O LENÇOL PERFUMADO

Naquela casa havia rotina para tudo. Tudo parecia sempre seguir um ritual sagrado e milenar. A mesa do café da manhã posta exatamente às seis horas, o almoço neuroticamente às doze e jantar às dezoito. Celeste fazia questão de tudo estar sempre pronto a tempo e a hora, e acostumada estava há exatos doze anos desde que se casara com Anselmo. Era a ressurreição da mulher que fazia todo dia, tudo sempre igual. Ela quase nunca saía de seu lar, sempre ocupada com os afazeres da casa, o cuidado com os dois filhos e o trabalho como representante comercial. Aliás, justificava sua rotina como forma de manter a vida sempre organizada.

Fim de semana ela foi visitar os pais, já idosos em outra cidade. Dessa vez, ele não pôde acompanhá-la e ela seguiu com os filhos. A despedida foi com um belo beijo de amor trocado entre os dois sempre apaixonados.

Chegou domingo no início da noite e sentiu um cheiro diferente no ar. Celeste foi até a cozinha e viu que tudo estava exatamente como ela deixara no dia que saiu. Os filhos famintos exigiram ainda um lanche rápido. Anselmo não estava em casa, o que era incomum. Ele nunca saía aos domingos à tarde. Deve ter ido à missa, pensou Celeste.

Já eram vinte e uma horas quando Anselmo chegou, assustado ao ver a esposa e os filhos em casa, pois esperava-os após as vinte e duas horas, horário costumeiro de voltarem.

__ Deu saudade querido, exclamou Celeste.

__ É, eu fui à casa do meu colega de trabalho, estava chato aqui sem você.

__ Tudo bem querido. E beijou-o no rosto, dando-lhe um abraço e percebendo que ele estava meio trêmulo.

Rapidamente Celeste reforçou o lanche, pensando que o marido estava mal alimentado por ter ficado só durante o fim de semana. Tudo parecia transcorrer na mais perfeita normalidade.

Os lençois são trocados todas as sextas, impreterivelmente. Celeste vai ao quarto para desfazer suas malas. Acende a luz e percebe um desarranjo no ar. Sorriu, levemente, pensando como é difícil para um homem viver numa casa sem mulher. Havia um anel seu jogado ao chão, uma roupa íntima do marido jogado de qualquer forma dentro do seu guarda-roupas e um cheiro diferente no banheiro do quarto. Foi quando ela se deu conta de que o lençol que estava na cama era outro, e não aquele trocado na sexta-feira. Teria ele se sentido mal, suado e necessitou trocar o lençol? Não disse uma só palavra e foi dormir preocupada. Apenas perguntou, quando ao lado do marido sonolento, já escuro e ela insone.

__ Querido, tudo bem? Você está meio estranho? Está doente?

__ Não querida, não é nada, só uma leve indisposição. Trabalhei muito no sábado. Estamos com excesso de encomendas. Amanhã estarei melhor, certamente.

Amanheceu, novo dia, todos ao trabalho. Tudo normal. À tarde, Celeste chega mais cedo que o marido cerca de uma hora. Dirigiu-se à varanda do apartamento para lavar roupas. Viu o lençol dobrado no cesto de roupas sujas. Ao apanhá-lo para jogar na máquina, sem observar nada como sempre fazia, notou algo diferente. Havia um cheiro de perfume, o mesmo que ela sentira ao abrir a casa e dentro do banheiro. Abriu a peça de cor bege com detalhes florais nas bordas e olhou-a alto a baixo. Notou manchas incomuns, uma delas, de batom. Metódica, ainda pensou que havia descuidado e sujado o lençol no dia da troca. Não imaginava à distância alguma que seria de uma outra mulher. Essa ideia era inimaginável. Mas não houve como não suspeitar de algo. O perfume era-lhe inteiramente desconhecido. Não era dela e de nenhuma amiga de sua filha que ali frequentava. Ela agarrou o lençol ao rosto e sentiu cada intensidade daquele cheiro. Foi pensando nas reações do marido um dia anterior e fechou os olhos para relembrar pequenos gestos já há mais de um ano que ela estranhava. Analisou o tecido e percebeu os sinais que seus olhos recusavam-se a ver. Veio a certeza, o que ela jamais poderia imaginar. Anselmo demorava-se a chegar do trabalho. O celular tocou e nele havia um recado: “Querida, vou me atrasar um pouco”. E de fato ele não se demorou muito, apenas quarenta minutos, e foi mesmo por causa de trabalho.

Celeste ainda olhou o apartamento enquanto esperava o sinal de trânsito se abrir na esquina de sua casa. Ia olhando a paisagem, as montanhas e os poucos quilômetros que separa sua casa da vilazinha onde vivem seus pais. Ela chorava compulsivamente e sentia no peito uma dor insuportável traduzida em lágrimas que insistiam em correr pelo seu rosto anteriormente marcado por sorrisos. Os filhos, no banco de trás do carro nada compreendiam. Passou devagar sobre a grande ponte, local que sempre despertava sua admiração, pois esta passa por sobre um rio próximo já de sua foz. Viu que o rio, mesmo ao fim do seu caminho corria ainda mais caudaloso, mais resistente, mais veloz, mais forte e sentia-se como ele. Passada a última curva, diminuiu a alta velocidade de seu automóvel e viu ao fundo, no vale, cercado pelas montanhas e cortada pelo rio, bem mais modesto naquele ponto, a vilazinha de seus pais. Atravessou a cidade, admirou a praça e a igreja onde se encontrava com Anselmo quando jovem, e onde sonhou família e futuro.

Parou o carro em frente ao casarão de seus pais. Pensou um pouco mais, ficou imóvel do lado de fora até que alguém a percebera ali. A mãe, velhinha lhe abriu as portas e foi recebida por um abraço molhado em lágrimas de dor. Aquela seria a pior noite de Celeste, e muitas outras, igualmente doloridas se seguiriam por muito tempo.

Anselmo chegou ao apartamento e estranhou o silêncio ainda na escadaria. Não ouvia o barulho constante dos filhos e da TV. Abriu a porta sentindo uma tensão no ar. Vazia. Escura. Na cozinha, cheiro algum. Na sala, tudo milimetricamente organizado como sempre. No quarto, o abajur aceso, a luz parca sempre iluminando as noites de amor do casal. Na cama, o lençol sujo, estendido com precisão cirúrgica, e à vista, as manchas de batom que não era de Celeste, com um cheiro feminino que não era de sua esposa. Compreendeu mesmo antes de ler o pequeno bilhete deixado abaixo do travesseiro: “obrigado pelos tantos dias felizes que vivemos juntos. Seja feliz ao lado de quem alimenta seus sonhos.”

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 26/01/2012
Código do texto: T3463179
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