COMO TODOS OS MORTAIS
Dizem os moradores mais velhos de “Pedregal”, que apesar da localidade ficar próximo a margem direita do rio Jaguaribe, em curso navegável de relativo trânsito, era conhecido como um lugar remoto, muito distante – fim de linha, para os mais brincalhões para lá da “caixa prega” e para os desalmados era lá o “quinto dos infernos”, esse último reconhecimento pela fama da violência vivida no submundo do lugarejo. A verdade é que Pedregal era um bairro isolado de Aracati, ainda que se fosse de barco. E quando alguém que não fosse morador de lá procurasse por esse destino teria dificuldade para cumprir a meta, e se alguém de boas condições financeiras solicitasse uma corrida de taxi ao referido paradeiro, estando na praça do mercado de Aracati, certamente era rechaçado e normalmente os motoristas que faziam ponto indicavam o companheiro que tinha residência no local, portanto, quando o motorista indicado fosse para casa no final do dia, faria a corrida.
Em junho de 1982 nascia em Pedregal, Juliano Nogueira do Nascimento, filho de Paulo Nascimento e Eneida Nogueira. O parto foi natural, feito na pequena residência do casal com ajuda de Dona Gracinha parteira doméstica do lugar, que vivia de atender os casos de pessoas que não tinham recursos para fazer pré-natal, e que na maioria dessa condição chamavam Dona Gracinha somente na hora urgente, ali mesmo no instante do nascimento – a moda antiga. Era comum no lugar, geralmente famílias de pescadores, viverem em estado de indigência, em condições mínimas de higiene, na verdade poucas delas tinham acesso a maternidade de Aracati. Somente com o advento dos anos 90 é que as famílias de forma geral puderam contar com o programa saúde da família, diferente da democratização do ensino, que no início dos anos 80, toda criança do Brasil já tinha acesso a matricula na escola efetivamente garantida, porém a questão da qualidade deste ensino é que não foi resolvida, pois permanece sem melhoria.
Muito cedo Juliano mostrou vocação para música. Quando retornava da escola se asseava comia o que tinha: caranguejo e farinha, logo em seguida estava cantando o que ouvia, os sucessos da época, no rádio - forró, sertanejo e MPB, no único eletrodoméstico da família que ficava na sala, para que todos tivessem acesso. Certa vez, naquele fim de mundo, um tocador como se diz popularmente, deu de parar – no bar de Antonio Rebouças, que ficava próximo a casa de Juliano. O menino não teve dúvida, seria um espectador, quando apresentação foi iniciada arranjou um canto, onde lhe deixava bem escondido, mas em condições ótimas de audição. Ao terminar de tocar na noite, o músico se dirigiu para uma mesa, onde lhe foi servido uma refeição, o que o deixou bastante entretido. Aproveitando a oportunidade, Juliano bastante curioso, chegou até o instrumento que ainda permanecia num pequeno palco improvisado, escorado próximo a uma caixa de som, segurou então o violão, sentou num banquinho ao lado, botou-o na horizontal apoiado nas suas pernas e batucou suavemente na madeira e nas cordas, fazendo um som harmônico e passou a cantarolar, foi quando o dono do bar, Antonio Rebouças gritou:
- Menino é a alma do cão! Solta isso peste!
Mas o artista interpelou:
- Não, por favor, deixe me ouvir um pouco mais, o garoto tem talento.
Antes de se retirar do bar o artista contratado disse ao dono do bar, que falasse aos pais do garoto que lhe dessem oportunidade, facilitando educação musical. Rebouças tinha a cabeça voltada para a administração de estabelecimento comercial e não de conselheiro, nunca tocou no assunto aos pais do garoto. Certamente entendia que tal recomendação era impossível para uma família pobre de “Pedregal”. De qualquer forma, Girino, como era conhecido na escola, não teve sua vocação musical bloqueada, ele formou-se por empirismo, pragmatismo e por vocação, certamente, pois no 2º ano do ensino médio em 1999, o rapaz já tocava todos os sucessos musicais de sua geração, era um virtuose... Forró, sertanejo e aos amigos mais refinados MPB com estilo. Somente quando passou a ganhar dinheiro profissionalmente, é que se inteirou no estudo de música. Girino ganhou o Brasil, em 2009 já conhecia as cidades do país como (Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Manaus, Belém) fazendo apresentações caindo na mídia, fama nas paradas. O sucesso bateu na porta, ajudava a família, vez por outra enviava uma boa grana aos seus pais, que permitiu a família a morar numa casa de alvenaria com banheiros e água encanada. Do ponto de vista artístico definiu-se encaminhar-se pela MPB e entendeu que a leitura mais refinada iria facilitar as composições mais próximas dos grandes nomes como Lenine, Zeca Baleiro, Jorge Vercilo, "Skank-Banda", Djavan, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, Lobão, Adriana Calcanhoto, Marisa Monte, Rita Lee, e os nomes dos intocáveis como Pixinguinha, Erivelton Martins, Dolores Duran, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Antonio Carlos Jobim, Cássia Eller, Elis Regina e tantos outros dessa galeria. O zelo tornou-se obrigação, acabaram-se as canções adolescentes, havia amadurecido, e ficou convencido disso quando compôs "Tudo ficou diferente:"
Uma canção me fez ouvir,
que além da harmonia que inundava,
aos meus ouvidos poesia pairava,
o que não imaginava existir.
Relembrou meus sonhos, castelos e você,
minhas certezas e devaneios,
entre mil ligações, afagos, ralhos e beijos,
fui percebendo a canção transcender.
E foi se confirmando com clareza
que nada será como antes ouvido,
tudo ficou diferente depois, máxima beleza.
E no mundo experimentado musical,
a canção soou, atritando meu verniz, excluindo ruídos
e na memória ficando o registro de um som fenomenal.
Girino ganhou o mundo, o vôo agora foi maior, chegou a Londres. O empresário que administrava suas atividades artísticas investiu uma temporada no exterior, para que dominasse o inglês com fluência, e que o mesmo entendesse que outrro idioma abria as portas para os quatro cantos.
Quando ia aos EUA, tocava para imigrantes brasileiros, mas levando uma vida restrita do palco ao hotel, não se acostumara a fama, se sentia acuado, quando reconhecido, e a popularidade cada vez mais crescia, estava compondo em inglês, fez uma canção que chegou ao hit parede, nas grandes cidades americans e européias:
"Where is the way?"
Who will help? Exposing his face,
When nothing isn’t in place,
Who will to love you in this hour without money?
Look here look there nothing is clear and isn’t honey,
where are my father and mother?
I’m losing the way.
When I can arrive at home,
and I think isn’t easy baby,
I know the sun is not always bright,
this is life we must fight.
life is short, let's love baby.
Enfim Girino, lá de pedregal, no Brasil urbano, o musico virtuose Juliano, na Europa e EUA, the best Julian. Mas algo o transtornava, não esquecia o lugar de onde veio ou de onde era, pelo aspecto de vida com sentimento, longe daquela coisa fria européia centrada, e na verdade também não se acostumara ao sucesso, pois aonde se dirigia fosse ao Brasil, fosse à Europa, fosse à América, fosse a Austrália, fosse ao Japão, havia sempre alguém a gritar: - Julian, please give-me your autograph.
No Brasil, nos grandes centros, a mesma coisa, não se livrava sempre alguém interpelava.
Resolveu tirar férias e foi parar em Bangkok, não houve jeito: - Girino, velhos tempos lembra? Puxa, que legal, aproveita e escreve alguma coisa nesse DVD de minha filha. – Ah tá.
Foi então que bateu o pesadelo, não dava para esconder a notoriedade, estava sufocando sua liberdade, o que mais valorizava na vida. Passou a ficar contemplativo, reflexivo na busca de solução, para onde poderia seguir que pudesse viver a vida sem excessos de mimos, sentir a realidade de cidadão comum, sabia que isso lhe dava inspiração a vida como é, longe de paparazos e paparicos, viver a vida de músico e sem ser interpelado pela causa fama, começou a ter saudade da vida comum. Uma das duas, acabaria com a carreira, indo para os “confinfins” da África, a Cochinchina, o quinto dos infernos, da sua terra natal, o fim de linha Pedregal, ou continuaria no meio do mundo da fama aos grandes centros e bem certo, até quando durasse, mais sabia, levaria tempo, e ele queria mudança para já. Acontece que um amigo de gravação de estúdio e de palco, vendo seu dilema lhe falou:
- Por que você não tenta o grande cu central do mundo?
- O que isso? Que lugar é esse?
- É isso que você ouviu não me venha dizer que está surpreso.
- Só tem um lugar no mundo que tem essas duas coisas, o reconhecimento do talento quanto ao palco ou melhor dizendo, sua arte, depois disso então você é um cidadão comum. Esporadicamente um chato pode te abordar, assim como talvez lá no seu fim de mundo também possa aparecer alguém, haverá sim, todavia um jornalista para conversar, mas isso é controlável.
- Não diga! E qual é esse lugar?
- Ora, é lá mesmo, New York. Por que você não faz um teste, dá um tempo por lá?
- Sabe, agora bateu.
-Até parece, que o cara é leigo.
- Há, deixa disso!
- Vá a um café, faça um pedido em meio a uma daquelas filas típica, experimenta.
Não tardou seguiu o conselho do amigo se hospedou em Manhattan num hotel médio para evitar paparazos, algum tempo depois de hospedado familiarizado com a paisagem, desceu do prédio do hotel onde estava hospedado, saiu andando pensando na vida, e andou até cansar, sentiu necessidade de água e de um cafezinho, entrou num café, pegou uma pequena fila, fez o pedido, pagou e foi esperar a entrega. Quando escutou a chamada, 021, coffee and water. Ficou surpreso o garçom nem lhe fitou, empurrou a bandeja e disse:
-Ok, one more, zero two one!
Sentiu algo fabuloso, exatamente o que precisava ser vivido comumente, ser tratado como qualquer outro pobre mortal, percebeu o que o amigo lhe falara, saiu concatenando, pois é aqui que as coisas acontecem, mas ao mesmo tempo imaginava só se vale o que se paga. Mas interrogara-se – Onde que não se vale o que se paga? Mas bem sabia que ali havia uma frieza, diferente de outras cidades menores, não porque estivesse sendo saudosista a um mundo provinciano, mas se alertara a questão da indiferença, o capitalismo ali estava para ele numa fase da produção para consumo e não para progresso da coletividade, o sonho do socialismo enterra-se, a política que reina naquele centro é a de só se dá bem quem já tem. No aspecto político, havia sempre o revanchismo aos países do golfo, a freqüente questão de se especular que países como Iran, Iraque, Afeganistão estão sempre querendo construir a bomba atômica para detonar New York, o pesadelo do 11 de setembro, assim o imigrante sempre sofre algum tipo de constransgimento, então por isso que o amigo deva ter chamado de grande cu central do mundo. Tem todos os lados, você tem sua liberdade de viver, ser a pessoa comum, sem a pressão exagerada dos fanáticos, mas também lá acontece o fervor do crescimento, com tudo que tem direito, a política de especulação e tudo mais, então aqui é bom mas se cuida, é o grande cu do mundo, tudo está acontecendo. Assim imaginando bateu saudade.
Ligou para seu irmão e pediu que o mesmo fosse para a Aracati para conversarem. Entrou numa lan house com webcan. Algum tempo depois já conversando com seu irmão:
- Então brother qual é a pressa?
- Cara se é de estar no grande cu do mundo, acho melhor no fim da linha.
-Então é só pegar um voo, porque aqui na terrinha o sol ainda esquenta pra burro.
- Valeu brother. Então acho que é essa a decisão.
- Brother não entendo. Todo mundo rala como você mesmo fez, e se quer chegar ao topo, e aí quando se chega é hora de desfrutar, agora vem com essa de amarelar.
- Brother eu pensei sobre isso, mas é que eu fiquei nu, entende? Fiquei aturdido, refletindo essa história de trabalhar compondo, fazer arte, entendo que é como se fosse sublime, está acima, então não é necessário fama, isso faz é atrapalhar, mas só dá para entender quando a gente ganha experiência e olha para trás e aí cara bate um fio de amor próprio sem maquiagem, nudez total e você quer amar a vida como ela deve ser, e não como a fábrica da fama arma para a gente ser, muita gente tem que ganhar e aí perde-se o escrúpulo, e isso dói... Por outro lado, muitos dizem que você vai se ferrar, vai empobrecer, e aí maltrata também, é como se tudo fosse só grana, isso não é negar a sobrevivência, precisamos do pão, mas desse jeito em excesso fere muito. Então surge o amor próprio e o melhor, creio, ser como todos os mortais, pois, mas na frente o tombo pode ser maior.
- Veja bem, não vá se preocupar conosco, estamos todos trabalhando sobrevivendo, não tem essa de carência, aprendemos... Você sabe como era no passado, velhos tempos, era dureza. E hoje, trabalhar e ter sustento, dureza sempre tem, para depois repousar.
- Acho isso bacana, quando você fala em trabalho, é essa questão, sentir de fato que se cansou “pelo ganha pão”.
- Bem que fique claro para você, que para nós todos aqui no fim de linha és um orgulho, do jeito que vir está valendo, Pedregal não saiu do mapa.