O homem do capote
Conrado decidira fazer um passeio pela velha bota no início do ano com sua namorada. Rumaram direto a Pisa, na Toscana, onde dois amigos os aguardavam. Aquele ser parecia ter saído dos livros de Renzo Grosselli, e caído no século XXI de parapente. Um tanto rude, um tanto tosco, como homens do século passado, os cabelos longos e a barba crescida lhe davam um ar envelhecido. Na antiga cidade novos universitários iam e vinham a cada ano. Também chegavam alunos de outros países descendentes de italianos, gente eclética globalizada e informatizada.
Assim que chegaram, sem demoras, foram conhecer a famosa Torre Pendente na Piazza del Duomo. Ele andava a passos largos, largos demais, e sua Mirelina mal conseguia alcançá-lo. – “Me espera!” - ela lhe dizia docemente, e ele “nem aí”. Pouco se dava conta do esforço que era pra ela andar apressada constantemente. Como professor universitário, o visitante foi medindo palmo a palmo a estrutura e a inclinação da Torre, as inscrições romanas, os baixo-relevos, as arcadas, enfim, os detalhes da bela arquitetura. Em seguida, foi subindo as escadas... e sua amada atrás dele. Deu 100 degraus, 150... 200 degraus... e ainda não haviam chegado. – “Vamos, vamos!” – ele gritou pra ela que vinha lá embaixo na imensa escadaria espiral. – “É muito degrau! Estou cansada!...” – retrucou a jovem. E ele subindo... 250... 270... 294 degraus! – “Vivooooo!!!..." – bradou lá de cima aos quatro ventos. Depois, como não via Mirelina desceu correndo distribuindo sorrisos aos inúmeros turistas. Pulou o último degrau morto de cansado. Sobre a gramínea gelada posicionou sua câmara de um ângulo, depois de outro e outro e outro. Rolou pela grama, focava à esquerda, depois à direita,... . A Torre quase desbotava com tantas fotos e poses. Deu três horas, quatro, cinco e meia... e ele continuava. – “Vamos embora!” – ela pediu. – “É preciso um bom enquadramento!” – retrucou o homenzarrão. Só largou aquela faina depois de saturado de rolar com seu capote pela grama verdejante, e se dar conta que já tinha escurecido. Pegou a namorada e se recolheram.
Ela estava decidida: iria passear de gôndola em Veneza, bem agarradinha ao seu amor. – “Pra quê!?” ele indagou – “Oras, todos os casais vão a Veneza fazer juras de amor e todos dão passeios de gôndola” – melosa ela lhe disse. O rapaz olhou-a com olhos oblíquos e perspicazes fazendo uma avaliação crítica de tudo e retrucou: – “Tudo bizantinices... bobagens!...”
-“Se achegue minha paixão / Em arroubos de amor / Meu semblante espelho / Nos teus olhos afogueados / E toco e dedilho tua derme / E mergulho em teus braços / E mistérios e segredos teus.” – declamou ela, e o enlaçou: - “Vamos pra Veneza, meu amor?” Embora Conrado não quisesse gastar um centavo em coisas pueris, e persistia na sua teimosice, com tanta insistência ele aquiesceu – “Ok, vamos lá!”
Numa fria manhã de domingo lá foram os dois pra Sereníssima. Os 177 canais e as 400 pontes de Veneza os aguardavam. Tão logo chegaram já se acomodaram no banco de veludo vermelho de uma formosa gôndola. De capote e boina ele abraçou sua Mirelina e embalados pelas bênçãos do espírito dos mares deixaram-se hipnotizar com o balanço das águas. O gondoleiro foi remando suavemente sob a Ponte de Rialto, a Ponte dos Suspiros, e outras tantas pontes cantarolando canções românticas. O casal apaixonado era só emoções. Passaram por São Marco, São Pólo e Santa Croce, e uma nuvem escura trazendo brisas geladas surgiu nos céus quando alcançaram a margem sul do Canal Grande próximo a Accademia. Entraram nesse Museu por uma hora, e já caía a garoa ao se dirigirem à estação de trem. Então, encolhidos em seus casacos retornaram a Pisa.
Dois dias depois, determinados a perscrutar as influências egípcias na antiga Roma, Conrado e Mirelina, e os amigos, Giorgio e Marlus, foram pra lá apreciar in loco o Obelisco na Praça São Pedro. Ele exibia mapas e mapas e uma grande lupa pra diversão de todos. Vasculharam as construções arqueológicas assombrados de tantas relíquias antigas. E, na empolgação das descobertas, ele foi tomando uma grappa aqui outra ali. Chegaram a imensa Praça São Pedro, com as belas estátuas encantando as centenas de turistas que a visitavam. E bem no centro da Praça lá estava o tesouro:
- “Este Obelisco foi construído há 4000 anos!... e só está aqui graças ao Papa Sisto V que fez com que fosse transferido do Circo Máximus para cá pra enfeitar a Praça”... - contava Marlus – “Veio da cidade egípcia Heliópolis em 37 D.C. até Roma por solicitação de Calígula”. O grupo apurou olhares e ouvidos. – “Vejam que belo granito com inscrições milenares! A cruz no topo é um pedaço da cruz de Cristo!”
- “Quero saber como isso veio parar aqui, pois o Vaticano nem existia, e isso pode ser falso!” – argumentou Conrado bem alterado. – “É egípcio... é egípcio... é egípcio... será?” – inconvenientemente repetia.
Marlus, que gostava de engajar-se em discussões histórico-pedagógicas, retrucou:
- “É verdadeiro, sim! Foi posto aqui nesta Praça em 10 de setembro de 1586. Só foi possível graças ao esforço de 900 homens com 150 cavalos. Tem 350 toneladas e 40 metros de altura.” Mirelina analisava cada detalhe do monumento. Num surto de maluquice Conrado repetia: - “será... será?...será...” Os colegas o censuraram. Ela se deu conta do ridículo das atitudes do namorado e sentenciou: - “Já chega... estou farta de ti!” E se retirou a passos firmes. O rapaz foi atrás dela.
Alheios a cena, os turistas na praça deleitavam-se com o prazer de ver no gelado e belo crepúsculo do antigo Império, o imponente Obelisco declinando no horizonte.
Uns quatro quarteirões adiante Mirelina estancou. Voltou-se e lhe disse: – “Vou pra Fontana de Trevi e tu me esquece!” Ele ficou irado: -“Já fomos passear de gôndola em Veneza, como você queria, já fomos num montão de cafés e confeitarias que você pediu... Agora você faz questão de ir pra essa Fontana só pra jogar uma moedinha lá... ah...” - ele meneava a cabeça. Ela seguiu num silêncio absoluto, muito zangada, e não lhe deu ouvidos. Giorgio e Marlus os seguiam alguns passos atrás.
Conrado tremeu, a situação ficou alarmante. Preencher urgente o silêncio embaraçoso era preciso. Por sorte, passando por uma rua estreita na direção da Fontana, Conrado ouviu uma música que, subitamente, o inquietou. Iniciou uma excitante dança, erguendo os braços: “Zebékiko”, um blues grego apaixonante... o fez avançar e recuar um tanto vacilante numa coreografia há muito treinada... como cena de filme. – “Eu te amo, Mirelina” – gritou o rapaz. Ela voltou-se.
Os colegas se achegaram ao pequeno café com especiarias gregas, cujo dono se juntou ao dançarino, e os quatro em movimentos cadenciados deram um espetáculo. Conrado continuou sua dança máscula envolvente com o olhar fixo na amada. Os passos dele ora lentos, ora ágeis, marcavam o chão de pedras no compasso eletrizante da música. Amoleceu-lhe o coração. Ela lhe sorriu, por fim. Fizeram as pazes e seguiram adiante. À noite, a Fontana de Trevi testemunhou beijos apaixonados (sob um capote) enquanto as luzes de Roma exibiam todo seu esplendor.
No dia seguinte, felizes e noivos, despediram-se da Itália.
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PUBLICADO NA REVISTA "INSIEME" nº 161 - de maio/2012 - em português e italiano.
Conrado decidira fazer um passeio pela velha bota no início do ano com sua namorada. Rumaram direto a Pisa, na Toscana, onde dois amigos os aguardavam. Aquele ser parecia ter saído dos livros de Renzo Grosselli, e caído no século XXI de parapente. Um tanto rude, um tanto tosco, como homens do século passado, os cabelos longos e a barba crescida lhe davam um ar envelhecido. Na antiga cidade novos universitários iam e vinham a cada ano. Também chegavam alunos de outros países descendentes de italianos, gente eclética globalizada e informatizada.
Assim que chegaram, sem demoras, foram conhecer a famosa Torre Pendente na Piazza del Duomo. Ele andava a passos largos, largos demais, e sua Mirelina mal conseguia alcançá-lo. – “Me espera!” - ela lhe dizia docemente, e ele “nem aí”. Pouco se dava conta do esforço que era pra ela andar apressada constantemente. Como professor universitário, o visitante foi medindo palmo a palmo a estrutura e a inclinação da Torre, as inscrições romanas, os baixo-relevos, as arcadas, enfim, os detalhes da bela arquitetura. Em seguida, foi subindo as escadas... e sua amada atrás dele. Deu 100 degraus, 150... 200 degraus... e ainda não haviam chegado. – “Vamos, vamos!” – ele gritou pra ela que vinha lá embaixo na imensa escadaria espiral. – “É muito degrau! Estou cansada!...” – retrucou a jovem. E ele subindo... 250... 270... 294 degraus! – “Vivooooo!!!..." – bradou lá de cima aos quatro ventos. Depois, como não via Mirelina desceu correndo distribuindo sorrisos aos inúmeros turistas. Pulou o último degrau morto de cansado. Sobre a gramínea gelada posicionou sua câmara de um ângulo, depois de outro e outro e outro. Rolou pela grama, focava à esquerda, depois à direita,... . A Torre quase desbotava com tantas fotos e poses. Deu três horas, quatro, cinco e meia... e ele continuava. – “Vamos embora!” – ela pediu. – “É preciso um bom enquadramento!” – retrucou o homenzarrão. Só largou aquela faina depois de saturado de rolar com seu capote pela grama verdejante, e se dar conta que já tinha escurecido. Pegou a namorada e se recolheram.
Ela estava decidida: iria passear de gôndola em Veneza, bem agarradinha ao seu amor. – “Pra quê!?” ele indagou – “Oras, todos os casais vão a Veneza fazer juras de amor e todos dão passeios de gôndola” – melosa ela lhe disse. O rapaz olhou-a com olhos oblíquos e perspicazes fazendo uma avaliação crítica de tudo e retrucou: – “Tudo bizantinices... bobagens!...”
-“Se achegue minha paixão / Em arroubos de amor / Meu semblante espelho / Nos teus olhos afogueados / E toco e dedilho tua derme / E mergulho em teus braços / E mistérios e segredos teus.” – declamou ela, e o enlaçou: - “Vamos pra Veneza, meu amor?” Embora Conrado não quisesse gastar um centavo em coisas pueris, e persistia na sua teimosice, com tanta insistência ele aquiesceu – “Ok, vamos lá!”
Numa fria manhã de domingo lá foram os dois pra Sereníssima. Os 177 canais e as 400 pontes de Veneza os aguardavam. Tão logo chegaram já se acomodaram no banco de veludo vermelho de uma formosa gôndola. De capote e boina ele abraçou sua Mirelina e embalados pelas bênçãos do espírito dos mares deixaram-se hipnotizar com o balanço das águas. O gondoleiro foi remando suavemente sob a Ponte de Rialto, a Ponte dos Suspiros, e outras tantas pontes cantarolando canções românticas. O casal apaixonado era só emoções. Passaram por São Marco, São Pólo e Santa Croce, e uma nuvem escura trazendo brisas geladas surgiu nos céus quando alcançaram a margem sul do Canal Grande próximo a Accademia. Entraram nesse Museu por uma hora, e já caía a garoa ao se dirigirem à estação de trem. Então, encolhidos em seus casacos retornaram a Pisa.
Dois dias depois, determinados a perscrutar as influências egípcias na antiga Roma, Conrado e Mirelina, e os amigos, Giorgio e Marlus, foram pra lá apreciar in loco o Obelisco na Praça São Pedro. Ele exibia mapas e mapas e uma grande lupa pra diversão de todos. Vasculharam as construções arqueológicas assombrados de tantas relíquias antigas. E, na empolgação das descobertas, ele foi tomando uma grappa aqui outra ali. Chegaram a imensa Praça São Pedro, com as belas estátuas encantando as centenas de turistas que a visitavam. E bem no centro da Praça lá estava o tesouro:
- “Este Obelisco foi construído há 4000 anos!... e só está aqui graças ao Papa Sisto V que fez com que fosse transferido do Circo Máximus para cá pra enfeitar a Praça”... - contava Marlus – “Veio da cidade egípcia Heliópolis em 37 D.C. até Roma por solicitação de Calígula”. O grupo apurou olhares e ouvidos. – “Vejam que belo granito com inscrições milenares! A cruz no topo é um pedaço da cruz de Cristo!”
- “Quero saber como isso veio parar aqui, pois o Vaticano nem existia, e isso pode ser falso!” – argumentou Conrado bem alterado. – “É egípcio... é egípcio... é egípcio... será?” – inconvenientemente repetia.
Marlus, que gostava de engajar-se em discussões histórico-pedagógicas, retrucou:
- “É verdadeiro, sim! Foi posto aqui nesta Praça em 10 de setembro de 1586. Só foi possível graças ao esforço de 900 homens com 150 cavalos. Tem 350 toneladas e 40 metros de altura.” Mirelina analisava cada detalhe do monumento. Num surto de maluquice Conrado repetia: - “será... será?...será...” Os colegas o censuraram. Ela se deu conta do ridículo das atitudes do namorado e sentenciou: - “Já chega... estou farta de ti!” E se retirou a passos firmes. O rapaz foi atrás dela.
Alheios a cena, os turistas na praça deleitavam-se com o prazer de ver no gelado e belo crepúsculo do antigo Império, o imponente Obelisco declinando no horizonte.
Uns quatro quarteirões adiante Mirelina estancou. Voltou-se e lhe disse: – “Vou pra Fontana de Trevi e tu me esquece!” Ele ficou irado: -“Já fomos passear de gôndola em Veneza, como você queria, já fomos num montão de cafés e confeitarias que você pediu... Agora você faz questão de ir pra essa Fontana só pra jogar uma moedinha lá... ah...” - ele meneava a cabeça. Ela seguiu num silêncio absoluto, muito zangada, e não lhe deu ouvidos. Giorgio e Marlus os seguiam alguns passos atrás.
Conrado tremeu, a situação ficou alarmante. Preencher urgente o silêncio embaraçoso era preciso. Por sorte, passando por uma rua estreita na direção da Fontana, Conrado ouviu uma música que, subitamente, o inquietou. Iniciou uma excitante dança, erguendo os braços: “Zebékiko”, um blues grego apaixonante... o fez avançar e recuar um tanto vacilante numa coreografia há muito treinada... como cena de filme. – “Eu te amo, Mirelina” – gritou o rapaz. Ela voltou-se.
Os colegas se achegaram ao pequeno café com especiarias gregas, cujo dono se juntou ao dançarino, e os quatro em movimentos cadenciados deram um espetáculo. Conrado continuou sua dança máscula envolvente com o olhar fixo na amada. Os passos dele ora lentos, ora ágeis, marcavam o chão de pedras no compasso eletrizante da música. Amoleceu-lhe o coração. Ela lhe sorriu, por fim. Fizeram as pazes e seguiram adiante. À noite, a Fontana de Trevi testemunhou beijos apaixonados (sob um capote) enquanto as luzes de Roma exibiam todo seu esplendor.
No dia seguinte, felizes e noivos, despediram-se da Itália.
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PUBLICADO NA REVISTA "INSIEME" nº 161 - de maio/2012 - em português e italiano.