O mestre
Para os amigos José Mattos de Almeida e Mário Pires de Mattos
Nossa narrativa flagra o mestre já aposentado... Tinham sido trinta e cinco anos ensinando, ensinando os cálculos matemáticos e os mistérios da Física. E ele fazia um balanço da jornada e se sentia feliz, realizado no seu propósito de ensinar. Orgulhava-se de ter incutido as bases da ciência em discípulos que se tornaram mestres, doutores, com saber de sobra e muita sobra para ensinar agora a ele, o mestre. Aposentadoria! Essa palavra, nos anos finais na estrada do giz, às vezes apavorava o mestre. Ficar sem repartir o laboratório e os cálculos lhe era por demais sofrido! Não ter mais, nas formaturas, a atenção dos holofotes com plateias a aplaudi-lo era angustiante para sua reserva narcísica. E o mestre se lembrava das muitas batalhas, das reprovações que tantas vezes assinara sozinho e que lhe valeram o ressentimento de alunos e pais. Ah! Pensava... Teria errado em ser tão exigente? A julgar pelas homenagens recebidas, talvez não. A julgar pelas caras feias nos corredores nos anos seguintes e pela recusa de alunos em cumprimentá-lo pelas ruas, talvez... talvez tivesse exagerado em exigir tanto, tanto e em responder com notas baixas aos que muito pouco respondiam. A julgar pelos insultuosos bilhetes anônimos... Era um mestre antigo, talvez não houvesse mesmo lugar para ele nessa escola de pedagogias tão modernas, em que o conhecimento costuma ser preterido.
Ah! Felizmente que gostava de viajar... E iria aproveitar o descanso para gastar a aposentadoria com algumas viagens, ora com a esposa, que ainda trabalhava, ora sozinho por esses interiores do Brasil. E nossa história o flagra em um desses momentos em que despido de qualquer lembrança dos tempos do giz o nosso mestre embarca na rodoviária rumo ao interior dessas Minas Gerais. Sozinho e feliz, ele entra no ônibus. Comprara um lugar na primeira poltrona, para se deliciar com a paisagem como se estivesse guiando.
Chamou-lhe a atenção o olhar do motorista, quando ele lhe entregou o bilhete. Não se lembrava dele, mas o olhar com que o fitara era de alguém que o conhecia, um olhar sisudo a que não se seguiu nenhum cumprimento.
O mestre, necessário é dizê-lo, impressionava-se às vezes com pequenas coisas, pequenos acontecimentos fortuitos, que o comum dos homens costuma desprezar. Não era o nosso personagem uma pessoa que se pudesse dizer corajosa, embora se expusesse a pequenos perigos, mas a verdade é que qualquer contratempo era motivo de inevitáveis sobressaltos. Vale lembrar que esse homem de mente matemática tinha medo de insetos e se assustava com pequenas aves. Contradições da alma humana! Certa feita, num ataque claustrofóbico, espalhou o pânico dentro de um elevador enguiçado e cheio de mulheres estarrecidas com tamanho escândalo.
Felizmente agora a tranquilidade da viagem... Que paisagem bonita das montanhas de Minas! Mas e o motorista? Ainda há pouco o aposentado dos cálculos o viu olhar para trás, em sua direção e cochichar alguma coisa com o cobrador. Que incômodo! Falariam dele? Decerto que sim... Talvez não! Que cálculo complexo! Esse lhe era impossível realizar... Ainda bem que a paisagem era bela, era serena e um lindo pôr do sol era um presente dos céus, tão lindo que uma criança acordou os que dormiam com uma doce exclamação, o que fez o motorista olhar levemente para a trás e seus olhos encontrarem os do viajante aposentado.
- Que coisa desagradável! – pensou o nosso herói dos cálculos – De onde será que esse homem me conhece? E por que me olha desse jeito?
O mestre tinha ótima memória, sobretudo para datas, para fórmulas; as fisionomias não ficavam gravadas em sua mente. Mesmo assim, vasculhou a memória, tentou se lembrar, mas era difícil. Pela aparência, o motorista devia ter uns trinta anos. Seus discípulos o abandonavam com dezoito no máximo; era muito difícil recordar... Não se lembrava! Teria sido um dos reprovados e que agora queria tirar lá suas satisfações, fazer não sabia o quê? Atirar o ônibus contra uma árvore? E nesse momento parecia que o homem corria, corria muito mais... Queria amedrontá-lo? Sabia-o medroso? Ah! Voltaria para as salas de aula, não viajaria mais... E o desinfeliz do motorista que voltava a olhar... Agora mais sério. O mestre chegou a ver-lhe um certo ressentimento.
Enfim, uma parada para o café. O motorista, à saída, cumprimentou a alguns e reservou para ele o mesmo intrigante olhar.
Dali a alguns minutos, no bar, o mestre – ainda confuso na sua tentativa de resgatar da memória o personagem – é cumprimentado pelo motorista:
- O senhor é o professor Caetano, não é?
- Sim, respondeu, visivelmente aliviado.
- Lembra-se de mim?
Exatamente naquele momento ele se lembrara, ouvindo a voz e observando o jeito do homem. Uns quinze anos os separavam, mas Caetano viu naquele homem o menino a quem (Ah! Que angustiante lembrança!) reprovara por quatro vezes seguidas numa das séries do ginásio, e sua tranquilidade se esvaneceu.
- Acho que me lembro sim.
- Tenho muito que agradecer ao senhor.
- Como? Se eu...
- Me reprovou quatro vezes. Imagina, professor, meu pai queria me fazer engenheiro...
- Você não queria?
- Meu sonho era ser motorista, guiar esse ônibus, professor, viajar por este Brasil. O senhor ajudou muito meu pai entender que meu caminho era a estrada...
Nosso mestre, definitivamente aliviado, seguiu viagem e, de parada em parada, ele degustava um cafezinho com aquele motorista vocacionado.