Grassy Track
Eu estava debruçado sobre um bloco de notas velho e amassado, lendo e relendo anotações angustiosas, com o café esfriando à minha frente, quando ela pôs a bolsa sobre a mesa com um proposital estardalhaço; ergui a cabeça, e dessa vez o estardalhaço foi feito no meu estado de espírito.
- Você é o... ?
- Sim... E você é a... ?
- Sim.
Levantei da poltrona vermelha e fofa atrapalhado; apertei sua mão e beijei seu rosto; ações recíprocas. "Prazer" em uníssono.
- Faz tempo que você chegou? Me desculpa.
- Não, não, tá tudo bem.
- Vou pedir meu café... Quer alguma coisa?
- Não, não, obrigado.
Eu gaguejava a primeira letra de cada primeira palavra. Ela revirou a bolsa atrás da carteira e, quando achou, foi-se, a caminho dos caixas. O meu segundo estranhamento do tal encontro foi baixar os olhos novamente para minhas garatujas quando ela me deu as costas. O primeiro foi ela ser aquém das minhas expectativas no âmbito estético. A terceira era um acanhamento além do normal, adornado pela sensação de não pertencer àquele lugar, àquele momento...
Ela voltou, perguntando se eu me importaria se sentássemos às mesas do lado de fora.
- Café chama cigarro - disse ela - Sabe como é.
- Não sei, não.
- Hum?
- Mas vamos lá; bora lá.
Tentando acostumar as ancas a uma cadeira metálica e fria, depois de uma hora e meia afundado no macio aveludado e escarlate, eu falei:
- Pensei que você fosse morena do cabelo comprido... Quase que não te reconheço.
- Nossa. Eu, morena!? - Indignada, soltando uma risada bonita, galopante, sincera.
Não soube reagir a tal reação e cocei a nuca. Embaraçado demais, por quase nada.
Talvez pelo sorriso, margeado por profundas covinhas de bochecha.
- Eu reconheci você de primeira! - Disse ela.
- Por quê? - Perguntei, e pensei: mas sou tão apagado; sinto que disto tanto de um reconhecimento instantâneo.
- Você é idêntico às suas fotografias, oras! Porque eu sei que eu não sou muito agradável de se ver pessoalmente... - E meteu um cigarro na boca, e o acendeu com um isqueiro de dois reais.
Friso o valor irrisório pois tudo nela - tudo, dos pés à cabeça - soava caro, requintado, rebuscado. Inclusive o clichê autodepreciativo.
Tudo teatral.
Como eu estava confuso em não saber o porquê de estar confuso, parado olhando a fumaça azul ganhando o mundo depois de um circuito de poluição de entranhas, de apodrecimentos e cânceres a longo prazo naquele corpo de duas décadas de vida; um bebêzinho, um fetozinho na contagem geológica do tempo... Sentados ali fora, protegidos da garoa por um guarda-sol; eu, com uma epifania indizível, ela com uma verborréia interessantíssima, ambos semiconhecidos de cabos ópticos.
Penso: uma amiga disse que mulher quando não está afim do cara, não sai. Inventa mil desculpas para evitar um encontro.
Penso, distante: essa moça veio de longe, e fala bastante coisa relevante, e parece ficar a cada vez mais bonita.
- Eu gosto do modo como você escreve. Eu gosto do que você escreve - ela diz.
- Obrigado. - Eu respondo, já afastado dos "porquê's" de um gato pingado ou outro que me diz a mesma coisa. A maioria das pessoas simplesmente não sabe explicar por que gostam de algo - eu mesmo não sei. Foi-se o tempo que eu precisava delinear, trinchar o que eu cuspia que as pessoas ruminavam.
- Por que você escreve? - Ela pergunta.
- Buk dizia que escrevia para explicar a maldita vida pra ele mesmo e não enlouquecer; Millôr diz que escreve porque pagam ele para isso...
- Quero saber por que VOCÊ escreve!
- Sei lá, caralho! - E dou uma golada no café já morno, quase frio. - Talvez eu queira ser notado de alguma maneira, preencher alguma lacuna da minha infância, a falta de brilho que sempre tive em tudo. Veja: estamos aqui graças ao quê? A uma madrugada insone em que você me achou na internet, graças a uma palavra pouco utilizada que você resolveu procurar e acabou se deparando com um texto meu, leu, gostou, e cá estamos...
Ela riu da minha confusão e falta de coerência e disse:
- Entendi.
Talvez eu estivesse me apaixonando. Eu queria sugá-la. Queria mudar de assunto. "Fale sobre VOCÊ, carai".
A conversa transcorreu amena e cheia de silêncios e meneios de cabeça da minha parte.
Ela ficava a cada minuto mais esquisita. Era como se sofresse metamorfoses.
- O que me revolta é essa sua preguiça...
- Por quê?
- PORRA, corre atrás!
- Mas eu NÃO QUERO.
- ISSO NÃO É POSSÍVEL.
- É impossível alguém não querer nada!?
- SIM!
- Não é: EU não quero...
- Meu, você é burro...
Eu mantinha uma face de paisagem, uma carranca de indiferença. Dei de ombros.
Eu queria possuí-la.
Conversávamos de mãos dadas, com fervor, olhando nos olhos, quase trocando tapas por causa da minha falta de ambição.
As mãos dela envolveram meu rosto com delicadeza quando avancei e toquei seus lábios com os meus. Seu toque era gélido. E eu, me arrepiei.
Caímos na Avenida que serpenteava margeada por arranha-céus imponentes, com a garoa fina e constante turvando nossa visão, com dedos entrelaçados e uma estranheza crescente girando à nossa volta.
Tudo foi de repente, e de repente me vi melancólico, como se estivesse perdendo algo.
No cruzamento mais famoso da cidade o farol dos pedestres fechou e ficamos parados rentes ao meio-fio, em silêncio. Ela me abraçou e me fez abraçá-la, e no meio daqueles braços e cheiros eu observei minha ruína no porvir.
Como um homem que se atraca com uma mulher deslumbrante fica chateado? Eu não era normal.
Na catraca do trem nos despedimos com beijo no rosto, e eu já me sentia miserável e com saudades.
- A gente se vê - Diz ela, sorrindo sem mostrar os dentes.
- Aham.
- Você não acredita, não é?
- Não, acredito sim... - A quem eu estava querendo enganar, afinal?
- Sabe que uma frase que ouvi certa vez faz todo o sentido agora?
- Qual frase?
- Preciso ir...
- ESTA é a frase?!
- Não... Deixa a tal frase pra lá. Tchau.
Soltou minhas mãos e girou a catraca. Olhou pra trás por cima do ombro, sorriu, e voltou a cabeça para frente, andando devagar, sem a pressa que aparentava estar.
No ônibus, meu celular vibrou com uma mensagem:
"Frase: 'os criativos nunca estão seguros de si'. Adorei te conhecer como pessoa :)".
E por um segundo a vida pareceu ser mais sem sentido do que o habitual.
Na manhã seguinte o despertador não me causou impulsos homicidas, e percebi que havia dormido com a blusa que usara na noite anterior, e o perfume dela ainda estava lá, impregnado, fresco como se ela tivesse acabado de borrifá-lo ali, na altura do meu ombro, e me senti bem, e, concomitantemente, me senti mal e desolado, e me olhei no espelho - me olhei bem de perto, encostando o nariz cheio de cravos no vidro e embaçando-o com CO2 - e disse pra mim mesmo:
- Você se fodeu, cara.
Eu estava apaixonado, e um pardal pousado na janela pedindo torrada moída chamou a minha atenção, e eu sorri.
Fodidamente apaixonado à primeira vista.
Ciente das futuras malsinações a perder de vista.
Um Petrarca de quinta nascendo no Subúrbio Paulistano.
02/01/2012 - 12h50m