SAUDOSA TIA DULCE...
Tia Dulce... Minha querida tia.
Parece que foi ontem o dia 7 de abril de 2011.
Naquele dia, você, tia Dulce, na companhia de sua nora Ana, aquela criatura de alma boa, foi comprar docinhos, torta e refrigerantes para comemorar o seu aniversário, o primeiro de uma série de 80.
À tardinha, a “casa grande” foi aberta para receber umas poucas amigas e alguns sobrinhos mais chegados e para exibir os móveis novos e utensílios domésticos, exageradamente modernos para o seu gosto, que desembolsara o numerário para tantos necessários e supérfluos.
Você havia vendido a casa modesta do bairro Santo Eduardo, valorizada pela extensão do terreno, onde será construído um restaurante de luxo e, incentivada pela família, comprara aquela casa imensa, na Jatiúca, para que cada membro da família tivesse o seu próprio aposento.
A mesa arrumada por Ana estava impecável.
Quando cheguei, você, apesar dos seus 80 anos de idade, completados naquele dia, estava, desajeitadamente e com mãos trêmulas, tentando abrir uma garrafa de refrigerante para que fosse servido aos seus convidados.
Dos moradores da casa não havia viva alma na sala para dar atenção às visitas, além de você.
O “casarão” estava com todos os quartos fechados com seus ocupantes curtindo a nova TV, no friozinho do ar refrigerado, ouvindo música ou em seus descansos costumeiros.
A casa mais parecia um hospital geriátrico, com as enfermarias todas ocupadas. Aliás, ninguém saiu do quarto nem no momento em que foi cantado o Parabéns a você, o que aumentou a sensação de descaso e desamor e porque não dizer: falta de educação.
Envergonhada, tia Dulce, você procurou justificar a ausência do filho, que se imaginava o dono da casa e que somente regressou após a saída dos convidados e parentes de sua velha mãe.
Quando chegou, como se nada estivesse acontecendo, ligou um som de alta potência, colocou um CD de forró, e com o barulho ensurdecedor conversar ficou impraticável.
Tia Dulce, como se não fosse a dona da casa, pediu que ele diminuísse o som e aí foram surgindo, gradativamente, os moradores, como se estivessem acabando de se acordar ou estivessem voltando de um baile à fantasia, com exceção de Ana, que estava lavando roupa na área de serviço.
Há poucos dias, quando, possivelmente, todas as “enfermarias” estavam fechadas, com filho, netas, netos e agregados sonhando despreocupados com as benesses do ano novo, tia Dulce, você estava caída no banheiro da “casa grande”, onde talvez tenha ficado muitas horas desmaiada, até receber o tratamento adequado num dos hospitais da cidade, embora tardio demais.
Ontem, no último dia do ano, você cerrou os olhos para a vida terrena, olhos que puderam ver, por muitos anos, os desmandos do marido, já falecido, a ociosidade de seus descendentes, somados à ingratidão a que sempre foi submetida. Hoje, no primeiro dia do ano de 2012, você levou para a sepultura a sua religiosidade, os seus sonhos frustrados de carinho e compreensão, a sua sensação de dependência, mesmo tendo trabalhado mais de cinqüenta anos e ser a proprietária exclusiva do patrimônio em que se entronizam os seus descendentes.
Não haverá mais um dia 7 de abril para você comemorar o seu aniversário, nem um dia para lembrar o seu fatídico primeiro ano de mudança para a casa grande, mas restam, para os seus vizinhos do Santo Eduardo, mais de 40 anos de boa convivência, mais de 40 anos de amizade e um resto imenso de vida para sentir saudades e descrever a figura humana fantástica que você era, minha tia querida.
Amanhã, dia 2 de janeiro de 2012, estará completando 14 anos de morte e sepultamento de minha mãe, Marina Carolina, sua irmã e, certamente, vocês se encontrarão do outro lado da vida, viverão em união, como sempre viveram e, juntas, velarão por todos nós que ainda habitamos o Planeta Terra...
E, apesar de tudo, a “casa grande”, não mais sua, tia Dulce, permanecerá com as “enfermarias” fechadas ou abertas, mas, com certeza, com seu cofre agora lacrado, indefinidamente, no INSS, o tempo se encarregará de toldar a rápida imponência dada a ela por você, a sua antiga e legítima dona.
Maria Nascimento