O Fantasma de Jorge Luis Borges




Naquele dia as calles floridas, em mim despertaram memórias em tempos dissociados, estranhamente atados. Córdoba, Corrientes e as ruas me atravessavam, passeando-me dissolutas e atemporais, quando alguns versos me vieram à mente: Es mentira que andés caminando por el mundo/ porque después de haberte bebido a grandes tragos/ te comí a pedacitos /Lo que anda de vos moviéndose en las calles/ en realidad es una sombra/ tan sólo um holograma. Não me ocorreu de onde vinham, eles apenas insurgiam embaralhados ao sotaque portenho das ruas. A língua espanhola sempre me infundiu algo surreal e Buenos Aires, como diz o fotógrafo Marcos López, tem algo de festa pop, kitch exagerada em máscaras de brilhantina.
Um verão diverso da minha cidade em que toda gente se põe nas ruas, uma mesa de bar cabe em qualquer canto e a tarde cai ébria de sombras, sem pressa de virar noite. Mesmo na linha antiga e desativada da Boca, vi um único boteco num estilo provençal beirando insolitamente os trilhos. Lá fora, avistei um casal bebendo cerveja. Embaixo da mesa, ressonava um velho Cocker Spaniel inglês. Todos pareciam, preguiçosamente, felizes como nos cartões postais antigos.  

Decidi pegar um táxi que me levasse para onde corriam as águas porque, em algum lugar, elas sempre correm. E lá estava a embarcação no Rio da Prata. Contemplei Puerto Madero e pareceu-me tão gostoso morar ali, porque outras terras, sempre nos inspiram essa ilusão de uma felicidade bem acabada, ainda que por uns dias. Meu olhar desabou no vento que ondulava as águas mansas. Agora, estrangeira, estranhava-me mais os afluentes natais em que me evadi... ou achei-me. Minhas incursões, sem bússola, como barco na sede de água sem medir a tempestade de dentro, munida apenas, do meu hilariante mapa sensorial. Meus enlevos azuis comprimidos em cápsulas de tempo na rotina dos dias e uma nostalgia inundou aquelas paragens, já não tão acolhedoras.

Melhor mesmo, era fazer uma caminhada parando em alguns bares para uma taça de vinho branco. Era uma tarde muito quente e seca. Há muito não chovia, disseram-me, e então, segui a pé, rumo a San Telmo para  derramar-me no passado daquelas ruelas e casarões coloniais.

Tudo ali, ao contrário de mim naquela tarde, coexistia pacificamente com o passado. O verde das folhagens sombreava e tingia pequenas varandas amarelas. As altas janelas com venezianas de madeira cor de palha me aludiam a famílias inteiras habitando-as. Dali, escapavam as frestas de luz de remotos verões iluminando o interior dos cômodos. Podia ouvir o farfalhar dos vestidos, o roçar dos sapatos entre carícias sensuais na dança de um tango escondido, pois que isso, era coisa de malandros e bordéis. Agora, já livre das memórias despachadas no Rio da Prata e alguns copos de vinho, eu capturava as tão faladas: Tardezitas de Buenos Aires que tienen esse que se yo, viste ? Aquela cadência toda ladina e dramática clamava mesmo por uma balada libertária...un viva a los locos que inventaran el amor.
Dobrei uma esquina e deparei-me com uma arquitetura art nouveau fantástica, tão atropelada nos tempos como eu – entre romantismo, grafia pop e pichações. Embaixo, uma frase jogada fortuitamente: “Mas amor”. Recuei na rua vazia para enquadrar a foto, quando esbarrei em alguém. 

...e foi, exatamente assim, que eu a encontrei – A velha mulher de cabelos brancos presos a um coque, fala mansa, beleza devastada pelo tempo. Seus olhos guardavam um amor quase inconcebível por esse mundo louco e tudo que nele vive. Através deles eu podia apreender o que ainda flutuava indecifrável, como percepção, talvez.Teria ela se transformado numa espécie de panteísta? Com o passar dos anos, tudo que a transpassara, de um jeito ou de outro, até as pedras do caminho ganhara alma. Todas as coisas contempladas foram animadas num denso amálgama de sensações. Se por um lado, ela recolhera todos os pedaços do seu mundo carregando-os com zelo, por outro, o mesmo parecia um fardo, talvez pesado demais e, no entanto havia algo bem entoado naquela angústia.
Tudo, naquela mulher, era mais do que íntimo, era intrínseco a mim por uma óbvia e bizarra razão: Eu estava diante do meu duplo.
Meus olhos, quase se plantaram ali, naquele rosto, mas eu sabia que ainda não chegara à hora.
Eu já tinha visto meu duplo nos cães famintos e perdidos alimentando meu medo dos homens. Nos meus escritos. Em espelhos onde o fantasma do transitório esvoaçava a cabeleira loira da eternidade assustando-me. 


Perguntei sua idade e naquele instante, meu temor erigiu uma argúcia que nos separou. Éramos duas. Ela disse – Não importa. Não temer a vida é um bom treino para adentrar a a morte sem medo - Aquela, era eu com minha sintaxe impressionista na tentativa de amenizar essa gravidade nas coisas. Sua voz pontuou de forma bem final - Estou perto de ir-me, não demoro - eu senti seus dedos correrem entre meus cabelos o que, a princípio, causou-me um desconforto, mas depois, senti uma brandura sem fim como um sol de infância, despenteado e doce diante daquela mão suave que era outra e era a minha.  Os dedos pararam no lóbulo da minha orelha. Ela o puxou levemente e, de pronto, invadiu-me aquele velho receio de virar musgo, de sobrestar, de emaranhar-me no outro e virar um Golem. Ela fingiu não perceber-me, mas ambas sabíamos e ela continuou -  Sabe, agora, perto do fim, tenho a impressão de que não existe ida, nem chegada, muito menos a partida. Tudo é caminho, tudo é um único percurso. Uma coisa é certa - ela continuou. Preguei meus olhos nos dela, como que disposta a ouvir uma grande verdade e ela disse apenas - O arrebatamento de um instante, bem vale a passagem - Abaixei o rosto olhando o velho calçamento de pedras irregulares.

Aquele toque permaneceu em mim como os velhos livros imantados por uma aura mágica. De certa forma, algo morria e mais um sonho se ia, mas também, eu vivia o esplendor de um momento que talvez, emergisse num texto ou em vigília como num devaneio. Quando levantei a cabeça, ela sumira e eu, já não me sabia tão bem naquele lugar. Apressei o passo procurando uma avenida movimentada. Tão logo avistei um táxi, parti rumo a Palermo Soho onde os bares e a vida fervilhava de sonhos. Eu atrasara e duas amigas me esperavam ansiosas.
 
Tarde da noite, quando cheguei ao hotel, decididamente, peguei o livro de bolso que comprara numa charmosa livraria e joguei no fundo da mala. Nele, havia quatro contos de Jorge Luis Borges. Num deles, a incidência do tema, o duplo aparecia numa narrativa intrigante. O fantasma do velho e astuto Borges se apossara de mim. Fechando a mala pensei: Ler um autor na sua própria terra é imaginativo demais.
Antes de dormir, liguei o ar condicionado e enroscando-me nos lençóis, imaginei visitar o delta do Tigre de barco com suas belas residências junto às águas. De madrugada, acordei de sobressalto. Eu sonhara com os tigres azuis de Borges contornando as margens do rio. Meu Deus! - pensei aturdida - A incursão na sombra que separa a loucura da lucidez. Isso não!  Deitei-me de novo e dessa vez, fui cautelosa. Em meu pensamento flutuou, apenas a letra de um tango mui pícaro, “Mano a mano” então, lembrei de um certo cruzar de olhos e um capricho milonguero me fez dormir profundamente, como um lenhador.                                                                                                                              
 
 
 

         * Poema citado - Efecto de las tardes - de Horacio Salas. 
           * Foto tirada por mim em 5 de janeiro de 2012.