Cap. 1 Um Timbu Livro q estou escrevendo

Estou escrevendo um Livro.

Sem nenhuma pretenção, apenas é algo que tenho prazer em fazer.

Por favor leiam e deem sua opinião, antes que eu comece o 2° Cap. Cap. 1 – Livro ainda sem título definitivo.

Um Timbu. (Título cap.1)

Timbu montou sobre o muro como um cavaleiro, uma perna para dentro outra para fora, antes de saltar era preciso conferir se havia algum risco. Parecia que a via por onde passavam os cargueiros, carregando pessoas de um lado para outro da cidade, estava segura. Dois Vira-Latas caminhavam tranqüilamente alguns metros à frente: “Eí vocês!

Ta limpo?” Sempre era bom garantir. Um dos sujeitos olhou para trás e respondeu sem parar: “A outra mega estava limpa, mas o movimento estava fraco, vamos arriscar essa próxima.” Eles carregavam mochilas parecidas com a sua, o que lhe deu mais confiança. Cuidadosamente, baixou a bagagem, para que caísse da menor altura possível e não estragasse nenhuma mercadoria. Prounchh! Pronto; a bolsa já descansava ao lado da via férrea, agora era sua vez. Pulou como de costume, mas escorregou com o rolar das pedras britadas, sua sandália entortou sob seu pé direito soltando uma das borrachas que a prendia. Sentou-se nos trilhos para concertar. “_Zica, sempre alguma coisa para atrapalhar!”. Levantou-se, tomou o mesmo caminho dos dois primeiros.” _Aqueles desgraçados, já devem estar lá. Assim vou perder o próximo cargueiro.”Ganhou uns bons dobrões em outra mega-estação. Agora ia pegar os Chulos que, naquele horário, aguardavam os transportes saírem da Mega-Estação Central; a principal mega-estação usada pelos Chulos, que vinham da periferia da cidade, para trabalhar no centro, nas funções que davam sustentação às altíssimas Torres de Trabalho da metrópole de Sansãos, a maior e mais rica cidade do grande Império Mazombo. “_Com os biés, termino com minhas bugigangas”. “Vou ganhar uns mangos. He,he,he!” Esses pensamentos o acalmaram. Esfregava as mãos contando os dobrões que iria ganhar, enquanto pulava entre os dormentes dos trilhos.

Era assim que os Vira-Latas passavam para dentro das linhas, dali para as mega-estações e destas para os cargueiros: aproveitavam os pontos fracos da muralha que serpenteava acompanhando os trilhos. Conheciam os horários e as rotinas dos defensores das linhas cargueiras, estes não eram muitos e só podiam proteger poucos locais de cada vez. Mesmo com essa vantagem, não era prudente ficar despreocupado. Quando um deles era pego – diziam que “caía” - era levado para as Instituições “Boa Paz” do Império ou, pior ainda, poderia acontecer ao desgraçado a coisa que mais temiam: ser devorado.

Naquele momento, esses temores não passavam pela cabeça de Timbu; tinha que realizar sua caçada aos dobrões, aos sabores que estes lhe proporcionariam, aos prazeres e às “fomes” que poderia saciar. Sua boca se encheu d’água e esfregou ainda mais rapidamente as mãos ao ver, enquanto se aproximava da Mega-Estação, que esta estava apinhada de Chulos cansados. Pela quantidade de Mazombos nas plataformas, os próximos cargueiros deviam estar prestes a estacionar. “_ Que zica, vou perder a biézada!” Começou a correr. Achou que conseguiria chegar, apenas tinha de prestar atenção nos trilhos, para não enfiar um dos pés em algum buraco; como um touro baixou a cabeça e acelerou. Dava longos passos que o jogavam de dois em dois dormentes. Teria tempo de sobra.

Quase trombou com a base da plataforma. Jogou a bolsa para a parte de cima, depois, agilmente, agarrou a borda e se ergueu ficando com a cintura ao nível de embarque; mais uma olhada, um movimento de pernas, e caminhava para seu objetivo. Os Chulos se aglomeravam, como uma manada, no centro das plataformas e iam ficando mais dispersos em seus extremos. Mas, naquela tarde, a Mega-Estação Central estava tão cheia, que mesmo os pontos normalmente vazios estavam ocupados. Isso era bom para Timbu; enquanto esperava poderia tentar golpear algum bié, sem se preocupar com o risco de perder os dobrões que ganhou naquela semana.

Conforme passava pelos passageiros, procurava identificar o melhor alvo a ser abordado. Havia alguns Vira-Latas que aguardavam o cargueiro, para tentar vender seus produtos e outros que deviam estar caçando dobrões de outra forma, porque apenas fumavam e conversavam sentados no chão formando um circulo. Timbu pensou: “Estes é que não me interessam”. Entrou ainda mais na “manada”. Passou por uma Chula gorda acompanhada de quatro filhotes, que puxava um grande embrulho em um tipo de carrinho de duas rodas. Ela também procurava alguém, por isso falou com ele: _ “Faz favor Chulo, pode ajudar a levar o carrinho até a escada?”

_ “É claro que não, estou ocupado”. Nem sequer parou para responder. Seu comportamento ofendeu a Chula:_ “Que é isso, que falta de educação! Os Chulos se ‘ajuda’. Viu?” Timbu ainda respondeu: “_Não sou um Chulo velha.”

_ Não tinha percebido. És muito menos que isso. És um Vira-lata! No tempo da minha mãe, tipos como você não chegavam nem perto de gente decente. Espero que os Muques te peguem e devorem, que não sobre nem osso! Ela esbravejava, mas o mal-educado não ouvia. Identificou-se com o olhar dos pequenos, eles pareciam os filhotes de sua irmã: uma “escadinha”. A lembrança desapareceu como tantas outras vezes, quando vislumbrou uma oportunidade.

O sujeito estava encostado a um pilar e fumava um cigarro, vestia um terno azul um pouco surrado e trazia embaixo do braço direito uma pasta. Dava para perceber que tinha trabalho fixo. Desatento, parecia refletir sobre seus problemas sem se incomodar com o que acontecia à sua volta.

_ Dá licença? Desculpa atrapalhar. Timbu se curvou um pouco para demonstrar humildade e para que o outro não se sentisse ameaçado. Seu plano só funcionava quando quem era abordado se sentia totalmente seguro e dono da situação, aliás, melhor era ainda quando o bié achava que era ele o esperto daquele jogo. Independente da casta em que se nascia sempre havia o desejo de não ser apenas a presa.

_ O que cê quer Vira-Lata? Trajado como estava àquela hora do dia - boné virado para trás, camisetão comprido, bermudão que ia até abaixo dos joelhos, calçando sandálias e se aproximando com uma mochila aberta – era fácil deduzir o grupo a que pertencia. “_ Tenho aqui uns produtos de primeira qualidade pro senhor. Uns tipos ali atrás queriam, mas olha como estão vestidos, parece que aqui só tem desclassificado”. Indicou, disfarçadamente, aqueles por quem tinha passado. O do terno deu uma olhada e sorriu concordando. A forma de se vestir é muito importante para os Mazombos. Principalmente entre os membros de uma mesma casta, que não apresentam grandes diferenças físicas entre si. Os membros de um subgrupo como, por exemplo, Os Vira-Latas em relação aos Chulos, podem ser identificados pelas roupas que usam.

_O senhor não. Logo vi que era diferente. Merece e dá valor a um produto de qualidade. Curvou-se ainda mais enquanto enfiava uma das mãos na mochila. Parou um momento, levantou a cabeça e olhou assustado para todos os lados, como se fosse retirar dali um objeto de grande valor, algo que não deveria ser exibido inutilmente. Essa atitude fez com que o potencial freguês se aproximasse ainda mais.

_ Vamos lá, o que é? Mostre-me agora!

Timbu sorriu mostrando os dentes amarelados. Despertou o desejo do bié e agora era só manobrar a isca. Abriu mais a bolsa e expôs totalmente seu conteúdo: “_ Aqui está, pode escolher a vontade.”

O possível freguês se abaixou para observar aquele segredo, depois de alguns instantes, ergueu-se e olhou com uma expressão confusa e ofendida.

_ Mas não passam de relógios, aliás, dos mais ordinários. Deixe-me em paz. Tentou retornar ao pilar em que estava encostado.

_ Sabia que o senhor acharia isso e fico feliz. Aumentou o sorriso o mais que pode. A muitos Mazombos faltavam dentes da frente, em seu caso deixou ver que, por enquanto, tinha perdido apenas um molar pouco visível no fundo da boca. “_ Agora tenho certeza que vamos fazer algum negócio.”

_ Como é que é? O bié estava totalmente confuso, ficou sério e franziu a testa como uma forma de proteção.

_ Sim, mas é claro. Isso quer dizer que o senhor ainda não conhece as novas mágicas dos aparelhos dos Meios. Sendo uma pessoa fina, com certeza vai querer adquirir um destes. Enfiou a mão na bolsa e pegou um relógio digital redondo, com uma pequena lâmpada do lado direito e outra do lado esquerdo. Esticou o braço oferecendo o “equipamento mágico” ao indeciso cliente. Este voltou a se aproximar, pegou o objeto e começou a examiná-lo.

_ Nova mágica dos Meios é. Qual o truque?

_ Não é truque. O senhor sabe que eles – os Meios - são tipos muito precavidos, que ninguém pega de surpresa. Por exemplo, essa máquina em suas mãos, avisa quando o cargueiro está perto de chegar à mega. Fez questão de se colocar em uma posição em que poderia ver a composição à distância e o outro não. Olha só, a luz amarela acendeu, o cargueiro está chegando. Disse isso assim que viu a luz de um farol mudar de cor. Pouco antes do Chulo se virar para conferir, a composição surgiu de uma curva distante, encobrindo a sinalização que a denunciou.

_ Puxa os Meios são mesmo traíras, sabidos mesmo! E o que a outra lâmpada faz? Agora o comprador estava interessado.

_ Bem, a outra lâmpada – Timbu, pensativo, levou a mão livre ao queixo – a outra lâmpada acende quando alguém inteligente e traíra o coloca no pulso. Deixa eu só encostar no seu braço. Ao fazer isso a luz verde acendeu.

_ Por que o troço não acendeu com você? O comprador em potencial continuava desconfiado e o cargueiro já estava quase na mega-estação.

_ E aí, vai querer ou não? Estou sem tempo. Essa máquina vale cinqüenta dobrões.

_ Não tente me enganar só por que está com pressa, te dou vinte dobrões.

_ Assim não ganho nada senhor, quero pelo menos trinta.

_ Vinte e cinco e estou indo embora.

_ Tudo bem. Fazer o quê? É melhor isso que perder para os Muques. O Vira-lata fez uma expressão de desânimo enquanto pegava o dinheiro. Agradeceu, enfiou os dobrões no bolso do bermudão, depois saiu se misturando aos passageiros, eles se empurravam enquanto aguardavam as portas do cargueiro se abrirem. Atrás da multidão sequer conseguia ver a máquina estacionada, mas a fumaça pairando sobre as cabeças e os ruídos emitidos, mesmo com o motor parado, não deixavam dúvida de sua presença. Somente comemorou quando parou diante do primeiro vagão. Fez um bom negócio, aquele relógio valia uns cinco dobrões. Apertava disfarçadamente um pequeno botão abaixo da lâmpada, depois inventava alguma “mágica” dos Meios. Não tinha como errar: os Chulos admiravam, mesmo não compreendendo, os aparelhos utilizados pela casta dos Meios, era um sinal de status ter acesso às suas estranhas invenções.

Apesar de não admitirem, os Vira-Latas também se protegiam na “manada”. Aproveitavam as grandes aglomerações, que se formavam em muitos lugares da metrópole, para desaparecerem entre os Chulos; apenas o fato de serem em sua maioria jovens e terem um comportamento marginal ao sistema, poderiam denunciá-los. Afinal, eram todos de baixa estatura e tinham o mesmo tom de pele. Variava do mais claro ao mais escuro, mas todos apresentando a mesma cor: cinza. As castas mais altas não gostavam dessa característica, mas ao mesmo tempo, ela era motivo de orgulho nacional. Dizia-se que a mistura de tonalidades que acabava indefinida, diferenciava os Mazombos de todos os outros povos.

Timbu também era dessa cor acinzentada, nem branca nem negra, que dominava a longa plataforma da Mega-Estação Central. Assim, resolveu esperar o próximo cargueiro, aquele sairia lotado e ele não poderia circular pelos vagões. Por isso, ficou um pouco afastado da massa apertada contra a porta. Acendeu um cigarro, lembrou-se do olhar dos filhotes da Chula gorda e do bié de terno, quando este achou que ele, ao vender a bugiganga, era quem seria enganado na situação. Tinha ouvido falar, em algum lugar, mas não recordava onde, do “olhar Mazombo”. Porém, um alerta de seu instinto o impediu de divagar sobre o assunto. -------- -------- Ficou sério, alguma coisa estava errada. O cargueiro demorava demais para abrir as portas. Ergueu-se na ponta dos pés, acima da multidão, tentando observar toda a extensão da mega-estação. Podia ser uma ocorrência sem importância, ou não. Cada parte do lugar foi avaliada: a plataforma, até onde podia ver, estava cheia, mas tranqüila; da escadaria virada para seu lado, apenas desciam mais chulos apressados pela visão do cargueiro; dentro dos vagões lotados, somente trabalhadores com seus rostos cansados; as passarelas que levavam até as escadarias, também pareciam ter movimento normal. No entanto. Por um momento. Percebeu, através dos vidros da lateral de uma delas, a passagem de sombras escuras. Falou consigo: _ Zica, será que são eles?

Jogou o cigarro no chão, fumar em um lugar proibido poderia entregá-lo, depois se aproximou dos Chulos procurando camuflagem. O primeiro vagão parava junto ao final da plataforma. Precisava – e era o que estava fazendo – vigiar a direção oposta. Realmente algo de errado se passava, porque todos agora olhavam para o mesmo lado. Ao longe a manada começou a se agitar. Corrida, empurrões e xingamentos se aproximavam cada vez mais. Aos tropeções os responsáveis por eles ultrapassaram a escadaria voltada para frente do cargueiro, a parte onde Timbu estava. Vira-Latas que carregavam mochilas, caixas térmicas, mercadorias nas próprias mãos ou que apenas corriam de medo por saberem o que aquela fuga significava, procuravam sair da mega-estação e voltar aos trilhos. Mesmo o círculo de fumantes sentados pelo qual tinha passado se desfez, seus membros acompanharam os que vinham aos atropelos. Timbu pensou: “_ Não preciso correr, basta ficar parado e não ser identificado.” Os primeiros fugitivos passaram por ele, tentou se acalmar e imitar o comportamento dos Chulos, que estavam bastante assustados. Alguns demonstravam um pouco de pena, dizendo que aquilo era ruim, porque a mega-estação era o lugar onde podiam encontrar produtos com os melhores preços. Outros gritavam, acusando os Vira-Latas pelo atraso do cargueiro e torcendo para que fossem pegos. Timbu achou que gritar seria demais e ficou calado.

De repente, uma mão segurou seu braço e o puxou para fora da massa protetora. Achou que fosse um Muque e tentou se livrar, mas quando olhou para quem o segurava, percebeu que o conhecia: era o Boneco, um Vira-Lata magro que tinha uma cabeça enorme.

_ O que cê tá fazendo aqui ainda Timbu? Virou bié? Corre que os Muques estão vindo babando! Soltou seu braço e voltou a correr.

_ Seu filho de uma ratazana, deixe-me em paz! Boneco não ouviu seu xingamento, tinha pulado da plataforma e corria pelos trilhos.

Ouviu-se um grito de guerra em tom de ordem militar – ARROU!! – quando figuras vestidas de negro surgiram de trás da escadaria, em sua frente iam mais Vira-Latas que tentavam sair da mega-estação. Esses perseguidores podiam, ou não, ter visto Timbu praticamente ser apontado por seu conhecido, mas ele sabia que não devia arriscar. Soltou mais uns palavrões contra o “cagueta”, enquanto disparava na direção do fim da plataforma. Ultrapassou alguns outros fugitivos e rapidamente saltou para a linha dos cargueiros. Dessa vez não escorregou, não tinha tempo para isso.

O grupo de ataque era formado por aproximadamente dez Muques, como todos os membros da casta guerreira, eram mais altos que os passageiros na plataforma. vestiam suas características fardas e capacetes negros, que deixavam a mostra apenas suas mãos e rostos de um tom de pele mais escuro que o comum aos chulos. Carregavam suas armas tradicionais: cassetetes, algemas e as temidas cospe-fogo. Vinham de forma disciplinada, divididos em duas colunas de cinco. Os da frente derrubavam os suspeitos e continuavam em perseguição, enquanto os de trás iam parando e prendendo mãos e pés para não os deixarem escapar. Esses da retaguarda ficaram na plataforma, para vigiar os prisioneiros e realizarem investidas tentando encontrar Vira – Latas escondidos entre a multidão. Os da primeira coluna desceram da plataforma seguindo aqueles que tinham alcançado a linha cargueira. Apesar de serem fisicamente mais fortes e demonstrarem vontade; sem o fator surpresa, os Muques não eram capazes de alcançar corredores que, além de mais ligeiros, tinham conseguido uma vantagem de dezenas de metros. Aos gritos tentavam fazê-los parar com ameaças:

_ Entreguem-se ou será pior!

_ Nós marcamos vocês, Vira-latas dos infernos!

_ Parem é uma ordem! Já sacamos as cospe-fogo, vamos mandar pedra-quente!

É claro que nem Timbu nem qualquer outro pararam, mas também os Muques não atiraram. Haveria testemunhas demais na plataforma e apesar deles ainda serem os braços do sistema, não contavam com a liberdade de ação de outros tempos. Fazia alguns anos que o Império vinha tentando impor, sobre as antigas relações de casta, um novo conjunto de leis que chamava de “modernas”. Os Vira-Latas sequer sabiam das limitações colocadas a seus perseguidores, apenas achavam que daquela distância dificilmente seriam atingidos. Timbu, por exemplo, pensou: “ Deixei um monte de biés lentos pra trás, se alguém for atingido, com certeza não serei eu.”

Os Muques desistiram da perseguição, ficaram observando suas presas desaparecerem em uma das curvas da linha. Um deles ainda levantou a cospe-fogo, quando um dos últimos fugitivos parou para fazer gestos obscenos em sua direção. Um companheiro interrompeu seu movimento no meio:

_ Calma T. Toledo, não precisa se prejudicar.

_ Eu sei P.Cardoso, mas é que me dá nos nervos ver esses trastes escaparem. Rangeu os dentes recolocando a cospe-fogo no coldre.

_ Não podemos agir como antigamente. Venha, vamos manter o plano dos Caçadores.

_ É, por enquanto. T. Toledo seguiu o outro, sem conseguir disfarçar a frustração de seu instinto de devorador.

Os Vira-Latas continuaram correndo, afastaram-se quase dois quilômetros, percorrida essa distância, para terem a certeza de que não tinham sido seguidos, pararam e aguardaram alguns retardatários. Estavam acostumados a esse tipo de fuga e aos procedimentos dos Muques. Enquanto descansavam se formou uma pequena assembléia, alguns falavam coisas sem importância como se nada tivesse acontecido, mas a maioria discutia para onde ir agora:

_Vocês viram? O primeiro Muque quase me pega de surpresa. Até rasgou minha camisa. Falou um baixinho enquanto mostrava um buraco em sua roupa.

_ Iarre! Pequeno - Um outro se dirigiu ao baixinho que, por ser baixinho, tinha o nome de Pequeno – pensei que esse rasgo fosse do dia em que você tentou “furar” na marra com a Maçaroca, quando ela acabou te jogando no chão e levando suas moedas. Riu um riso alto apontando para o primeiro, o som foi aumentado com o chacoalhar das diversas pulseiras e outras quinquilharias que trazia presas ao corpo. Todas é claro, estavam a venda.

_ Iarre! Sai fora, cê está doido. Eu nunca quis nada com aquela fêmea, ela é quem queria comigo, tentou se aproveitar por que eu estava com a cabeça cheia de engasga-gato.

_ Tentou não. Conseguiu! Você é um bié. Rá, rá, rá, um biézão. Um chacoalhar ainda maior que o de antes acompanhou a risada, contagiando os demais Vira-Latas que riam, soltavam gritos curtos e agudos ou davam tapas nas próprias pernas e barrigas. O barulho, misturado à agitação dos muitos pés sobre o cascalho dos trilhos, fez com que ninguém ouvisse a resposta e os palavrões de Pequeno.

_ Mas uma coisa é verdade: se o Pequeno não dá o alarme a gente estaria zicado. Falou um Vira-lata mais velho, que estava sentado sobre uma caixa-preta usada como bolsa de mercadorias, quando o barulho diminuiu. E agora? O que fazer pelo resto do dia? Alguns segundos de reflexão foram sua resposta, depois vários deles começaram a “dar idéia” ao mesmo tempo:

_ O pior é que preciso de uns dobrões... Acho que vou pelos trilhos até a próxima mega-estação. Pensou alto um mais maltrapilho que a média dos presentes.

_ Bié, todos precisamos de dinheiro. Rá, rá, rá! Os Muques nunca demoram muito para irem embora e a próxima mega está longe. Esperarei sossegado por aqui mesmo. Aliás, vou me sentar um pouco, tenho que descansar antes de voltar pelo caminho que viemos. Ri, ri. Bié, bié. Rá, rá! O risonho Vira-Lata puxou sua bermuda para cima do umbigo e, saltitando na ponta dos pés, foi até uma lata enferrujada abandonada ao lado dos trilhos. _ Olha só, está até na sombrinha! Ainda soltando risinhos e olhando para seus parceiros, fez questão de mostrar que estava realmente sossegado; sentou-se de uma vez sobre o assento que escolheu. O céu de Sansãos era quase sempre nublado, de um tom cinzento que parecia continuar a cor dominante no solo, como uma abóboda que fechava a cidade em si mesmo. Mas, em algumas épocas do ano, essa cúpula era rompida por um Sol ardido, que fazia os Vira-Latas andarem vestidos apenas com bermudas e camisetas e, diziam, provocava os famosos e temidos surtos de loucura nas castas que tinham de usar roupas formais. Talvez por isso, um dos apelidos da cidade no restante do Império seja: Caldeirão de Cozinhar Doido.

Timbu alternou a participação entre os grupos que se formaram: os que queriam seguir até a próxima mega, os que preferiam aguardar e voltar para o sentido de onde vieram, os que apenas discutiam e riam alto até decidirem o que iam fazer... Parou no círculo que se formou junto ao Vira-lata que sugeriu aguardarem os Muques irem embora. Ele pendia a lata para trás, apoiando-se ao poste que proporcionava a estreita sombra que chamou sua atenção, argumentava sobre a sugestão que deu: ... “Nessa época as biézadas estão carregadas dos dobrões, eles recebem um abono para as festas do feriado de Dom Sebastião. Rá, rá, rá! Os que pegam cargueiro na Central (era como os Vira-Latas chamavam a Mega Estação Central), trampam nas grandes torres junto com os Meios. Um mangueio que a gente faça com eles e podemos sair para curtir nosso dinheiro. Escutem-me seus biés, ri, ri, ri!” Depois soube que o nome deste, por motivos óbvios, era Risadinha. Como tinha ganhado uma quantia razoável nos últimos dias, e gostava muito de curtir pelas movimentadas ruas da grande cidade. Timbu estava propenso a abandonar o mangueio, mas gostou daquele grupo. Pensou que não seria ruim manguear mais alguns biés, e ainda acompanhar os outros nas aventuras de esbanjamento do pequeno tesouro que somariam.

Enquanto decidia seu rumo o chão começou a tremer; um tremor muito fraco, mas que tomou força rapidamente. A vibração fez com que Risadinha se desequilibrasse e com o deslizar do cascalho, não escapasse de um belo tombo. Lançou uma enxurrada de palavrões enquanto rolava para fora dos trilhos, sob os aplausos de sua platéia.

Independente da posição defendida, todos os grupos se afastaram dos trilhos aguardando a razão do tremor. Eles sabiam, pela experiência, o que estava se aproximando. Em instantes, da direção oposta à que vieram, um enorme monstro negro de ferro surgiu. Primeiro sua cabeça; uma locomotiva com vidros escuros que abria caminho com um medonho limpa trilhos, lançando jatos de fumaça e faíscas de suas laterais. Depois a enorme serpente de vagões que, apesar de serem da mesma cor da locomotiva, tinham janelas com vidros transparentes que podiam ser abertas, deixando ver os Chulos olhando sem interesse, de seu interior, para as figuras familiares que assistiam a passagem de mais um cargueiro com destino à Mega Estação Central. Os gritos agudos, do atrito entre os metais de seus mecanismos internos: scriinch! Misturavam-se ao som grave e repetitivo, das rotações de suas rodas de ferro sobre os trilhos: tchum, tchum, tchum... Executava uma sinfonia inconfundível aos ouvidos Mazombos e, principalmente, aos ouvidos Chulos.

Mais da metade do cargueiro tinha passado por eles, quando foi a vez de um vagão todo enfeitado de Vira-Latas. Estavam agarrados às saliências das portas e das janelas, brincavam com o perigo enquanto viajavam da forma que gostavam. Além de se divertirem com esse “esporte”, eles temiam viajarem espremidos dentro dos vagões como os demais Chulos. Circulava a história de um transporte coletivo, não um cargueiro, mas um de rua, que apesar de estar cheio continuou recebendo mais e mais Chulos. Foram enfiados dentro dele até que mal havia espaço para a circulação do ar, encaixaram-se tão bem que foi impossível tirá-los do veículo. Passaram a viver daquela forma, enquanto eram exibidos como curiosidade por todo o país. Depois que deixaram de interessar o público interno, foram enviados em excursão para serem admirados além-fronteiras do Império. Os prisioneiros se acostumaram, assim não precisavam mais se preocupar com a luta diária pela sobrevivência. Recebiam tudo das formas mais inusitadas: canudos, sondas, sopinha na boca,... Já a Alta Nobreza, aproveitou para apresentá-los ao mundo, como uma prova irrefutável de uma das grandes virtudes dos Mazombos: sua incrível capacidade de adaptação. Como os Vira-Latas não gostavam de viver presos, sempre lembravam uns aos outros dessa história, apesar de ninguém saber exatamente quando e se aconteceu.

Por um momento, os grandes olhos dos pendurados, cruzaram com o olhar dos que estavam parados ao lado dos trilhos, o que fez com que parassem por um instante suas brincadeiras aéreas. Depois, quase em uníssono, soltaram um grito que pôde ser ouvido mesmo sob o barulho do cargueiro:

_ Biiiééésss!!!! Rá, rá, rá! As gargalhadas acompanhavam os braços estendidos, apontando os que estavam no solo. Mesmo com a grande máquina se afastando eles continuavam rindo. Seguravam-se com uma das mãos, enquanto a outra mantinha os do chão sob a mira de seus indicadores. Biiiéééss! Biés! Biés! Rá, rá, rá!

_ Timbu foi o primeiro a reagir: Vamos ver quem é bié! Também ria ao se abaixar para apanhar uma pedra. Não teve tempo para fazer mira, mesmo assim seu disparo chegou perto do alvo. Diversos dos seus companheiros, ou, como diziam: parceiros, imitaram sua resposta. Uma das pedras quase acertou um dos barulhentos “pingentes” do cargueiro, as outras bateram inofensivamente em sua lataria. Uma delas pode até ter entrado pela janela e atingido um Chulo desavisado. Isso os atiradores não puderam ver, mas, de qualquer forma; não faria diferença. Provavelmente até comemorassem, como uma vingança realizada, o fato de terem acertado alguém, ainda que esse alguém nada tivesse feito para ofendê-los. Mesmo se distanciando, Timbu percebeu os gestos obscenos que os vira-latas, sumindo na curva junto com o cargueiro, faziam em sua direção. Na verdade, curiosamente, conseguiu distinguir alguns gestos diferentes: vários acenavam com o braço livre, como se quisessem chamar a atenção ou passar um aviso. Alguns de seus parceiros também entenderam isso.

_ O que esses biés estão gritando? O Pequeno, que tinha se aproximado dele, ainda tinha uma pedra na mão quando perguntou.

_ Vai saber. São mesmo uns m... Timbu respondeu sem muita segurança, a repentina mudança de atitude de seus agitados adversários, deixou-o com uma sensação ruim. Apesar dos xingamentos e pedradas de antes, na verdade não eram inimigos, havia um tipo de cumplicidade entre os membros de uma mesma casta; um dos Vira-Latas que estava no solo, no dia seguinte, poderia muito bem estar no grupo agarrado ao cargueiro e vice-versa.

_ Corre biézada, deu zica! DEU ZICA!! Mesmo surpreendidos e empurrados pelo Vira-Lata que veio correndo detrás deles, os dois conseguiram não serem jogados para fora dos trilhos. O Pequeno, escorregando por causa do cascalho que rolava sob seus pés, xingou e até jogou a pedra que ainda tinha na mão; essa nem chegou perto. O sujeito da trombada corria acelerado e nem percebeu o ataque, pensava apenas em manter a velocidade. Algumas de suas mercadorias ficaram pelo caminho: eram bolas de várias cores que tinham o tamanho de um punho adulto fechado, quando batiam no chão piscavam uma luz forte e emitiam sons altos – gritos, risadas, barulhos de animais, etc. – mais um dos inúmeros brinquedos “mágicos” que encantavam os Chulos e seus filhotes.

Uma escandalosa bola amarela foi quicando até a mão direita de Timbu. Seu brilho instantâneo o ofuscou, mas para segurá-la só precisou fechar os dedos. Antes que ela completasse mais um grito a enfiou no bolso e sussurrou: _ Bié. Despertou desta distração apenas depois que mais três ou quatro Vira-Latas, assim como o primeiro, passaram em disparada por ele. Virou-se para a direção da qual vieram, a mesma de onde surgiu o cargueiro, em uma fração de segundo viu e entendeu o motivo da correria: sobre uma parte mais baixa da “muralha” (uns três metros) que acompanhava os trilhos e que realmente se tratava de um muro, ao invés de ser a parede traseira de algum galpão ou prédio, estavam sentados três Muques. Eles passaram uma escada para dentro do leito ferroviário e uma figura de negro descia os degraus, enquanto outra já estava no chão tendo até um Vira-Lata seguro pelo braço. A presa estava de cócoras: xingava, cuspia e até tentava atingir suas pernas. Puxava para a esquerda usando o peso do corpo até tocar o traseiro no chão; depois, aos pulinhos, fazia o Muque girar 180º para a direita, mas não se soltava. Ficavam assim em um estranho balé que, com a grande diferença de forças, só provocava o riso e divertia o Muque e seus parceiros:

_Olha! O J.Madeira está dançando um Xique-xique com o bicho ! Passinho pra cá, passinho pra lá. Quem é o macho e quem é a fêmea nesse par? Rá, rá, rá!

_ Espera nós descermos, deixa um pouco para teus parceiros! Mais risos dos que ainda estavam em cima do muro.

_ Deixar o quê? Vocês são muito lentos, são uns vagabundos como esse aqui. Olhem só o que é ser Muque de verdade! Usando um movimento rápido, J.Madeira torceu o braço do Vira-Lata, este rodopiou em cambalhota terminando por estatelar as costas no chão. Num movimento coreografado o Muque acompanhou o giro do prisioneiro e, ainda torcendo seu braço, quase no mesmo instante em que o corpo se chocava contra o cascalho dos trilhos, imobilizou-o colocando seus joelhos sobre seu peito. Estão vendo? É assim que se faz. Vocês me devem uma dose hoje. Apontava para os parceiros que ainda riam, apesar de agora também aplaudirem.

_ Rê, rê. Estou pronto. Deixa esses biés metidos a espertos comigo. O da escada pulou para o solo se desequilibrando um pouco, apoiou-se em uma das mãos e usando o mesmo impulso para não cair iniciou uma corrida, ainda meio agachado, em direção ao Vira-Lata mais próximo.

A descrição mais correta seria: iniciou uma corrida em direção ao Vira-Lata menos distante, por que assim que viram os Muques surgirem sobre o muro os grupos se dispersaram, calou-se a discussão e a decisão foi unânime: Cada um que salve a própria pele. Os mais adiantados e estavam além do muro, giraram sobre os calcanhares correrendo para a próxima mega-estação; os que estavam antes do local de acesso dos Muques, dentre os quais Timbu, não tinham muita opção. Como teriam de passar por eles para seguirem os primeiros, só podiam correr de volta à Mega Estação Central. Os intermediários, que estavam em frente à escada, dividiram-se entre as duas direções e alguns deles, pegos pela surpresa da situação, ficaram indecisos e acabaram demorando demais para fugir. Como deixaram os Muques chegarem perto, ao invés de escaparem corriam em círculo se esquivando dos ataques de seus perseguidores. Adiando de uma forma cômica o fim inevitável, estavam involuntariamente cobrindo a fuga de seus parceiros.

Timbu não ouviu a conversa dos Muques, nem ficou assistindo o desenrolar do drama dos retardatários. Tinha a consciência de que, assim como estes, seu papel nesta encenação era o da caça, portanto, o único objetivo válido seria conseguir escapar. Quando olhou para trás soube que caíra em uma emboscada, quase ao mesmo tempo gritou: _ “Deu Zica!” Correndo na direção óbvia da Mega Estação Central e travando nas mãos as tiras da mochila tiracolo, fazendo com que ficasse bem presa às costas, utilizou a firmeza dos dormentes para – como fez na fuga da mega estação - impor um ritmo que ia, aos saltos, ultrapassando vários dos que correram antes dele. Tanto se adiantou, que alcançou aqueles que antes o empurraram para fora dos trilhos. Isso aconteceu, não por que era o maior corredor dos Vira-latas, mas sim por que os mais rápidos estavam parados: Eram três bloqueando seu caminho sobre os trilhos e cada um deles tentava, desesperadamente, livrar-se de um Muque. Timbu não precisou refletir para perceber que foram cercados, continuou em frente e a menos de dois metros da confusão pulou para fora dos dormentes, saiu dos trilhos escorregando sobre o cascalho e voltou a correr. Os Muques ainda não haviam dominado totalmente os fugitivos mais ligeiros, contou com essa imobilidade e os deixou para trás.

Seguiu paralelo à linha férrea, a um braço do paredão de construções que a isolavam da cidade. Diminuiu sua velocidade para desviar de postes e outros obstáculos, tomou cuidado com os lugares em que pisava, por que existiam muitos buracos e pedras grandes onde se podia tropeçar, coisa que seria fatal. Mesmo assim, como os prédios seguiam a sinuosidade do caminho de ferro dos cargueiros, alcançou uma “esquina” depois da qual sairia do campo de visão dos Muques; antes disso, porém, voltou-se para eles. Ao confirmar que, mesmo se pudessem soltar seus presos, os soldados não o alcançariam, fez uma dancinha desajeitada de um lado para outro terminando com um sinal obsceno: dedo médio em riste apontado para quem se quer ofender. “_Ahá! Aqui para vocês. Seus Micos de esgoto!” Exclamou e dobrou a “esquina” deixando para trás, furiosos, os responsáveis pela emboscada. Os guerreiros imperiais odiavam serem chamados de micos, por isso praguejavam enquanto terminavam a imobilização de seus prisioneiros.

Agora Timbu tinha o caminho livre até a Mega-Estação Central e isso era ótimo, mesmo levando em conta que, diferentemente da maioria dos fugitivos, não estava interessado em chegar até lá. Desde que foram surpreendidos e retornou em desabalada correria, seu objetivo era outro: um ponto específico em seu trajeto. Uma forma de escape mais confiável do que voltar até um lugar que, possivelmente, estaria apinhado de Muques.

Utilizou a relativa segurança alcançada para caminhar e recuperar parte do fôlego. Sequer pensava em conseguir mais dobrões, queria apenas dar o fora daquela armadilha. Sair do estômago da serpente e perambular pelas vielas, ruas e avenidas de Sansãos. A cidade se alternava entre lugares movimentados e barulhentos e outros, vazios e silenciosos, habitados por sombras e seres que os Mazombos fingiam não existir. Com exceção das torres de trabalho e das áreas reservadas aos nobres, os Vira-latas se divertiam experimentando os extremos e não havia região que não visitassem. No entanto, quando começou a imaginar para onde iria, sentiu mãos pesadas segurarem sua mochila e o puxarem para trás. Não precisava ver quem era: mais Muques ficaram de emboscada no caminho até a Mega Estação Central. O que o pegou estava escondido nas sombras, em uma reentrância formada pelo encaixe imperfeito da parede de dois prédios. Tinha o deixado passar para depois, como um predador, saltar sobre ele.

_Pode desistir bicho safado! Não adianta tentar fugir, de mim você não escapa! Timbu correu, mas ficou no mesmo lugar, o cascalho fazia parecer estar sobre uma esteira. Igual ao infeliz pego próximo ao muro, apenas girava tendo seu captor como eixo. A diferença é que ao invés de estar preso pelo braço e de cócoras; era a mochila que, como um membro extra, ou melhor, uma corcova, o ligava ao inimigo.

_ Me larga Mico de merda! O Vira-Lata não conseguiu conter sua irritação com a insistência de seus perseguidores, esqueceu não ser inteligente xingar um Muque, principalmente quando se estava a sua mercê.

_ Mico o escambau! Sou Muque! E um de verdade! Sabia que se ficasse esperando aqui pegaria algum de vocês, os parceiros encarregados da emboscada são uns biés. Eu bem falei para o P. Cardoso. Rê, rê, rê. Continuavam rodando e fazendo as pedras dos trilhos voarem para todos os lados, mas Timbu diminuiu seu esforço e T.Toledo – o Muque que tinha mirado para eles na primeira fuga – achou ter vencido.

_ Isso, agora sim, fica bonzinho que não te faço sofrer muito. Vou só te passar as algemas. De cara para o chão! Agora! Arrou! T. Toledo se surpreendeu por que assim que a ordem foi dada, o Vira-Lata redobrou a força para se livrar. Suspeitando ser uma última e desesperada tentativa de escapar, deu um “puxão” acompanhado de um: Arrou!

Timbu esticou os braços para trás e, como uma lagartixa perdendo a calda para confundir uma ave, livrou-se de sua “corcova” deslizando para fora das alças de pano. Ainda meio atrapalhado conseguiu correr, enquanto o Muque se estatelava de bunda no chão. Sua mochila, agora rasgada, voou rodopiando: foi uma rápida chuva de “relógios mágicos” acompanhada de toda sua bagagem. Ao se distanciar alguns metros, percebeu o trepidar e os sons que anunciavam a aproximação de um cargueiro, vinha da Mega-Estação Central e já estava bem próximo.

_ Agora pára, bicho do inferno! Ou te mando encontrar Dom Sebastião! Com olhar feroz o Muque apontava sua cospe-fogo. A arma portátil padrão da casta guerreira Mazombo era bastante temida: constituía-se de uma pequena besta com um compartimento em sua parte superior, de onde desciam as pedras de fogo, ao ser engatilhado seu arco era retesado e a terrível munição, monopolizada pelo Estado, caia do carregador se encaixando sobre a base. A bolinha pulsante brilhava e fumegava como brasa emitindo um inconfundível chiado, que cessava apenas quando partia para explodir seu alvo. Parecia ter vontade própria e implorar por ser disparada. Uma única pedra de fogo, dependendo da parte do corpo atingida, era capaz de matar ou causar graves ferimentos como, por exemplo, arrancar um braço.

O Vira-Lata tomou uma atitude surpreendente para um membro de seu grupo: Após um instante de hesitação, enfiou a mão direita no bolso da bermuda e puxou de dentro um objeto que jogou contra o Muque. _ “Toma mico! Segura aí se tu é bom mesmo!”. T. Toledo achou engraçada a inesperada valentia daquele sujeitinho magricela. Para mostrar o quanto era bom resolveu exibir sua pontaria e atirou, não contra Timbu, mas sim contra o objeto que voava em sua direção.

O fugitivo já estava de costas para ele quando ouviu o disparo. Ao estampido se seguiu o som alto de uma gargalhada que parecia mais um grito, seu tom foi baixando e acabou por sumir sob o barulho poderoso do cargueiro que os alcançou. Como nenhum pedaço seu foi arrancado, aproveitou para colocar entre si e o Muque um obstáculo que salvaria sua pele: a grande massa negra de ferro que chegava rugindo. Dando uma passada larga, pisou sobre um dos dormentes que sustentavam o caminho de ferro. Mal tinha apoiado os dois pés no solo, quando escutou o estridente apito acionado pelo entediado condutor do veículo que, apesar de não querer outro Vira-Lata morto e mais um atraso em sua ficha de ocorrências – dias antes tinha recebido uma advertência da empresa administradora do sistema de cargueiros e mega-estações - divertia-se contando aos colegas como era quando algum infeliz ia parar embaixo de sua máquina. O assustador limpa-trilhos do monstro de aço estava a poucos metros de fornecer outra história a seu mestre, quando sua vítima se jogou ao solo e rolou para fora de seu caminho; passando para o lado oposto ao que estava antes, tendo apenas as canelas chamuscadas pelas faíscas que jorravam atrás dele, afastou-se do perigo e acelerado continuou na direção seguida anteriormente. Tinha de aproveitar ao máximo o tempo proporcionado por sua manobra, por que agora estava próximo do local que procurava...

T. Toledo, tapando com uma das mãos os olhos, deu alguns passos cambaleantes para se afastar do cargueiro e não ser queimado por suas fagulhas. Acertou em cheio o objeto que o Vira-Lata atirou e a pedra de fogo estourou seu alvo como sempre. Realmente não conhecia Muque com melhor pontaria que a sua. Foi exatamente essa habilidade, tão prezada, a culpada por ele ter caído no truque de Timbu. Ficou sem ação ao ser surpreendido por uma explosão de luz, emitida pela bolinha que se desfez em mil pedaços. Estava momentaneamente cego, era como se alguém tivesse acendido uma poderosa lâmpada diretamente sobre seus olhos. Acompanhava essa luz, deixando-o mais confuso, o som de gargalhadas misturadas a gritos e barulhos de animais. Mesmo depois de se recuperar não podia imediatamente sair em perseguição, tinha de esperar a passagem de todo o cargueiro. Limpou a boca com a manga da camisa do uniforme, enquanto mentalmente proferia uma enxurrada de maldições e palavrões. Em voz baixa deixou escapar:

_ Agora não vou perdoar. Vai ver com quem se meteu... Seu orgulho militar foi ferido e isso não podia ficar assim. Como bom caçador que era não esqueceria o cheiro daquela presa, o faro o ajudaria a identificá-lo em qualquer lugar.

Protegido pela montanha móvel que passava, Timbu alcançou uma distância tranqüilizadora. Sabia que continuava sendo seguido, mas a chapa de metal encostada a um muro que procurava, estava poucos metros à frente. A “muralha” que serve de leito para os trilhos não é contínua, como os habitantes de Sansãos têm o costume de construir sem muita interferência de seu governo - apenas contornam acidentes geográficos ou sobem morro acima; acompanham avenidas, rios ou, no caso, estradas de ferro – ocorre uma alternância entre a barreira isolante e diversos tipos de construção, deixando partes mais baixas e reentrâncias formadas pelos fundos dos prédios, uma dessas sombras serviu de esconderijo para o Muque que quase o pegou. O objetivo do muro é mais o de esconder a feiúra dos cargueiros de olhos Mazombos sensíveis, do que o de impedir o acesso à linha. Muitos Nobres da cidade mal sabem que, paralela às ruas e avenidas por onde transitam com seus coches pessoais, existe a imensa rede de caminhos responsável por ligar inúmeras mega-estações umas às outras. Além dessa falta de uniformidade a barreira também é repleta de buracos, alguns feitos pelos Vira-Latas a fim de facilitar o acesso, mas em sua maioria produzidos pela ação do tempo e pela falta de manutenção: característica marcante nas grandes obras que testemunharam o apogeu do Império.

Topou por acaso com aquele buraco, pouco tempo antes, da última vez em que teve de escapar da linha férrea saindo da Mega Estação Central. Dias depois, a fim de garantir uma rota de fuga para uma emergência, escondeu sua descoberta com uma chapa de ferro velho esquecida próximo dali. O acesso tinha apenas alguns palmos de diâmetro, mas não oferecia grande dificuldade à passagem de um Vira-Lata com seu tipo físico. Depois dele o terreno descia bruscamente por uma rampa de um metro e meio, terminando em uma vala que conduzia a água da chuva, principalmente das monções, até a via pública. Este sistema servia para evitar infiltração em uma parede de quatro metros de altura, que tinha como topo cinqüenta centímetros do lado da rampa. Abaixo desta parede ficava o pátio de um dos muitos galpões abandonados naquela região de Sansãos. O espaço cimentado terminava em um portão enferrujado, que estava sempre aberto e dava saída para uma rua não muito movimentada onde, nos dias chuvosos, a calha improvisada escondida pela parede despejava uma pequena cachoeira.

Timbu achou que seria uma fuga fácil e poderia conseguir mais alguns dobrões, por isso acompanhou o bando ao abandonar a Mega Estação Central. Ademais, sempre era mais divertido farrear em bando que sozinho. Porém, desde o aparecimento repentino dos Muques, cortando o caminho óbvio da próxima mega estação e claramente adotando a estratégia de estabelecer um cerco, soube que aquela era a situação para a qual tinha reservado sua “passagem secreta”. Agora estava a poucos metros de sair, não agüentava mais correr. No entanto, aquela tarde lhe reservava uma última surpresa: a chapa, que na verdade era um pedaço de tambor velho, estava jogada pouco antes de onde a colocou. Aproximando-se mais alguns metros, viu que alguém estava com metade do corpo dentro do buraco, felizmente não era um Muque, mas apenas outro Vira-Lata que devia ter encontrado a saída por acaso. O sujeito se enfiou quase até a barriga, mas como não deixou a mochila para trás ficou entalado em uma posição ridícula. Timbu não queria saber dos problemas dele, sabia apenas que tinha de conseguir passar ou estaria perdido, o Muque deixado para trás devia estar “bufando” em seus calcanhares.

_ Vamos, filho de uma ratazana! Deixa essa bolsa de lado e me deixa passar. A impaciência com aquele sovina atrapalhado era tanta que, não deixando de praguejar, segurou as canelas cinzentas e magras a fim de destravar a “rolha” do buraco. O outro chacoalhava bastante as pernas, por isso foram duas tentativas leves e uma usando toda a força, para conseguir arrancá-lo de sua “toca”. Saiu de uma vez batendo o rosto no chão, ao mesmo tempo esperneava querendo outra chance de atravessar a fenda. Timbu também se desequilibrou, mas conseguindo se manter de pé tomou providências para que fosse o próximo a usar a passagem; vindo por trás, enquanto o primeiro ainda não tinha se levantado, deu-lhe um chute que acertou a boca e o fez rolar novamente no chão.

_ Zica Timbu! Deixa-me passar! O grito do Vira-Lata caído o fez suspender, no meio do trajeto, um próximo chute.

_ Ah é você!? Com esse cabeção não me admira não ter passado pelo buraco. Toma que ce merece! Terminou seu movimento visando novamente o rosto de seu “parceiro”, mas atingiu os braços que se ergueram protegendo a boca ensangüentada. Após um rápido passo de lado continuou: “_ Por sua causa tive de correr dos Micos na estação! Aprenda a cuidar da própria vida!” Queria garantir o tempo necessário à travessia do buraco, porque além de ser estreita, sua rota de fuga oferecia mais um empecilho: do outro lado, a única forma de descer a parede sem um pulo de quatro metros, era escalar uma “escada” – que só tinha espaço para um por vez - formada pelos tijolos expostos e quebrados de um estreito pilar que perdeu sua cobertura original. Desferiu outro pontapé mirando o abdômen, o Vira-Lata se dobrou de dor. Antes de mergulhar pela abertura concluiu:

_ Boneco ce é um bié cagueta!!

Ainda com o impulso de entrada rolou pelo declive da rampa, só não despencou para o pátio porque bateu com as costas na pequena parede da vala. Passou as pernas sobre a mureta e pisou sobre o topo do pilar, mas antes que começasse a descida alguém agarrou sua camisa. Tentando se aprumar para descer o mais rápido possível, acabou não percebendo que Boneco, exagerando a dor, apenas fingiu estar fora de combate e finalmente, para conseguir alcançá-lo, deixou a mochila de lado e enfiou mais da metade do corpo através da parede. O Vira-lata não ia se deixar ficar para trás facilmente; enquanto puxava fazia caretas e choramingava, ao mesmo tempo em que não deixava de acusar: “_Ce pensa que é um traíra, tentando roubar minha vez. Eu cheguei aqui primeiro,..., seu filho de uma ratazana!... Sobe e me deixa ir...”.

Timbu estava em uma situação difícil; enquanto usava a mão esquerda para se apoiar e não se desequilibrar, com a direita prendia forte o pulso de Boneco, mais se segurando para o caso de perder a base sob os pés do que querendo se soltar. Permaneceram assim por alguns segundos. Timbu, em silêncio, pensava em como sair desse impasse e apenas balbuciou: “_ Sou mesmo mais traíra que você.” No entanto, para seu desespero, não via como se livrar.

Uma força maior acabou com aquele tenso cabo de guerra. Boneco foi puxado de volta para dentro da linha dos cargueiros: “_Aaahhhh!” Gritou enquanto retornava pelo buraco, muito mais rápido que da primeira vez. Timbu, tão surpreso quanto ele, só não foi carregado junto por que aproveitou o afrouxamento da mão, que acompanhou o susto, para se livrar arriscando um pequeno vôo. Assim que recuperou sua posição anterior, iniciou a descida da forma mais segura permitida pela pressa.

Segurando-se à mureta tateou com os pés buscando as fissuras onde pisar, o sistema de escalada era simples: ao largar seu apoio inicial desceu como se estivesse agarrado a uma arvore, cada ponto que lhe proporcionava firmeza servia de base para voltar a tatear procurando o próximo. Apesar de não ter certeza, fazia idéia sobre o que tinha acontecido acima, por isso saltou no meio do percurso. O impacto contra o solo causou alguma dor, mas nada que o impedisse de imediatamente - saltando montes de entulho e moitas que cresceram arrebentando o envelhecido piso de concreto - correr na direção do portão e, consequentemente, da liberdade das ruas.

Quase na saída ouviu alguém gritando ordens que não compreendia, sequer olhou para trás. Estava tão concentrado em escapar que acabou tropeçando. Não chegou a cair, esticando os braços conseguiu se segurar ao muro onde o portão de grades enferrujadas estava preso. Depois de um giro com o corpo, colocou-se fora do alcance de um disparo. O tropeço provavelmente salvou sua vida, pois a poeira vermelha espalhada pela explosão de uma pedra de fogo, contra o velho muro do pátio abandonado, centímetros acima de sua cabeça, chegou a sujar seus cabelos. Sua adrenalina era tanta, que invadiu correndo a pista e escapou por pouco de ser atropelado. O condutor freou em cima e, usando a buzina do coche acompanhada de uma enxurrada de ofensas, o fez voltar a correr pela calçada. Finalmente, após entrar em uma esquina, pode respirar e caminhar mais calmamente até achar um local para descansar.

_ Não acredito, o filho de uma ratazana escapou. T.Toledo ficou desconcertado por ter errado seu tiro. Teve alguma dificuldade em se “desencaixar” do buraco pelo qual o Vira-lata tinha passado. Como era muito maior que ele, só conseguiu enfiar a cabeça e um dos braços, no entanto, foi o bastante para fazer mira e só não o acertou por que no momento exato, seu alvo providencialmente se abaixou. Sentou-se ao lado dos trilhos recobrando o fôlego, ao se levantar colocou a cospe-fogo de volta ao coldre e com umas tapas tentou limpar o uniforme. Observava pensativo o Vira-Lata arrancado do buraco que, deitado ao lado do muro, choramingava com os pés e as mãos algemadas. Desabafou sem esperar resposta: “_ Por causa de você aquele traíra escapou. Pode até ser um sinal...” Levando a mão ao queixo, fitou os olhos cheios de lágrimas de seu prisioneiro.

Três Muques os alcançaram, um deles vendo o Vira-Lata preso falou: “_ Pois é o outro bicho passou a perna no grande T. Toledo, mas pelo menos tem um prêmio de consolação. Rê, rê, rê.”

_ Não ligue para o J.Castro isso acontece com qualquer um. Tome, trouxe a mochila do bicho.

_ Você sabe que não comigo. Pegou o objeto entregue por P.Cardoso que tinha chegado com os outros. Aproximou a bolsa rasgada do rosto e sorriu mostrando os dentes brancos e afiados: _ Tenho a sensação de que isso ainda me será útil. Os melhores Muques, como lobos, tinham o olfato extremamente desenvolvido. T. Toledo era um destes e até mais, por que ele e P. Cardoso estavam prestes a elevar seu status entrando para os Caçadores, a elite de sua casta, o grupo que mais se aproximava da nobreza. Poderia se dizer que os Caçadores eram os Nobres dos Muques.

P. Cardoso tocou Boneco com a ponta de sua bota e perguntou: “_ E com este vais fazer o quê?”.

_ Recebi autorização para colocar minha experiência em prática. Ele vai me servir de cobaia, será tão bom quanto qualquer outro. Os Muques voltaram para a Mega-Estação Central. Boneco, contra sua vontade, acompanhou-os arrastado pela camisa por T. Toledo.

Timbu passou por várias ruas e vielas com muitos prédios abandonados, a maioria deles construídos com tijolinhos vermelhos, o calor os fazia estalar parecendo querer voltar à terra de que foram feitos. Devido à decadência da região quase não havia outros pedestres. Conforme prosseguia, sentiu ser observado por figuras cinza desbotadas e de rostos emagrecidos, pendendo sobre pescoços ligados a corpos ainda menos nutridos; olhavam dos becos onde se escondiam até a noite. Não se sentiu ameaçado e apenas reagiu quando um dos observadores, tão maltrapilho e sujo quanto os demais, aproximou-se e lhe dirigiu a palavra.

_ Ô parceiro sou de fora e estou perdido por aqui. Se puder me arrumar uns cinco mangos, com certeza Dom Sebastião vai te abençoar. Tinha a mão insegura e estendida, os cabelos desgrenhados completavam sua triste fisionomia.

_ Não vem com mangueio para cima de mim. Seu Zumbi de merda. Sei muito bem o que ce quer. Está pensando que sou bié? Sou um Vira – Lata bem traíra. Vá fazer mangueio com outro pra arranjar sua birra. Apesar de o pedinte ser mais alto que ele, deu-lhe as costas e não olhou para trás.

O Zumbi baixou o braço e a pouca energia que o iluminou para aquela investida desapareceu. Apenas acompanhou melancólico o Mazombo cheio de vida se distanciar, parecia tentar lembrar-se de algo ou de alguém. Antes de lentamente, voltar para o beco de onde tinha saído e à companhia das outras sombras, balbuciou: “_ Eu... também já fui traíra...”

Poucos metros à frente, Timbu topou, providencialmente, com uma construção que tinha um cano quebrado de onde jorrava água. A nascente artificial se derramava sobre a calçada e em seguida buscava a sarjeta, para de lá correr até o bueiro mais próximo. O único obstáculo em sua ida para o subterrâneo era um Mazombo estendido no chão, metade de seu corpo servia de barragem criando um pequeno lago antes de a correnteza seguir adiante. Como o líquido desperdiçado ali não cheirava mal, o Vira-Lata não pensou duas vezes, enfiou a cabeça com a boca aberta embaixo do chafariz e matou a sede acumulada na última hora. Somente depois de se sentar encostando à parede, prestou atenção no sujeito caído: estava descalço, vestia uma calça suja de barro e um casaco velho. Tinha a cabeça voltada para o solo, mas como ainda estava fora da água provavelmente continuava vivo. Acendeu um cigarro enquanto recuperava as forças, observando a represa humana e os poucos coches que, em alta velocidade, aventuravam-se por aquelas ruas. Levantou-se para sair daquela área entediante, por curiosidade ainda parou ao lado do Zumbi desacordado. Não chegou a revistar seus bolsos, sabia que não encontraria nada de valor. Naquela situação já teria gastado tudo o que tinha, ou sido piado por algum “parceiro” seu em melhor estado. Zumbis são os Mazombos que se deixaram consumir pela birra. Estão abaixo dos Vira-Latas por que, além de marginais à sociedade e ao Império, perderam suas personalidades e com isso o reconhecimento de que são seres com vontade própria. Este a seus pés poderia ser apenas alguém com a cabeça cheia de engasga – gato. No fim, dava no mesmo, por que ninguém se importa com a vida ou a morte dos fantasmas que vivem nessas regiões.

Conforme deixava o bairro dos esquecidos a paisagem mudava. Outros pedestres apareceram, a decadência das construções diminuia e surgiam os primeiros estabelecimentos comerciais. Sansãos é assim, várias cidades convivendo a poucos quarteirões umas das outras.

Não demorou muito para a vida e efervescência da metrópole o envolver. Sucediam-se as lojas que, oferecendo os mais diversos produtos, invadiam as calçadas com suas bancadas. Essa extensão do comércio em direção ao passeio público, somada aos vendedores autônomos com seus stands improvisados e ao grande número de transeuntes, tornava comum trombadas e encontrões. O ambiente sufocante não incomodava tipos como ele. Pelo contrário, era útil poder se misturar à multidão, como medida de proteção ou para conseguir alguns dobrões, juntando - se aos exímios batedores de carteira que exerciam seu ofício por ali. Apesar de em outras oportunidades ter conseguido se financiar dessa forma, hoje tinha era de cuidar de seu próprio dinheiro que, felizmente, era guardado em um bolso interno do bermudão e não na mochila perdida. Sentiu seu estômago reclamar de fome com o cheiro vindo das muitas barracas de comida, mas aguentou esperar até chegar ao centro nervoso do comércio:

GRANDE FEIRA DE SANSÃOS.

Como a maioria dos Vira-Latas Timbu não sabia ler. No entanto, não precisava sequer levantar a cabeça e ver as grandes letras presas a um arco de ferro fundido, que ia de um lado a outro de uma larga avenida, para saber que estava diante do início da maior feira do Império. A via foi a inspiração e principal projeto de um antigo governante. Ele desejava fazer com que os velozes e modernos coches – estes começavam a ser importados pela Nobreza - cruzassem a cidade rapidamente, desviando dos enormes congestionamentos, que chegavam a prender os condutores até por alguns dias. Porém, quando a obra estava com muitos quilômetros de extensão e quase terminada, um poderoso Nobre chegou a Sansãos e exigiu uma área privada para praticar a caça à borboleta e à rã, esporte muito popular entre a classe alta da época. Coincidentemente, o território mais propicio para satisfazê-lo, era exatamente onde seria o último trecho da grande avenida. Por anos a construção ficou parada e durante o tempo de utilização da área para lazer dezenas, depois centenas e finalmente milhares de comerciantes, aproveitaram o terreno liso e a localização das faixas que seriam reservadas ao trânsito, mais um canteiro central, para instalarem suas barracas. O trabalho não foi retomado mesmo depois de o Nobre esportista perder os favores do governo central e partir, por que os governantes que sucederam o idealizador da obra descobriram que podiam ganhar muitos dobrões, extorquindo os feirantes ou participando diretamente das transações comerciais realizadas no local. A parte que não foi concluída ficou conhecida como “Brejo do Doido da Rã”, relacionando-se à pseudo-avenida somente no período das monções. Quando as enxurradas transformam o lodaçal em um volumoso lago, que transborda e invade o leito asfaltado para inundar e isolar muitos pontos da cidade. Este é o único período de recesso no ano, quando então a feira deixa de funcionar.

Continuavam os gritos oferecendo comidas típicas, frutas da época, roupas e uma infinidade de aparelhos mágicos trazidos do outro lado do mundo. Mas agora eram tantos Mazombos que só se podia andar seguindo o calcanhar de quem estava à frente. Além disso, as barracas eram as estrelas aqui e as lojas serviam apenas como apoio logístico. Algumas delas, especialmente as de aparelhos mágicos, eram tão compridas que não se podia ver o fim. Foi em uma dessas que, dias antes, Timbu adquiriu os relógios e outras mercadorias para manguear nos cargueiros e mega – estações. Apesar da grande quantidade de vendas no varejo, o lugar funciona como um grande entreposto de distribuição, para onde até mesmo moradores dos territórios mais distantes do país se deslocam, enfrentando viagens que podem levar semanas, a fim de comprar produtos que irão revender a seus conterrâneos.

_ Sai da frente bié!

Timbu sentiu baterem na parte de trás de sua canela. Pulou para o lado quase derrubando outros pedestres, que resmungaram e continuaram suas intermináveis filas indianas: “_ Iarre! Que é isso, filho de uma ratazana?”

O Chulo que passou empurrando um carrinho cheio de caixas não lhe deu atenção, ia ofendendo os Mazombos que atropelava e assim abria a multidão compacta. Esses transportadores independentes, carregando loucamente mercadorias de um lado para outro, eram os únicos que conseguiam romper a lentidão do movimento dos consumidores da feira. Tratava-se de mais uma típica atividade Chula, até alguns Vira-Latas trabalhavam temporariamente dessa forma para manguearem uns dobrões. Timbu deixou em branco a agressão do transportador, aproveitou o espaço aberto para também chegar mais depressa onde queria. A fome era tanta que não prestou atenção a nenhuma novidade oferecida pelo caminho, só parou quando estava diante da barraca procurada, enquanto seu guia continuou seu trajeto atropelando e “elogiando” tudo e todos. Enfiou-se no meio do grupo de compradores que impedia a visão do comércio “brotando”, até um pouco abaixo da altura do peito, na frente de um balcão de madeira coberto por uma lâmina de alumínio. O cheiro forte de tempero e fritura acompanhava a fumaça que saia de dentro do estabelecimento, onde quatro funcionários trabalhavam sob as ordens de um Mazombo gordo. O chefe usava o mesmo avental vermelho dos demais, sujo sobre uma camiseta branca. Mesmo seus braços tinham gordura e, completando os vários tons de cinza de seu corpo, um bigodão grisalho escondia sua boca. Timbu gostava muito dos lagartos fritos e assados servidos no lugar, principalmente acompanhados dos molhos ardidos feitos com os venenos dos próprios animais. Como o bigodudo já o conhecia conseguiu, sob o protesto de outros clientes, ser atendido. Começou pedindo um lagarto vermelho no espeto e um engasga-gato do mais barato, no entanto, a parceria não chegava até o ponto do vendedor, não exigir o pagamento adiantado dos cinco dobrões.

_ Iarre, Rolinha! Ce me conhece. Cinco mangos,..., estou sendo piado aqui! Entregou o dinheiro contrariado.

_ Nada pessoal. Aqui tenho de ser traíra, se não eu sou piado. Re, re, re! Seu riso balançou os pelos cobrindo os lábios. Diziam que seu bigode o fazia parecer ter um passarinho enfiado na boca. Por isso o chamavam pelo nome da ave e ele há muito esqueceu se algum dia teve outro.

Timbu apoiou os cotovelos sobre o balcão: _ Zica. Cheio como sempre.

_ Pois é toda a mazombada: Chulos, Vira-Latas, Muques e até Meios. Andando como em uma procissão de Dom Sebastião. Re, re, re. Rolinha mal terminou o que disse e já estava dando atenção a outro freguês, não voltou a ter pausa para falar com o Vira-Lata que ficou esperando os funcionários entregarem sua comida.

Depois de tomar outro engasga-gato, afastou-se da venda do Rolinha ainda comendo seu terceiro lagarto no espeto. Em um momento de distração foi literalmente abalroado por uma Chula enorme; ela caminhava balançando o corpo parecendo tentar equilibrar seu peso. Desta vez não ofendeu o agressor, deixou cair seu assado e teve de se preocupar em pegar do chão antes que fosse pisoteado, enquanto ela desaparecia na multidão. Limpou com tapinhas a areia grudada na carne e terminou de comer. Aliviado da fome podia apreciar as novidades da feira: ia de barraca em barraca vendo bolsas de couro, jogos de azar, aparelhos de música ou máquinas de fazer sonhos bons... Quando ria baixo com os biés piados por um Vira-Lata falador - Ele, após esconder uma bolinha embaixo de uma tampinha, misturava e embaralhava com outras três para oferecer um prêmio ao jogador que, mediante um pequeno valor, acertasse onde estava escondido o objeto - ouviu, apesar da poluição sonora do ambiente, gritarem seu nome.

_ Iarre, se não é o Timbu. O bicho é traíra mesmo, já está por aqui.

_ Claro sou muito traíra. Acha que eu ia cair fácil para aqueles micos de merda? Re, re. Respondeu quando o Pequeno conseguiu se aproximar. Cumprimentaram-se como era de costume: deslizando as mãos direitas espalmadas e no fim do movimento tocando os punhos cerrados.

_ Ce conhece o Risadinha?

_ Ele estava na linha de cargueiros. E então, conseguiram voltar para a Mega central? Cumprimentou o segundo Vira-Lata da mesma forma, depois acendeu um cigarro.

_ Ri, ri, ri. Que nada eu me enfiei em um buraco de esgoto e fiquei esperando os Muques irem embora. Até não eram tantos, tiveram ainda de se ocupar em levar os biés que pegaram. O Pequeno acabou achando minha caverna, só deixei entrar por que é baixinho. Re, re, re. Pode me ceder um cigarrinho? E aí, qual a trairagem desse bicho ai?

_ Só uns biés sendo piados, já perdeu a graça. Timbu se afastou da banca de apostas e os outros dois o seguiram. _ Tem coisas mais interessantes de se ver. Tome aqui o meu para fumar. Não vai ficar de mangueio para cima de mim, hein! Completou.

_ É isso mesmo, mas primeiro vamos tomar mais uns engasga-gatos, fica sossegado que tenho uns mangos. Re, re, re. Escancarando tantas vezes a boca sem vários dentes para rir, Risadinha realmente justificava seu nome.