O Caso das Duas Melancias

I

Assim que avistaram a barraquinha das melancias numa feira de rua de sua cidade natal, no Estado do Tocantins, o lavrador Saul Rodrigues Rocha e o auxiliar de serviços gerais Hagamenon Rodrigues Rocha imediatamente trocaram um olhar significativo. Em seguida lamberam os beiços cheios de saliva e poeira da cidade.

A vida estava difícil e já fazia alguns dias que eles não se alimentavam direito. Pareceu-lhes mesmo que aquelas melancias estavam pedindo para serem furtadas ou para que fugissem com elas.

Eu não acredito no destino enquanto uma sucessão inevitável de acontecimentos e nem no fatalismo absurdo que considera a vida e os acontecimentos produzidos de maneira irrevogável.

Por outro lado, mantenho uma concepção onde cabe a possibilidade do ser humano se fazer sujeito ativo de sua história e realizar seus próprios sonhos e desejos.

Assim – imagino e creio - é possível que uma idéia como essa tenha passado por um ou dois segundos pelos cérebros esfomeados dos dois rapazes no instante mesmo em que eles lambiam os próprios lábios e se punham a imaginar o gosto gostoso daquela fruta em suas bocas.

E era possível ainda que o destino de ambos estivesse de fato irrevogavelmente traçado naquele momento. Ou não, dependendo tudo isso do ponto de vista e da crença pessoal de cada um de nós.

Mas o fato foi que logo que tomaram nas mãos as duas melancias e se puseram a correr rua afora e já imaginando o doce sabor da fruta vermelha em suas bocas, o dono da barraca imediatamente se pôs a gritar:

- Ladrão, pega ladrão! Pega ladrão!

Os rapazes foram apanhados por populares algumas quadras adiante. Presos em flagrante, foram encarcerados e acusados do furto das melancias.

II

Saul e Hagamenon permaneceram reclusos no sistema prisional de Tocantins até o dia 05 de setembro de 2003, aguardando o julgamento pelos atos praticados.

Nessa data foram encaminhados pela primeira e única vez à presença de um juiz de direito, o Dr. Rafael Gonçalves de Paula. Este então prolatou uma sentença nos autos do processo de no. 124/03 da 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas/TO que – a par de sua beleza, originalidade e sentidos ético e humano – deve ser divulgada diariamente e por todos os possíveis meios de comunicação para que toda a população brasileira tome dela conhecimento.

Fica aquela DECISÃO integralmente registrada nas linhas que se seguem:

“Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias.

Instado a se manifestar, o Sr. promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.

Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Gandhi, o direito natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional).

Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o Consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia.

Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça neste mundo?

Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.

Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir.

Simplesmente mandarei soltar os indiciados.

Quem quiser que escolha o motivo.

Expeçam-se os alvarás.

Intimem-se.”

Rafael Gonçalves de Paula

Juiz de Direito”