Farsa do poeta invertido

“É você quem me lê?”

Perguntava o poeta para uma tela azul, enquanto nenhuma resposta era digitada do outro lado . Certamente, os olhos que engoliam as frases irresponsáveis de um poeta excêntrico não falariam. Não seriam a resposta correta para um sem número de mundos recriados e reestruturados de uma mente que simplesmente se recusava a desligar.

E o peso de muitas vidas, de muitas histórias, era insuportável. Era grande demais para um coração apenas. Para uma mente desesperada para entender todos os termos de uma partitura espantosa e titânica, escrita por um ente muito maior do que a própria existência.

Mais uma vez, o poeta se desligou dos cabos e dos pulsos eletromagnéticos. Não mais arremessaria ao mundo os seus escritos. A resposta não estava no mundo. Nem nos olhos hora assombrados, hora indiferentes das soturnas sentinelas da tela.

O poeta se levantou de sua cadeira , acendeu seu cigarro, e olhou longamente para aquele fluxo irracional da vida. E ela sempre ocorria lá embaixo. E vista do quinto andar, ela parecia ainda mais frenética. Perigosa.

Enquanto a fumaça subia, o sol da manhã se levantava. Iluminava aquele rosto que não era nem feliz nem triste. Tristeza e felicidade, eram coisas sem importância. Sentimentos dispensáveis para quem se ocupava apenas da recriação do universo.

Um nome martelava a cabeça do poeta. O seu próprio, quando o ouviu da última vez ao telefone. Era da pizzaria que trouxe uma intragável pizza calabresa, que estava quase inteira sobre a mesa. E o peso de seu próprio nome era algo curioso. O poeta decidiu secretamente então, não mais pensar em si próprio como um nome. Como uma unidade à parte. Era um ser organicamente integrado a um mundo indissociável. Porém, seu próprio mundo. Um lugar feito de todas as coisas, de todos os seres. Mas tão mutável e surpreendente que por vezes, o poeta apenas gostaria de apagar. O poeta simplesmente, gostaria de não pensar. Mas isso era impossível. E quando dormia, os pensamentos vinham em forma de sonhos. Como que equações que se formavam e se encaixavam umas ás outras, formando complexas estruturas que não diziam nada. Mas que surpreendentemente, eram familiares, viscerais....eram mulheres perfeitas, eram homens irreais, eram obras de arte maiores que qualquer espanto.....

E enquanto o cigarro se acabava, um pequeno desespero por estar vivo, fez o poeta ter dores de cabeça. Algo deveria ser vomitado para o mundo, urgentemente. Mas não para o mundo lá fora. Apenas para o mundo que pertencia àquelas paredes sem graça, pintadas de um cinza sem propósito. Mas como? Como organizar tantas informações inertes e ao mesmo tempo furiosas, tantas dores alheias, tantos amores tatuados na pele, na alma?

E á medida que o dia avançava, os barulhos iam se avolumando, tornando insuportável a convivência consigo próprio.

Mas milagrosamente, deu-se a calma. Espantosamente, como nunca havia ocorrido antes, a mente do poeta parou. E ele pôde respirar. Era chegado o momento da última recriação. Ele sabia que esta hora em sua vida chegaria. O momento em que todas as coisas em sua mente fariam sentido. O momento em que toda a sua vida se justificaria. Ele poderia enfim retirar da brancura espessa do desconhecimento, seu mundo remodelado e recriado, com sua mitologia inegável e seus pequenos seres deuses.

Então o poeta olhou para aquele céu de um azul divino. Voltou á sua mesa, onde ainda estava desligado o seu computador. E calmamente o religou.

O que o poeta entendia por milagre, começava a se manifestar naturalmente, a cada toque de tecla. As letras eram exatamente as que deveriam ser tocadas. E caso alguma saísse de seu lugar, tudo desabaria.

O poeta iniciou seu definitivo poema, como a explosão primordial. A aurora dos tempos. E naquele momento, ele foi tomado tão fortemente de suas verdades, que tudo passou a não existir mais. O apartamento se evaporou, os móveis se desintegraram, os barulhos se calaram....era tudo o vácuo.

Dos dedos que compunham a nova partitura da existência, brotaram então as esferas celestes, que esbarravam em estrelas velozes. E seus movimentos pelo espaço, produziam a música de uma nova divindade, insuportável aos ouvidos de tão simétrica.

Das esferas nasceram as novas vidas. Gigantes de magnitude imensurável. E estes eram ao mesmo tempo a criação e a destruição, a verdade e a nulidade. De suas incandescentes palavras, surgiam os organismos arquitetonicamente perfeitos, ligados uns aos outros pela palavra reinventada, em uma língua inútil. E tão inútil era, que a palavra era a própria poesia. A mesma que atormentava a mente do poeta que se esvaía em um suor asqueroso.

Enquanto o universo começava a fazer sentido, o poeta entendia o propósito da vida. Enquanto criava e matava infinitas vezes a música, simplesmente deixou de perceber o tempo à sua volta. Foram dias.

E a obra de uma vida foi transcrita em um poema tão perfeito, que seu tamanho era imensurável. O poeta apenas digitava e digitava. Em um mundo feito de amores vãos e ódios extremos, traduziu a menor parte de um reflexo de espelho. E finalmente entendeu o que toda a partitura da morte e da vida gritava em seus ouvidos. E gritava com a força da dor aliviada.

Dia, noite, horas, horas....passou-se muito tempo até que a tradução de um outro mundo fosse acabada. E o poeta se perguntou: é apenas isso? E seu próprio poema respondeu: é tudo isso. O seu próprio poema disse: eis o fim da canção.

Quando se levantou da mesa, o poeta cambaleou. Não percebeu que os dias se passaram. O mundo massacrou seu corpo. E este mesmo mundo o reclamava de volta, até que se tornasse parte dele, na sua forma mais atômica. Apenas carbono. Apenas pó de vida, apenas instante de luz num limbo maior que as ideias.

O poeta observou sua obra. Viu uma verdade tão inclassificável, que decidiu recomeçar.

Acendeu mais um cigarro, enquanto outro dia começava. Enquanto os carros corriam lá embaixo. E terminando sua última traga, decidiu se retirar do mundo. Caiu ali mesmo, com uma lágrima não chorada em seus olhos.

Morreu e de seus vestígios, não se teve mais notícia.