Farsa do violinista no telhado

A madrugada parecia um ensaio para morte. Um instante que precede todas as tragédias ocultas em cada pedaço do coração dos homens. Ela cobria a cidade com suas luzes artificiais e seu silêncio escondido em cada pedaço de asfalto, em cada ser desolado que passava com suas mãos nos bolsos, tentando se proteger do frio.

Uma metrópole cinzenta e indiferente, que nem ao menos espreitava, se unia aos fugidios sons das 4:00 hs da manhã. E ambas velavam o sono da maioria dos perdidos humanos acomodados em suas caixas de concreto, com janelas para lugar nenhum.

O vento que circulava por entre as vias e prédios, não encontrava nunca seu destino. Era quase que um sopro do eterno de desespero de um deus desconhecedor de sua criação. Ele passava por dentro dos bueiros, via os ratos e baratas, entrava por entre os bares com poucos desiludidos a beber alguma coisa para se esquecer da vida. Logo depois, tratava de espalhar o perfume estranho de algumas mulheres mascaradas por suas maquiagens. E estes eram levados até os narizes inflamados de homens sempre á espreita. E entregues estes cheiros, o vento ia de encontro a outros destinos incertos.

Ao subir serpenteando por um prédio da avenida principal, encontrou o único homem realmente desperto, que trazia á mão seu violino, e um olhar em direção à escuridão quebrada pelos reflexos de um inacreditável neon que não era natural.

O telhado cinzento ficava no topo do prédio de 20 andares, de onde se podia avistar a fímbria do horizonte que se recusava a amanhecer.

O violinista não sentia sono. Apenas tinha vontades. Centenas, milhares delas. Assim como o vento irresponsável, que tentou espalhar suas partituras pelo espaço. Ele segurava com força seu instrumento musical, como se esse fosse uma extensão de seu braço. Ou mais ainda, uma extensão de sua alma. Era por onde todos os seres tinham sua voz traduzida, onde todos os sentimentos poderiam repousar, infectar e morrer em paz.

Por instantes, o violinista pensou ter visto no céu camuflado pelas luzes, alguma estrela. Mas era apenas ilusão. E enquanto afinava as cordas, pensava em tantas coisas...tantas vidas que dormiam naquela cidade sem alma, feita toda contra os homens. Gigantesca, feita para assustar aos corações aflitos. Pensava nos seres que também como ele, se mantinham acordados, como o poeta do quinto andar, obcecado por equações e simetrias impossíveis.

E o violinista e o vento se ignoravam mutuamente, cada um imerso em seu próprio propósito. Cada um, acidentalmente criado, e inevitavelmente com uma finalidade bem desenhada, antes mesmo que o mundo viesse a ser o que é.

O vento se foi, para bem longe. E o violinista permaneceu. Ficou ali parado, esperando que fosse a hora certa para iniciar sua música.

4:30 da manhã. O violinista empunhou seu arco, e quase que mecanicamente, fez Bach explodir em todas as direções. A cada nota desferida contra a madrugada, era como se tudo fosse fazendo um sentido acima da compreensão da vida.

A música nasceu assim, e foi descendo pelas paredes do prédio, encontrando no quinto andar um poeta furioso, escrevendo dramaticamente o fim dos tempos. Passou pelas paredes de um cinza sem propósito, escorregou por debaixo da porta e foi até os ouvidos da criança que dormia no apartamento do lado. Uma criança que ainda poderia sonhar com jardins sob a chuva.

A música foi se avolumando, e o violino continuava a despejar prédio abaixo, aquelas tantas toneladas de simetria arbitrária, quase uma voz de Deus em pequenas porções. E num instante, ela passou a circular pela avenida, que começava a ver um ou outro passante. Se aderia ao asfalto, dançava por entre as luzes dos postes e invadia alguns ouvidos mais atentos. Aliviava as dores de mulheres mais nuas do que vestidas, trazia lucidez aos viciados dos becos. E estes, quase que viam em toda aquela arquitetura sonora, as vozes de suas mães distantes e os sons de uma infância perdida.

Os minutos se passavam vagarosamente. E mesmo onde a pista de dança tratava de entorpecer aqueles que dançavam como se não houvesse amanhã, foi feito o silêncio atrevido das cordas estiradas sobre a madeira escura.

Bach cobriu aos poucos toda a cidade, entrou em todos os ouvidos indiferentes, saiu por suas bocas na forma de um suspiro de alívio, e fechou as feridas que o tempo sempre traz. Bach descortinou o céu azul trevoso, e enquanto fazia o dia brotar do fundo do horizonte, também entrava no meio dos corpos que se engoliam mutuamente numa cama, secava a lágrima do pai que contemplava a foto do filho distante e justificava o fim do que nunca seria o futuro.

Retornou o vento, trazendo de longe o perfume dos campos por onde a música passou. Era o cheiro do passado, o cheiro do nunca mais. E o vento se entrelaçou à música frenética naquele instante, fazendo suas vibrações romperem moléculas organizadas e trazendo cortes profundos nos dedos. Os dedos do violinista sangravam. Mas ele não sentia a dor. Sentia apenas o quanto não era dono de si mesmo, e o quanto era vão se ocupar de uma carne que em breve, estaria entregue à poeira das horas.

E ele tocava, fazia seu arco se aquecer com o atrito nas cordas, até que muitas fibras se rompessem. Aquele era o grito de uma alma sem voz, um espasmo de dor do nascimento de uma estrela, feita de densidade incalculável.

Por fim, chegou a manhã. O violinista parou seu arco, e repousou o violino no chão de concreto. O dia seguiria adiante. E o violinista apenas contemplava a cidade que se movimentava cada vez mais histérica, com algumas notas soltas gravadas em suas mentes.

Estava terminado trabalho da criação. O violinista, mais uma vez, trouxe o dia de volta, enclausurado numa noite de espantos e lamentos ocultos. Ele apenas sentou, retirou seu casaco escuro, e deixou que suas asas gigantescas se abrissem. Deixou seu próprio corpo estirado no chão e subiu voando em uma velocidade assombrosa, em direção ao reino onde Beatriz se ocultava da fome humana.

O vento continuou seu caminho. E como sempre, indiferente às emoções, cuidou apenas para que o amanhã fosse possível, e o ontem fosse esquecido.