THEATRO EXPERIMENTAL

Da janela, surge uma descomunal paisagem, como fosse à tela impressionista assinada por Monet ou quaisquer outras celebridades. Mas a emergência de uma petição para àquela tarde, não lhe desviava as atenções para tamanha luminosidade. Sentado frente à Olivetti manual, curva-se dedilhando desgraçadamente sobre suas teclas e nem nota a presença do chefe, advogado, advertindo: - “Olhe a postura”! Logo se vê necessária uma breve pausa, acende outro Minister e prossegue.

O rapaz, ainda que concentrado, mas reflexivo agora, pensa e pensa. Continua pensando e define:-“Patrão filho da puta!.. - pausa, respira, permanece divagando – “ É doutor renomado, bacharel, enquanto acordo e durmo fodido e mal pago”-. O funcionário revoltado, quase rebelado na matures em fim de expediente, retira o documento da máquina, datilografado prontamente e por ele corrigido, já que seu superior, na antiga versão riscada a próprio punho, cometera alguns desvios ortográficos. Nada que fizesse um subordinado acusá-lo, quanto a sua incoerência gramatical, desencadeada numa dissonância caótica, emanando uma ininteligível redação; isso para não perder o emprego, óbvio!

Na sala do “doutor”, Geraldo - o empregado -, conforme consta como atribuição de sua função, cuja registrada na carteira previdenciária: “auxiliar de escritório”, em letras colossais, entregou o requerimento requisitado, postou-se a sair e voltou-se ao empregador quando pelo mesmo era chamado de “grilo barbudo”. Doutor Otacílio repetia sempre: -“ Apare essa juba e tire sua barba! Não quero funcionário hippie em minha repartição”!.. – Geraldo, por se encontrar numa posição hierárquica inferior, fez que não ouviu, sendo que o velho escutou nas entrelinhas de seus passos, soar um “puta que o pariu”. Pois bem, o patrão em primeiro momento, magoou-se. Logo após, ensurdecido em pura raiva, apontou Geraldo. Bradou-lhe!.. Minutos depois da primeira retaliação verbal, sorriu, humilhou-o, demitiu-o:

- Geraldo, devido a sua permanente quietude, jamais almejei me regozijar a tamanho presente merecer. Hoje assino uma justa-causa a você!

Naquele janeiro de 1976, Geraldo da Silva chegou à casa, um velho sobrado do Centro do Rio de Janeiro - e que antes alugado fosse, caso não se deparasse na eminência futura e breve da mudança de endereço, já que em momento qualquer, estar-lhe-ia, chegando uma ordem de despejo. Sentou-se sobre os tacos soltos da pequena sala imunda, apertando um baseado, que logo acendeu; que logo tragou; que logo apagou com a saliva; que logo rememorou o sonhador, tal qual era, introjetado em sua utopia, tomado pela nostalgia daquele campo aberto sempre presente na memória. Lembrava-se da fumaça aromática refletida em moitas. Homens e mulheres harmonizados em círculos, outros em jardins deitados, uns sob estados de transe, dançantes! Outros em estados de sítios, em comas, ou mesmo fracos, falantes!.. Lá no paraíso, escutava-se alguém tirar I sweet lord (1) num violão, viola, ou quaisquer instrumentos de corda. Daí, Geraldo retorna repentinamente ao seu presente, tenta tocar alguma coisa sua no velho violão, mas as lágrimas remontam novamente àquela perfeição ditada ao pretérito, sob um figurino campestre, acústico, unpluggued! As imagens se mostravam suspensas no apartamento e o jovem desempregado, desafortunado, chorava apenas, remetido à dura pena, quando na visão imersa à sala, entreabriu-se na memória, uma lembrança pessoal, na qual estava sentado em meio à referida confraria, abraçando uma menina. Era Maria! Onde anda Maria? Perguntava-se... Mas o tom da boa nostalgia se alterava ao estado de pavor, quando vinha na mesma, alguém correndo, gritando, dizendo:-“Corram, corram, os milicos tão chegando”!.. E todos fugiam submissos. E a protagonista despertava ofegante, assustada, apreensiva!

Geraldo, remetido ao recente passado, amiúde, é o que se leva da juventude, concluiu que seu sonho acabou bem antes de 75. Entre um festival de canção em 1971, em meio à dialética de odes e vaias, sua letra e música – obra conceitual-, intitulada: “Pólogia”, estava classificada junto as finalistas do concurso. O garoto nervoso coçava a barba, ainda quase rala e vislumbrava na platéia a presença e torcida de Maria, namorada com quem também compunha, estabelecendo fidelidade, casamento, parceria!

Sendo assim, ou mais ou menos, quando o apresentador requisitava ao palco, a presença do músico nele desencadear a quase vencedora “Pólogia”, alguém o surpreendia, estapeando seu ombro e afirmando: - “Não vai não!"Geraldo se voltava para a voz de locutor radialista - de cujo vinha a ordem em permanecer nos bastidores do festival -, assim a rebatê-lo. Ao assustar-se com aquele "ruído" agudo, sinistro, de outrora recente, deparou-se com uma imagem rústica e assustadora. Um homem franzino de meia-idade, identificou-se gentilmente como agente do DOPS(2), convidando-o naquele exato momento, acompanhá-lo à referida instituição, enfim, prestar algum esclarecimento.

Posteriormente ao chamado do palco; à intimação do servidor estatal; à desclassificação no concurso; a algum tempo de prisão; ao desenlace com Maria; à sorte de um trabalho burocrático; à demissão; à justa-causa; à arma em punho engatilhada, apontada para a testa naquele piso, daquele recinto; daquela sala; quando então, na boca ensaia-se, decide-se ao tiro e batem na porta,.. A moral está salva!

Tratava-se de um amigo de Geraldo, que ao adentrar no antigo sobrado, percebeu a tragédia evitada, tomou dele o revólver, enquanto da vitrola exalava Taiguara(3):

Eu desisto

Não existe essa manhã que eu perseguia

Um lugar que me dê trégua ou me sorria

Uma gente que não viva só pra si

Só encontro

Gente amarga mergulhada no passado

Procurando repartir seu mundo errado

Nessa vida sem amor que eu aprendi

Por uns velhos vãos motivos

Somos cegos e cativos

No deserto do universo sem amor

E é por isso que eu preciso

De você como eu preciso

Não me deixe um só minuto sem amor

Vem comigo

Meu pedaço de universo é no teu corpo

Eu te abraço corpo imerso no teu corpo

E em teus braços se unem em versos à canção

Em que eu digo

Que estou morto pra esse triste mundo antigo

Que meu porto, meu destino, meu abrigo

São teu corpo amante amigo em minhas mãos

São teu corpo amante amigo em minhas mãos

São teu corpo amante amigo em minhas mãos

Vem, vem comigo

Meu pedaço de universo é no teu porto

Eu te abraço corpo imerso no teu corpo

E em teus braços se unem em versos a canção

Em que eu digo

Que estou morto pra esse triste mundo antigo

Que meu porto, meu destino, meu abrigo

São teu corpo amante amigo em minhas mãos

São teu corpo amante amigo em minhas mãos

São teu corpo amante amigo em minhas mãos.

Os dois se abraçavam no final da música e o rapaz, bem afeiçoado, prometia que o problema do Silva, ao menos tardar se resolveria. E foi solucionado: meses passados, ele passava drogas nas adjacências e na própria Copacabana, não quando em vez, amealhava uns bons trocados, fazendo programas com estrangeiros, casais liberais, homens, mulheres, magnatas, enfim, gente superbacana!

Numa manhã dominical e nublada, o rapaz vestido em trajes requintados, barbeado, cabelo penteado a gel, deixa-se estar parado num ponto bem movimentado da Avenida Atlântica(4). Ele porta uma bolsa de puro couro e fuma um cigarro atrás do outro. Nada que despertasse à atenção de algum transeunte ! Geraldo já estava impaciente, desconfiando que pudera ser uma armadilha da polícia, ou algo similar. Disseram-no ao telefone que viria uma moça toda vestida em vermelho. Ele procurava e só visualizava babás sob vestes de branco e azul-claro, quando não os que passeavam pela orla no desleixo comum das folgas de domingos e feriados. Até que ao longe, uma moça aparecia arrumada – num tipo de conjunto -, da cor antes indicada, segundo o combinado. Ela se identificaria como Fernanda, para quem ele entregaria a bolsa e na mesma dinâmica receberia outra com o dinheiro da transação. Fernanda, procurava-o entre a turba andante, a ressonância das vozes, dos passos, da perdição, do futuro, da urbe periclitante. Veneno urbano, aconselhável aos tímpanos, desconcertante!

- Fernanda?!.. A moça escutou uma voz masculina ecoar por trás de si.

- Maria!.. Assim, bestificado Geraldo pronunciou disfarçadamente, quando a mulher se voltou, atendendo seu chamado.

Fernanda, digo, Maria, ainda se demorou em reconhecer seu ex-companheiro, pois ao contrário dela que pouco mudara os traços fisionômicos, sendo então os cabelos mais curtos e tratados, associados a uma postura executiva, Geraldo estava totalmente desfigurado em relação a última vez que o vira.

- Dino?.. Ela assim o indagara sobre o vulgo, pelo qual, ele era conhecido nas praças onde atuava.

- Maria?!.. Ele meio que perguntava.

- Sou Fernanda!.. Ela o desviava.

- Maria, não se lembra de mim?

- Cara, o dinheiro está aqui. Tá com a farinha?.. Troquemos de vez e paremos por aí!.. Dizia a mulher desconfiada.

- MARIA, ACALME-SE! SOU EU, GERALDO!.. ESQUECEU?.. Gritava com a jovem, segurando brutalmente seu braço esquerdo.

Maria, estarrecida, já havia identificado o amor naqueles olhos, alguns poucos anos mais vividos, sobretudo, ainda se disfarçava ao “choque” desse reencontro inusitado. Por segundos, permaneceram os dois, olhando-se mutuamente, transacionando as respectivas bolsas, discretamente. Trocaram-se e quando ela se ia, ele a segurou pelo braço novamente dizendo:-"Maria”!.. Até que a mulher roçou a mão sobre o semblante dele observando:- "Geraldo, o que fizeram de você”?.. E ele replicava:-“O que fizeram de nós, Maria”?..

Entreolharam-se mais alguns instantes e tudo parecia em estado de vácuo nessa história urbanística. Copacabana, agora se perfazia vazia e Maria tomou a iniciativa:

- Você me abandonou, por quê?.. Perguntava Maria com os olhos já lacrimejantes.

- Naquela noite eu não a abandonei. Os caras me grampearam, fui desclassificado do concurso, fiquei incomunicável... Defendia-se.

- E foi cuspido para fora quando já não oferecia perigo?! Eu acredito!.. Ironizava Maria.

- Verdade, queriam também levar você, mas garanti, omitindo apenas eu escrever as letras das nossas músicas. Pode não acreditar, mas a popularidade repentina me representou o início da decadência. Relegou-me em definitivo ao eterno ostracismo.

- E nossa música, Geraldo?

- Perdeu-se na espera de acquarius... Respondia Geraldo desanimado.

- Hoje minhas cifras são outras – explanava Maria gesticulando. Visualizo bem perto o “boom” das telecomunicações; o fim da distância no fluxo de informações. Num futuro próximo, os mercados se comunicarão em tempo real. Ainda hei de prefaciar à "boa nova"! A automação já acontece nos Estados Unidos e nalguns países europeus. É o progresso cara! Aqui, camarada! Nosso bem comum, meu bem!.. Claro, é transa pros anos oitenta. Mas é o futuro, FUTURO!.. Maria a se colocava em posição, como estivesse fazendo um tipo de exaltação à alguma santidade ou oração.

- É, aí você dirá que a expressão “terceiromundismo” se acabará? O Brasil é o país do futuro!.. Qual é a sua garota?.. Agora Geraldo ironizava.

- Graduada na Geografia sob a vigilância da Geopolítica. Mestranda em Análise de Sistemas, orientada na dissertação por comandos supranacionais, fiéis na vigília de movimentos bilaterais da guerra-fria, mas configurados sempre à homogenia líbero-capitalista.

- A “abertura planetária dos portos”, é o que propõe?!.. Geraldo se fazia de desentendido, cruzando os braços.

- Geraldo, veja: estamos num processo de distensão. Confusa!.. No entanto, esse país será civil novamente, qualquer hora e tudo continuará igual!.. Maria pausou e prosseguiu... Não obstante, teremos em mãos uma economia estatizada no que concerne a pontos estratégicos: minas e siderurgia, telecomunicações e até transporte coletivo, entre outros que agora à mente não me vêm.

- Daí, fica vaga sua digressão, onde entra toda essa cocaína?.. Toda essa maresia? Geraldo apontava para praia.

- A idéia é fazer raiar capitais, para trazer toda à tecnologia enunciada para cá um dia. E como faremos isso?.. Trabalhando para o complexo industrial, quase falido desde o fim do milagre brasileiro(5) em 73.

- Isso “vocês” farão, dando suporte no que diz respeito à terceirização da mão-de-obra, ou gerindo obras públicas, quando não, superfaturando o fornecimento de móveis e utensílios?!

- O pó é um agrado; um intermédio, entende?.. Servido às carreiras em bandejas de pratas como manda a etiqueta... Confessava Maria.

- Maria, você e essa milícia de mentecaptos!.. Pausava Geraldo e continuava... Não percebe que é jogo sujo e vai gerar mais desemprego, principalmente nas camadas sociais menos favorecidas?

- Mentecaptos?!.. Geraldo, a “nova juventude”(6), hoje dança no Frenetic Dancing Days. Não que me seja alienante, mas tudo mudou!.. Minha "milícia" como assim a faz, vem com a moeda dolarizada e eu com a articulação. “O homem é o lobo do homem”, e assim disse o filósofo(7)... Você deveria repensar melhor sua vida e deixar de se enganar.

- Como deixar de me enganar?.. Você é envolvida num projeto de autodestruição, deveras, um genocídio!.. Tudo bem, estou enganado... Entregava-se Geraldo.

- Bicho, o que você faz para viver, acredite, é até bacana! Pô, fornece pó, bagulho e “especiarias” pra rapaziada, além de satisfazer sexualmente um ou outro às vezes... Mas porra, isso não é pra vida toda! Vive numa redoma hipócrita inerente, inflamando discursos sociais e libertários a todos os cantos... Continua o mesmo, você parou no tempo, Dino!

Nesse momento, Geraldo saiu correndo com sua grande bolsa de dinheiro atravessada ao tórax, pelo asfalto da Cinelândia(8), desviando-se dos carros em movimento no trânsito. Maria o acompanhava a passos sorrateiros, enquanto ele bramia entre as buzinas, semáforos, o sol, os reclames moderados do tráfego e dos motoristas mais radicais:

- Pensa o quê, Maria?.. Eu tentei colocar o terno, ajustar a gravata-borboleta para ser destacado à concorrência. Tentei ficar apresentável. Ia com minha pasta de sol a sol, sala em sala. Vagava entre escritórios, lojas de departamentos, repartições. Até almejei trabalhar em construções!.. Mas – e corria na face uma lágrima, Geraldo ainda desenhava seu percurso suicida. Maria o seguia, ofegante, cansada, suada e sonolenta -, mas na ficha policial, constava uma prisão. Fui artista e progressista por emoção. Considerado comunista, anarquista pela razão! Eu me atordoei às letras e partituras. Demitiram-me dum emprego sem causa, de “causa-justa”, e a sociedade já diz que não me ajusta. Pois quando chego numa empresa, cobram-me o diploma do científico ou segundo grau, sei lá! E quando a esperança me aparece despida, logo penso em mudar de vida. Ainda, há os que dão oportunidades à pessoas sem alguma instrução devida. Todavia, deve se ter necessariamente num currículo cinco ou dez anos de experiência. Brasil é o país do patriarcalismo, da troca, do nepotismo, dum “se dá um jeitinho”! Com esse sistema você confabula, Maria?.. E Geraldo soltou um tapa no rosto da mulher, afirmando ser verdade: - “eu trepo com a realidade”!

Os dois se esticaram, correndo até chegarem, respirando ruidosamente à Barra da Tijuca(9), já habitada, bem como sendo erguida num imenso distrito, quase plagiada! Cansados, o casal se sentou na areia da praia, jogaram longe as bolsas e se beijaram arduamente alguns poucos segundos. Enrolaram-se na mesma areia, adereçando-a em suas vestes. Geraldo apontou o esqueleto de um grande edifício, o qual estava emergindo gradual e rapidamente nas proximidades. Por causa deste - da edificação -, naquele instante ocorria um estrondo vacilante e tortuoso. E disse a Maria:

- Observe... A ocupação organizada de um território vago, gera neste paraíso a especulação imobiliária.

- O mercado empresarial, constantemente se rediz às configurações de paisagens fúteis e lucros úteis... Defendeu-se sua namorada.

- Mas o mercado ainda não tem visão pró-ambiental. Almeja um resultado imediato, e não enxerga que degradações não são renováveis. Estocolmo (10) de nada valeu como demagógica cimeira... Apontava Geraldo.

- Você é um visionário, mas haverá época certa para se discutir o desenvolvimento sustável em solo latino. Sei que outros países já se inclinam em debates muito inexpressivos na tentativa de solucionar alguns desses problemas. Isso, claro, Gerado por uma sociedade civil organizada cada vez mais todos os dia.

- É nossa geração, minha querida!

- Pois então, eu tenho a matéria-prima!.. Observou Maria, levantado sua bolsa de couro, carregada de coca.

- Obtenho em mãos, o capital!.. Afirmou Geraldo da ,levantando também seu recipiente.

- Nós temos vontade, força e sabedoria. Somos o trabalho!.. Gritavam os dois, um olhando para o outro e continuaram... Deixemos as diferenças de lado e prosseguiremos no projeto de desconstrução a alavancarmos os princípios da nova nação.

Entreabriram-se, os dois, rápidos sorrisos, gesticulando carícias recíprocas e Maria perguntou ao namorado:

- Você está de carro?

- Não, não possuo automóvel até que ganhe um “fuscão no juízo final”(11).. Geraldo respondeu eufórico.

- Pois então venha comigo delinear uma nova geração. Restabelecer nossa parceria! Meu “corcel 73”(12) está logo ali e o sonho de uma família mais sólida, é a esperança da salvação. O matrimônio, o concubinato, ou não, sugere nossa continuação. A prole concebida, será de natureza divinal, contemplada a maior magnitude institucional.

- Maria, será que o Brasil um dia será presidido por um verdadeiro “Silva”?.. Perguntou Geraldo enquanto caminhavam para o Ford.

O casal seguiu em direção ao veículo de cor amarelo-ovo e nele, acomodaram seus corpos e pertences (as bolsas que possuíam). Maria virou a chave, tão logo o corcel já se locomovia por uma via extensa e deserta. Sem prédios, pessoas, sinais e buzinaços. Geraldo admirava o seu amor enquanto dirigia, e ligou o rádio. Aos poucos, soava por entre os auto-falantes, a introdução e após o segmento de uma música do Belchior(12):

Se você vier me perguntar por onde andei

No tempo em que você sonhava

De olhos abertos lhe direi

Amigo eu me desesperava

Sei que assim falando pensas

Que esse desespero é moda em 73

Mas ando mesmo descontente

Desesperadamente eu canto em português

Mas ando mesmo descontente

Desesperadamente eu grito em português

Tenho 25 anos de sonho e de sangue

E de América do Sul

Por força do meu destino

Um tango argentino

Me vai bem melhor que um blues

Sei que assim falando pensas

Que esse desespero é moda em 73

E eu quero é que esse canto torto feito faca

Corte a carne de vocês

E eu quero é que esse canto torto feito faca

Corte a carne de vocês

Aí, os dois se olhavam e beijavam no intervalo da letra. Geraldo ensaiava acender um cigarro e Belchior ao rádio, prosseguia com a segunda parte sua criação poético-lídima:

Tenho 25 anos de sonho e de sangue

E de América do Sul

Por força do meu destino

Um tango argentino

Me vai bem melhor que um blues

Sei que assim falando pensas

Que esse desespero é moda em 76

E eu quero é que esse canto torto feito faca

Corte a carne de vocês

E eu quero é que esse canto torto feito faca

Corte a carne de vocês.

Daí, ao fim da música, o veículo já havia sido engolido pelo horizonte insólito e mal tracejado, deixando no asfalto, seu rastro.

1- I sweet lord: Música de 1971, composta por George Harrison (1943 - 2001).

2- DOPS (Departamento de Ordem Política e Social ): Antiga Delegacia de Ordem Política e Social (DEOPS). Surgido em 1924 - governo Arthur Bernardes -, extinto em 1983 – João Baptista Figueiredo -, funcionava como instituição representativa no que concernia ao controle das ações do povo em geral, obtendo poderes suficientes à repressão das esquerdas no país. Trocando em miúdos, era a polícia política brasileira, atuante principalmente na primeira regência de Getúlio Vargas (1930 – 1945), e no Regime Militar (1964 – 1985).

3- Taiguara (1945-1996): Cantor e compositor, autor da música “Universo no teu corpo”, cuja letra consta como a primeira na estória.

4- Avenida Atlântica: Nobre avenida, onde se situa em toda sua extensão a paria de Copacabana (zona sul da cidade do Rio de Janeiro).

5- Milagre brasileiro (1969-1973): Período correspondente ao governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Milagre brasileiro ou milagre econômico, diz respeito às medidas implementadas em nossa economia como a concentração de renda; endividamento externo para a manutenção, desenvolvimento e crescimento econômico nacional. Nesses anos, o país cresceu em torno de 12% ao ano e a inflação atingia índices de 18%, chegando o Brasil atingir patamares internacionais de 8ª economia do mundo. Também é conhecido como período de obras faraônicas como a ponte Rio-Niterói e a inacabada rodovia Transamazônica.

6- Nova juventude: Alusão à geração provedora das convulsões sociais, ocorridas aqui e no mundo ao fim da década de 1960. Pode-se citar como exemplo, o posicionamento estudantil e suas manifestações organizadas contra o regime militar - Brasil -; os movimentos civis organizados contra a Guerra do Vietnã (1964-1975), o festival de Woodstock (1969) – E.U.A-; o Maio Francês (1968) - França -.

7- Filósofo e cientista político inglês Thomas Hoobes (1588-1679).

8- Cinelândia: Praça localizada no centro do Município do Rio de Janeiro. Reduto cultural onde se localiza cinemas tradicionais como Odeon e Palácio; Teatros Rival e Municipal. Conhecida também pela sua forte associação a boemia carioca.

9- Barra da Tijuca: Distrito localizado à Zona Oeste do município do Rio de Janeiro.

10- Conferência de Estocolmo: Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente Humano, realizada pelas Nações Unidas em Estocolmo, em 1972, foi um marco importante para as discussões sobre desenvolvimento e meio ambiente e início da busca de elementos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Uma lista de 26 princípios, contida na Declaração sobre o Meio Ambiente Humano

11- “Fuscão no juízo final”: Alusão à música “Comportamento geral” do cantor e compositor Luiz Gonzaga Júnior (1945-1991).

12- Corcel 73: Alusão à música “Ouro de tolo” do cantor e compositor Raul Seixas (1945-1989)

13- Belchior (1946-...): Cantor e compositor, autor da música “A palo seco”, cuja letra consta, ensaiando o final desse conto.