O PERAMBULANTE
Ele se assenta no mesmo lugar. Todos os dias. Inclusive sábados e domingos. De minha janela posso ver sua chegada, mas foram extremamente raras as vezes que vi sua partida. Nem imagino quando é que ele se vai. O certo é que ao amanhecer ele não está mais ali.
O bar do Eli só abre a partir das vinte horas, e Sílvio é um dos primeiros a chegar. Tem já sua mesa eternamente reservada, no canto esquerdo da porta, lado de dentro daquele bar normalmente cheio até meia noite. De resto, madrugada adentro restam uns poucos
frequentadores, geralmente jogando cartas e conversas ao vento, que se perdem ao bater nas folhas das árvores. Conversas inúteis, tais como dores no corpo, problemas de saúde e aposentadoria, pra realmente se perderem quando o vento cruza as esquinas deste lugar.
Às vezes perco o sono e fico observando aquelas pessoas. É muito raro se ver ali uma mulher, e quando elas frequentam, são sempre acompanhadas ou em grupos de amigos, mas nunca passam das vinte e uma horas, embora seja um bar de respeito. Aqui não é muito comum mulheres em bares. Cidade pequena tem vida miúda, vida encurtada, horizonte até ali. Em época de férias o que muda é somente as praças cheias de adolescentes e jovens paquerando até um pouco mais tarde, já uma ousadia. Em Santana do Sul, as noites são grandes e os dias longos. Aqui o tempo dura um dia de trabalho e um resto de vida dentro de casa, sempre com a TV ligada. Viajar? Pra onde? Pra quê? Aqui só se viaja para visitar parentes, ir à capital ver um médico ou numa romaria visitar um santo de devoção. Fora isso nossa gente não vê nada além da bela serra de Santo Irineu que circunda o lado norte daqui.
Talvez por isso os limites de uma pequena cidade se tornaram os limites de uma própria vida. Ao sul, o imponente Rio do Desemboque e ao norte a serra. Sílvio está com sua vida limitada àquele bar. Durante o dia, é um homem trabalhador, e passa todo o dia com seus afazeres. Honesto, prestativo e cordial, é um homem amado. Após o banho, ele foge da rotina de quase todos os outros, que se resume ao jantar e ver os programas da televisão no sofá de uma sala com meninos barulhentos e os cochilos contínuos diante da inundação de futilidades que a TV apresenta.
Sílvio não. Ele vai para o bar e deixa em casa sua esposa e seus três filhos. Parece que não volta antes da madrugada. E são assim todos os dias. Mas ao contrário do que você pode estar pensando, ele não volta embriagado e violento. Volta sereno, tranquilo e abre a porta com suavidade para não incomodar ninguém.
Ele cruza duas esquinas e vira à esquerda. Sua casa fica no meio da quadra e possuiu um pequeno jardim na entrada. O portão fica sempre aberto, como em qualquer outra pequena cidade. Entra e vai para o quarto dos fundos. Há tempos não se relaciona com Elza, que diz não sentir mais vontade de se entregar ao marido. Casamento de vinte e dois anos, condenado à rotina de uma cidadezinha rotineira. Ele não tem outra mulher, não quis ter, mas seu gênio introspectivo fez dele um homem perambulante pela cidade noturna que dorme alheio ao seu drama. Dos filhos, somente um ainda está na casa. Talvez ele espere que Júnior se vá como os irmãos para que ele possa também se sentir livre. Vez ou outra, mas raridade mesmo, Sílvio fala um pouco mais alto no bar, discutindo com os amigos política e filosofia, e vez por outra, religião. No mais e no geral é um homem silente. Fica horas a meditar, a pensar em que não se sabe. Gosta dos livros e estes às vezes o fazem companhia no bar. Eli, o dono do bar já se acostumou com aquele homem e é seu único confidente. Como é também um homem reservado, apesar de sua inalterável animação, ele não diz uma só palavra sobre o que o amigo segreda a ele. Naquele bar, dores, alegrias, amarguras e comemorações vazias se misturam às bebidas e cigarros, ao som de músicas regionais.
Em casa, Sílvio acende um cigarro derradeiro e olha pela sua janela. Sempre observa os céus antes de dormir o sono pouco. Gosta de observar a posição das estrelas e seu caminhar por entre a noite. Em dias nublados ele contempla o vazio, talvez pensando no vazio de si mesmo, e quando chove, por entre a vidraça deixa entrar um pouco da santa água que do céu cai, como a lavar-lhe as incertezas e desventuras.
Retira seu sapato e guarda-o organizadamente, juntamente com sua roupa no impecável armário. Elza não deixa nunca de manter em dias os pertences do marido. Deita-se sem fazer barulho, antes passando pelo quarto do filho e confirmando que este está bem. E dorme o sono dos aflitos, o sono daqueles que parecem ter perdido o sentido de viver. Mas ainda assim consegue dormir e acordar cedo para um novo dia de trabalho, sempre solícito e cordial. Talvez sonhe a noite toda e quiçá espere acordar, olhar outra janela, ver outra paisagem, ver as estrelas dirigindo-se ao leste, um mundo girando ao contrário do seu. E talvez nesse dia acorde sorridente, ao invés de amável apenas. Sabendo que seus sonhos dependem do seu sono, limita-se a contemplar a natureza viva mesmo dentro da mais densa escuridão e dorme...