Farsa do ator que sou eu

“Aleluia”, eu pensava, enquanto meu cigarro se consumia lentamente, sem que eu o tragasse.

E do quinto andar onde estava, eu via o trânsito correr como um borrão anormal, quase que acompanhado pelo solo de um piano. Daqueles que desabam do céu, com suas melodias aceleradas de cinema mudo. É como convencionei chamar o vento.

Nenhuma poesia iria me forçar a parar o tempo. Ele teria de ir. E meu plano era tão ingenuamente maligno....Eu riria torcer as almas. Iria entorpecer a verdade, até que ela fosse facilmente venenosa. Até que os corações preferissem sucumbir diante de tantos ferimentos e tanta dor.

Mas o poema que esperava minha impaciente necessidade de falar, terminou antes mesmo de eu ter a chance de esquartejá-lo. Antes mesmo que eu pudesse investigar seu outro lado e causar ao mundo a hecatombe diária, bebida junto com o café da manhã de todos os lares que sobreviveram à noite. Estava tudo fora de controle. Tudo muito facilmente rápido. Era a resistência do destino que nos quebra. Que nos abraça. Que nos torna o pior pecado dos outros.

E eu tinha meu próprio fantasma, como o comendador que lentamente condenava Don Giovani ao inferno. “Parla, Parla.....” Estava tudo errado naquela noite. E foi quando entrou pela janela em preto e branco, o ator. Aquele cujo distante rosto feito de minhas intenções, habitava em mim desde sempre. Desde quando apenas manipulava estruturas química. Aquele contra quem levantei um reino inteiro, apenas para que visse minha fala assimétrica. Aquele que me encarcerou em um coração violento e irreconhecível. Feito de juras demoníacas e de um canto cheio de lamentos, disparados pelas mulheres justapostas em uma tumba. O ator falava apenas da espera.

E não podendo ser mais único, não podendo negar a teoria do octeto, decidi que adormeceria, para que se fizesse o desastre de nossas vidas. O ator se tornou meu corpo e minha mente. O ator fez com que eu morresse ali mesmo, enquanto o cigarro queimava minhas mãos, enquanto a violência em sépia e cinza consumia a metrópole. Esses eram os demônios do meu coração.

O ator andava como eu, flexionando músculos e revivendo tantas eras perdidas, na forma de um viajante que chega e parte sem avisar. Usava minha boca e meus olhos apenas para culpar. Apenas para dizer ao mundo aquilo que o mundo não é. Era a insanidade, era o que nunca poderia ser domado.

O ator andou pelas ruas, marchou sobre o mundo, e eu gritava em meu eterno cárcere: este não sou eu. Ele tem apenas meu nome. Ele tem meu sorriso, mas meu sorriso não diz o que todos pensam.

Um dia, diante de um palco vazio e de uma plateia nebulosa, o ator chorou. O ator queria que sua obra fosse eterna e definitiva, e para ser perfeito como a intenção que nasce do instinto, decidiu que eu deveria morrer de vez. Eu consenti que meu corpo fosse o instrumento da violência. Mas guardei meu segredo no canto mais escuro de um coração distante, para que mesmo mecanicamente habitante do mundo, ainda tivesse onde encontrar minha antiga forma. Eu era a aberração.

Lamentei cada corte no pulso naquele dia, cada dente espatifado, cada parede que ficou marcada pelas mãos do intérprete de mim mesmo. E o ator se desvestia de seu corpo, recortando sua pele com cacos de vidro e expondo a nudez de seus tecidos musculares, e toda a poesia guardada em sua mente vacilante. O ator falava de mim. Daquele que mesmo não sendo eu, era eu reencarnado. Era eu como apenas a metade de sua mente trancada. De suas dores da infância arruinada. E o ator pôde enfim olhar meus olhos. Ele me encontrou sentado de costas em um quarto de um cinza sem propósito, do quinto andar de um antigo edifício plantado no meio de uma metrópole cansada.

O vento gritava em fuga, como as valquírias Wagnerianas que fugiam da ira de seu pai. E ele se apaixonou pelo meu corpo inerte enquanto o circundava tentando entender como poderia brotar a vida de apenas um amontoado de moléculas simplórias. O vento era a desculpa de Deus para a minha criação. Era A falsificação da bênção. Era um oceano invisível desabando toneladas de promessas, orações, perfumes, fórmulas e verdades cegantes sobre minha cabeça de escritor do futuro.

O ator relutava por instantes em ser eu mesmo. E mais terrível se tonava sua dor, ao me ver de frente naquele momento. Quem era o ator e quem era eu? Quando se alterou então a realidade, pude renascer finalmente, e olhar no olhos daquele que também era parte de mim, Uma parte tão igual e tão milagrosamente simétrica que minhas lágrimas não se contiveram e explodiram como a fúria que habita as cicatrizes.

-Então, é você quem pode me dobrar? – perguntei para aquele que era eu também...

-Não. Sou eu quem pode lhe completar. – respondeu com a verdade de quem esteve dentro de mim por tanto tempo.

-E o que será daqui em diante?

-Será o caos, será o futuro, será o nada, será a noite, será o nascimento do eterno....

-E quando retornaremos?

-Sempre estaremos aqui. Como um dedo acusador contra as faces que o mundo tem....

O ator esteve tempo demais dentro de mim. Chorou todas as vezes que eu chorava ao ouvir a sexta sinfonia de Mahler, matou cada amor sem futuro que eu matei, usou cada corpo sem propósito que eu usei. Quando eu cantava a espera, ele apenas dormia o sono dos desencarnados. Quando eu jogava as palavras para cima, ele dançava sozinho o tango infernal. E quando eu atravessava o abismo entre o aqui e o reino sem esperança, ele acusava a covardia de que sou também capaz. O ator era apenas a outra parte de meu coração que durante muitos anos, manipulou estruturas equacionais e perfurou a pele normal dos detratores, simplesmente para ver que tipo de coisa degradante corria pelas suas veia.

O quinto andar naquele momento, foi inundado pela melodia bachiana, tocada por um anjo egresso de algum paraíso de uma criança que dormia no apartamento ao lado. Novamente os pianos desabavam, fazendo o jardim sob a chuva parecer uma floresta em plena tempestade. Onde raios desenhavam seus caminhos pelo céu. Ao mesmo tempo, pude ver a culpa de todo a existência de uma vida que não era minha. Era como o comendador dizendo: “Você me convidou para a ceia. E aqui estou.”

Em algum lugar daquele prédio, como leporello, o pintor em seu momento de silêncio, pensou:”ahhhhh patrão, ahhhh patrão...estamos todos mortos”.

Quando inventei os relógios, os canhões e os corpos feitos de improvisos, eu entendia o que estava além das paredes cinzas. Eu via o que os olhos viam quando chegavam até a janela e se assombravam com o neon pulsante, com a entoxicação que minhas palavras produzem e com a insolubilidade de alguns infernos particulares, todos construídos pelo medo e pela infinita covardia.

E o ator finalmente pôde vir para o meu lado esquerdo, enquanto o vento se retirava. Foi eu por tanto tempo, que naquele momento não poderia ser mais nada. E eu fui por tanto tempo o sono e o amor, que não poderia mais querer ser outro tipo de escrita, outro tipo de declaração.

O ator tocou minha mão cheia do sangue de todos aqueles que assassinei em nome da poesia. Retirou de meu coração todo o amor feito de estilhaços e pinturas imóveis. E perguntou:

-Você tem medo?

Eu respondi:

-Matei mais do que poderia prever. Não tenho mais medo.....

Daquele dia em diante, nos tornamos apenas um. Eu, habitando o coração imenso do ator distante e ele, sendo o lado esquerdo de meu corpo. Somos hoje um apenas. E infinitos desdobramentos no espaço-tempo.