal educado que poderia levá-los. Poderia tentar, pensou, mas não sabia se ele aceitaria o propósito. Pensando no dia seguinte, esvaeceu ao lado do filho.

Acordou no primeiro cantar dos galos, e postou-se diante do João como uma estátua muda e o observou. Suava frio como um picolé recém saído do refrigerador. Conduziu os passos até a cozinha e apanhou um pouco de chá e levou para que João pudesse tomá-lo. O coitado engolia o líquido sem ao menos saber do que se tratava. Seus miúdos olhinhos olhavam com tristeza e consternação para um ponto fixo na parede. Marilda não tinha lágrimas para verter. Apenas sentia a dor no âmago da angústia. Tentou afagar os cabelos crespos do garoto, mas não consegui. Tinha uma espécie de culpa e amargura que dilacerava seu tosco coração em mil fragmentos. Não conseguia tocá-lo em afago. Só se doava em cumplicidade pela inépcia de não poder fazer nada para ajudá-lo sem precisar recorrer aos médicos. Isso, os médicos. Ela sentiu que precisava levá-lo urgentemente.

Deixou-o em desvario na velha rede, pegou o velho redingote e rumou para a casa do senhor rabugento que tinha a carroça para levá-lo ao médico.

- Senhor Jonas! Ô Senhor Jonas! Chamou pelo velho em frente a sua casa. Jonas era o seu nome.

- Quem é? Quem está incomodando na porta da minha casa a essa hora do dia? Ralhou o velho.

- Ô Seu Jonas, pelo amor de Deus. O senhor precisa fazer uma caridade para mim. Meu filho adoeceu repentinamente e precisa ser levado ao médico urgentemente. Não dá para o senhor levá-lo na sua carroça? Suplicou.

- Olha, a minha carroça já está quase nas últimas também. Não sei se ela agüenta chegar até a cidade. Retrucou o velho.

- Se o senhor não levá-lo, morrerá a mingua neste fim de mundo. Por favor, seu Jonas, leve o meu filho. Pediu veementemente.

Nisso apareceu dona Emengarda que, com aquele rebuliço todo, veio saber o que estava acontecendo.

- Que foi, Jonas? O que está acontecendo? Perguntou a esposa do velho rabugento.

- Não está acontecendo nada. É esta mulher que está querendo que eu a faça um favor. Mas já disse que não dá. Respondeu com desdém.

- O que aconteceu, minha filha? Perguntou dona Emengarda com mais ternura.

- Meu filho está com uma febre altíssima e eu não consigo fazer nada para ajudá-lo. Já dei todo remédio que tinha e não adiantou nada. Pelo amor de Deus, eu preciso que seu marido o leve até a cidade para os médicos verificarem o que ele tem. Impetrou sobre dona Emengarda.

- Ô Jonas! Faça esse favor para a moça. Nós não sabemos o dia de amanhã e não custa nada você levar o pirralho até a cidade. Pediu a esposa.

- Está bem. Mas eu o levo e já volto na mesma hora. Não quero perder meu tempo esperando diagnóstico de médico. Ainda mais daquele da cidade. Concordou o marido.

A mulher pegou nas mãos de lixa do velho e depois abraçou calorosamente a sua esposa numa espécie de agradecimento antecipado. Não disse nem mais uma palavra. O velho ficara de passar na casa dela para os apanhar.

Voltou com um fio de esperança no peito. Com um pouco de ânimo arrumou o seu pirralho, colocou-lhe uma compressa de pano úmido na testa e ficaram aguardando a chegada do velho Jonas. Este chegou meia hora depois e estacionou a carroça em frente da casa. Pegou o menino e o acomodou em seu colo na parte traseira do veículo movido a tração animal. A viagem transcorreu muda. Só havia o barulho dos cascos da mula e o choro das rodas em atrito com os eixos de ferro.

Três horas depois chegaram ao tal posto médico. Apearam e, com aflição, Marilda rumou com seu filho para dentro do posto. Este era formado por duas salas medianas. Numa sala se marcava a consulta, na outra era feito o atendimento.

- Por favor, minha filha! O médico está por aí hoje? Preciso que ele dê uma olhada no meu menino. Perguntou à mocinha que ficava na recepção.

- Ele precisou sair para atender uma senhora em serviço de parto. Logo estará aqui. Respondeu a moça.

Ficaram sentados num pequeno banco destinado às pessoas que ficavam na espera. João queimava em febre e tremia. Após ter acomodado a cabeça do menino sobre seu colo ficaram contemplando os segundos passarem. Passadas duas horas e meia, aproximadamente, chegou o médico.

- Que há com o garoto? Perguntou o médico.

- Não sei doutor. Amanheceu ontem com muita febre. Dei chá de camomila e erva-doce, mas não adiantou.

- Traga-o aqui na sala ao lado. Vou dar uma examinada. Pediu.

Na sala, o médico examinou-o com sua aparelhagem insuficiente, abriu os olhos da criança, olhou na parte branca e disse que ele estava desnutrido. Precisava de uma alimentação melhor, tomar sulfato ferroso e outras vitaminas. Quanto à febre, disse que estava com uma tal de virose. Era preciso tomar antibióticos para curá-lo.

- Onde eu posso arrumar esse tal de antibiótico, doutor?

- Olha, aqui não temos, pois a prefeitura não liberou as verbas para comprarmos alguns remédios que estão em falta. E esse antibiótico é um dos que estão em falta. A senhora vai ter de comprá-lo na farmácia.

- Meu Deus, como vou comprar um remédio tão caro? Não temos nem para comer. Que farei pelo meu filho sem dinheiro? Falou para si mesma em desespero.

O médico arrumou alguns analgésicos e antitérmicos a fim de controlar a febre e, Marilda, não sabendo mais o que fazer, rumou para a farmácia com um único intuito de adquirir o remédio pela graça de Deus. Pegou-se com tudo que era Santo para ser agraciada com a condolência do farmacêutico. Ao chegar, adentrou o estabelecimento postando-se diante do balcão e foi falar com o gerente para vender-lhe o remédio fiado que depois daria um jeito de pagar. Mas o jovem gerente, preocupado com o seu posto de trabalho, não se arriscou a vender fiado para uma desconhecida. Pegou então o filhote e tocaram para a estrada com o alento de pegar alguma carona, pois o coitado não agüentava andar. De sorte, passava um senhor dirigindo um velho trator e se compadeceu de sua situação e ofereceu a carona. Chegaram em casa exaustos de tanta amolação daquela viagem forçada. O menino estava amarelo de fome. Esta era a cor do descaso sofrido pelas autoridades competentes e responsáveis pela dignidade daquela gente refém do descaso e do abandono total a que era submetida. Acomodou-o na sua rede em farrapos e foi preparar uma sopa para que pudesse se alimentar. Os primeiros sinais do crepúsculo da tarde pendiam no quintal com as sombras da casa esticadas até a goiabeira. Enquanto fazia a refeição, chorava em silêncio. Era, antes de tudo, uma dor aguda, uma dor que esquartejava cada fragmento do seu corpo, e, não obstante, ainda ressecava a alma já tanto castigada. O filho ali jogado à míngua morrendo aos poucos sem que pudesse fazer nada para trazê-lo de volta àquela vida que, antes, se era miserável, agora, doente, era ainda pior. Soluçava como uma criança dengosa. Fazia preces a todos os santos e jurava morrer se não conseguisse salvá-lo.

Três dias se passaram desde o dia em que amanheceu daquele jeito. Neste terceiro dia, João deu um pequeno sinal de melhora. Até fez um pequeno esboço de sorriso nos finos lábios. Mas era uma melhora aparente. Ao cair da noite impiedosa seu estado piorou gradativamente numa proporção muito maior do que estava apresentando nos dois primeiros dias. A mãe estava desesperada e rogava a Deus para livrá-lo daquela maldita doença. Pegou uma toalha umedecida e ficou ao seu lado para tentar abaixar a febre. Os antitérmicos não estavam surtindo efeito. Colocou-a sobre a sua testa e ficou ali parada e esperançosa de que um milagre acontecesse. Os segundos passavam vagarosamente em cada canto de grilo. Segregava em seus lábios uma baba amarelada. Já não respondia a nenhum estímulo. Por mais que o balançasse e chamasse pelo seu nome, nada, absolutamente nada de reação. Esta chorava em prantos. Ninguém a um raio de trezentos metros poderia ouvi-la ou sentir seu sofrimento. Passava já da meia noite e ele gemia baixinho para dentro de si mesmo. Com pesar rezava e chorava ao mesmo tempo. Prometia a própria vida em troca da dele. Mas acho que o grande pai não a ouviu. Por volta das quatro horas da manhã, deitado em seu colo, o único sentido naquela vida desgraçada expirou nos seus braços. Suas lágrimas rolaram pela face machucada e macilenta. Gritou a todos os Santos e blasfemou contra Deus e o mundo. Toda a vizinhança que morava a uma certa distância ouviu e veio em seu socorro. Mas já não dava para fazer nada. João da Silva de Jesus estava morto.

No dia seguinte, esses vizinhos encarregaram-se do enterro, pois aquela mãe já não tinha mais forças para nada. Enterraram o João num pequeno cemitério perto da capela e voltaram todos para suas casas.

A dor daqueles dias nunca passou. Marilda vagava pela vida assim como vaga um bêbado. Sua vida estava acabada. Ela, que antes a achava uma desgraça total, agora não a achava nem desgraçada, nem virtuosa, achava-a um nada. E um nada é pior do que qualquer desgraça. O vazio da alma a corroera por dentro e por fora. O velho casebre de taipas não significava nada além de uma rude estrutura. Antes ainda tinha o João, que morrera de febre e desnutrição, ou seja, morrera de fome mesmo, uma fome nutricional, para olhá-la pela janela, mas depois de sua morte, só o vazio. Ela vivia na teimosia latente da alma em castigar os filhos da resignação. Vivia organicamente, pois espiritualmente estava morta. Cada vão silêncio era pior do que a inefável dor que gritava no cerne da sua existência. Não havia mais gravetos. Não havia mais as pedrinhas do córrego. Não havia mais o elo, nem o banho, nem a rede. Só ela e o seu lídimo sofrimento com uma súbita vontade de morrer, de esvaecer por um canto qualquer daquela casinha singela. Desejava tomar um gole do veneno da vida e entregar sua alma a Deus, mas faltava vontade de fazer qualquer que fosse a ação. A casa existia, Marilda vivia, porém não existia. Estavam ambas vazias.

Márcio Ahimsa
Enviado por Márcio Ahimsa em 14/01/2007
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