Tempo bom... Vida de Caboclo
 
Um caba vei, mas mei moço e mei cabouco, sentado na soleira da porta de sua casinha de reboco caído e sem ser caiáda, com a porta arreada e sem tramela...
Pintura nunca viu! Nem é cinza, nem branca, nem amarela! Ela é da cor do barro da terra!...
Aqui num há lugar de tristeza! Vendo em sua vorta com os seus zoios que a terra hai de comer, só vê beleza!
No piscar dos zóios, ver sua vida pra trás e pra diante e nun tem doquê resmungar...
É um omi feliz!
Ao vê o tempo passar!...
Parece que ele o tempo, passa de carro de boi, de apé, de bricicreta, de jumento e agora passa inté de motocicreta!...


Uma corceira nas costa que a mão nun arcança, coça mesmo e com um graveto de pau! 
Aquela mutuca na perna sugando seu sangue ele mata com uma chibatada que dá com a lamina da faca que corta o fumo...

Paciente e pensativo vai cortando o fumo, pensando sabe lá Deus o quê!
O omi simples também avua nos seus pensamentos!...

Embora sua face cansada, rugas nos cantos dos zois, na testa as pregas do tempo é marca do sor quente  escaldante das banda de cá!...
Com suas  carça erregaçada, uma camisa de pano vei ta inté meia rasgada, o chapéu de páia dum lado e seu cachorro  fiel  e cumpanheiro que se chama Peri, la no meio do terreiro  atento aos movimentos a lati, lati  sem parar!...
A muie barrendo o terreiro com pano vei amarado na cabeça, é cedo que ela começa a suar.


Zé da risada no canto da boca de vê Peri  óiar prum lado óiar pro outro alegre  com  seu rabo fino a balangar também  prum lado e pro outro!...
Com uma faquinha de corte nas mãos  põe-se a cortar o rolo de fumo...
A páia de mio na ureia, esperando ele picar o fumo bem picadinho para ardispos enrolar o seu cigarro de páia e com um tisão de fogo acender e jogar a fumaça pro ar... E ai contemplar a vida do seu lugar...
 
Tempo bom!...

Se a chuva chegar, o rio passar!... Nun há lugar mió pra se mora!... Aqui se vévi a vida inteira sem pensar em outro lugar!
E este lugar é aqui ardispois da baxa funda,   dadonde o Zé e Zuíla numa casinha de taipa com um moi de fios vieram encontra a felicidade  pra puder morar!...
Os mínimos tudo melado de lama, arranhados de subi in pé d’pau, um colocando  no mourão da cerca um assaplão  pra outro passarim pegar...
O fio mais veio  debaxo da oiticíca fresca, preparando e fazendo gaiola de talo de carnaúba pra criar a rolinha que ainda ta no ninho la no cacho da bananeira.
O mais novo chora por qualquer besteira! Coisa de criança arengando um com outro que nun dá nem para brigar!...


As mininas com as suas bonecas de pano, rasgando um lençó vei pra fazer de redinha promode balançar as bonecas pra dormi...
É cabeça de criança inocente que vévi aqui neste cantão de mundo!...

Num tem ar de mardade de cidade grande que agente nem tem vontade de ir pra la...

Ta certo que aqui farta istudo, num tem nem doutor! Se o caba senti dou!... Tem que se agarrar com o qui tem aqui!...
Um chazin de fôia de laranjeira pro coração, eva cidreira pra arcamar os nêvo e inté bom  pra dou de cabeça!  Um fôia de courama  pra quando os mininos tem um furunco, tumou sabe né? na bunda!... Mastruz com leite de raca pra gripe, pra tirar catarro du pulmão e eucalipto pá febre...
Ai agente nem se lembra de doutor... Ai é só esperá a doença sara!
Ainda tem remedi para cachumba, papeira, catapora, custela caída, imbigo criscido, pra fraqueza das pernas ai o caba toma  leite de jumenta que levanta até farso tistimunho!
E ainda agente se agarra com Santos... São Jose pra pedir chuva, Virgem Maria pra tirar de quarquer agonia, na ora da morte o caba se apega com Nossa Senhora do desterro e Nossa Senhora de Fátima é pa tudo!
Quarquer dou no zoi é só se alembrar de Santa Luzia, que ela tira quarquer argueiro. Se um bicho bruto  adueçe! Agente pede a São Francisco e quando o caba vai ficando sorteiro reza leigeiro pra Santo Antonio que o bixim é cazamenteiro que eu ja vi!
E ainda tem as rezadeiras pra tirar quebranto e mau oiado dos fio dagente in ate dos bichos inucente tambem!...
Só nun tem remedio pá dou de chive!...  
Mas aqui nun tem disso não!...
Muié casada aqui tem cheiro de sangue in peixeira ou cheira chumbo de espingarda no espiaço do rabo de burro que é o mermo que o tarado de vocês!.

Quem é daqui já sabe!
Nun se bole e nem se tira honra de moça sorteira nen tão pouco de muié casada...


Quando a mué ta pra parir, seja a hora que for!... O marido sai correndo pra chamar à parteira que nunca perdeu um fio até hoje de ninguem!
E a galinha no terreiro num vai fartar inquanto o resguardo da parida durar!

 
O tempo passa e ano a ano é a merma agonia!... Hora tristeza hora é alegria...
Mai hai se levando a vida que Deus quer e que ele dá!

 
Ta certo que pobe sofre com a istiagi, sor quente queimado in brasa e hai insturicando tudo que encontra pela frente!
Aqui quando vem sofrimento ou fartura e pra todo viventes! Seja omi, muié ou minino in té prus animas tambem!...
Se hai fartura, pode inté se morrer, mas morre de barriga cheia!
E se a coisa e ruim niguem nun escapa  do aperrei, escapa inté com vida mas o sofrimento e ai coisa é feia!.


     Da pena de ver os pobe dos bichos brutos a sofrer  com a farta d’água!
Bebe  a água quente lá dos barreiros, das poça de lama e fica caçando que cumer e num  incontra!... Mas é com os puder de Deus muito escapa!
 _ Oia seu moço! Muito chega a morrer de magreza tamanha é a fome! É a mardita  da fome que é grande e a cede é tirana pro farta d'água!
Da seca deste lugar,  só escapa o que Deus mermo quer!...

Mas o mermo Deus que tira é o mermo Deus que dá!                                                             

     _Se a invernada vem, deixa assim  como o sinhor  tavendo este lugar!
Deus é pai... Padrasto é o cão! E aqui nun tem lugar pro condenado do demônio não!


Da porta pá dento  aqui!... Só têm coisa de Deus! É santo espaiado na sala e intodas as paredes da casa!...
Ali tá a istauta Padim Pade Ciço, o quadro do Sagrado Coração de Jesus, da Virgem Maria e de São Jose!


E na boca da noitinha depois da seia agente tira o terço promodo que tudo que Deus dá agente agradecer...

Em noite lua agente vem pro terreiro promode ver os mininos brincar na carreira, brincar de manja, caba-cega, de roda e quando se cansa se assenta aqui do meu lado prumode eu  contar historia as historia de trancoso e fazer adivinhação!
Nisso nun sou muito bom não! Mas avezes chega um ou outro vizinho e sempre tem um arnedota ou adivinhação para pega a criançada... Quando um adivinha,  ai é aquela gaitada!...

 
Mas tem aquele tempo mei fraco. Ai o omi do sertão faz promessa, desde Docanidé do São Francisco a Juazeiro do Padim Pade Ciço...
Nunca se esquecendo do São Jose que o Santo que manda chuva...
 
Agora se  tem inverno!

Pro sertanejo nun tem tempo mió que o tempo ardispois da invernada...
O caba fica o restin do ano afolozado... gaiato e gastadorzin!


     Di vez em quanto chega à casa um pouquim melado, mas nada que deixa a muié e os meninos aperriado! Eles ate ri das besteiras que fala e de ver que não anda aprumado, inté a cela do cavalo chega torta só do caba vir empenado... Também é uma vezinha só na vida para compretar a alegria!
 
Quando o caba agarra no sono e um sono sussegado...
 
Quando sertanejo levanta  nem se alembra do outro dia!
Toma um goipim de café do búi ainda na beira du furgão de lenha...

Abre a porta da cozinha tirando a trave  na porta de cima e a tramela da porta de baxo(porta de duas bandas uma emriba e outra embaxo).

Escora um mão no portal a outra segura a caneca com café pelando e  fumaçando de quente...
Vai tomando, assoprando enquanto tá quente pra ele  esfriando. E de goipin in golpin o café vai se findando...

 
Acaba o café, a luta diária ta só começando!...

Pega o baldo de prastico e vai o pro curá pramode leite tirar das racas...

     Arrasta  a sua mió raca leiteira, que ele chama de mimosa e a bichinha ta  boa de leite pra disgramada!  Ta dando pra mais de dois litros de leite e ainda sobra pro birezim mamar...

Ali mesmo toma a primeira caneca de leite mugido... Chega lamber os beiço!
Com baldi pra  riba de meio de leite,  um pouco é pro mininos bebe e o resto pra fazer a quaiáda, doce de leite as vez fazer uma cangica ou uma pamonha  de mio verde, pro muncumzá,  leite com girimum, com batada doce alem de moiar a tapioca e o beiju e o famoso cafe com leite!


 Ardispos abre a porteira e sortá os seus animás que da gosto ver no pasto!... 
Inxergar o seu gardo gordo,  e que dá gosto de vê ai dá!...

Neste tempo assim inté as  cabras ruim dão leite, os porcos só na pastagem tem deles que  deu de seis arroba pra riba de carne  e com quatro dedo de toucin no lombo.


Seu cavalo alazão, com pelo e crina briosa agora pega cela forgado porque nem  magreza  nun tém mais!
A égua formosa inté vai da cria e esta agora com a invernada cun fé in Deus se cria!
Porque os bichim que naceram por derradeiros quando veio foi só magreza!  Ai nun sobrou um pra fazer nem chá!...


Tudo é bonito de se vê!
Passarim fazendo nim no seu alegre cantar... Grauna, sabiá, canario, curupião, tisil, cabe-fita. Tem passo cantador de tudo de quanto é cor.
E eles  vem cantar in redor da casa, na oi da carnaubeira, na oiticica, na canafista, na estaca da cerca e inté no chão eles vem!
Galo cantando  mostrando que é ele quem manda no terreiro!
Galinha  siscando o tempo inteiro 
a punhar ovo!
O piru arrastando asa, capote!... O
u bicho mintiroso cantando tou fraco!... tou fraco! E de papo cheio...

Neste tempo bom, inté lagartixa na ponta da estaca e gorda que nem preá!...
Casote com força de salta pariba da cerca fugindo da cobra que quer pegar...
E carcara ou gavião marvado, doido pra pegar pinto si põe avua in vorta da casa...  Peri que nun é bobo é cachorro com faro de preá! fica de ôio, se carcará tentar baxar na carreira grande faz carcará vua de vorta pro seu lugar!...

Jumento disposto que fica de ureiá impe chega nun pode ver uma jumenta passar que sai  disibestado atrás dela rilinchando que nem dóido varido...
Pega num pega, quando pega! Coita da bichinha! Inté dói no juízo da gente... De ver o bicho aloprado acunhar a miseravel! Quando sai de baxo ela sai toda moída, mas uma coisa é certa! Desta viagem ela só sai parida!...
 
 
Ei, ei tempo bom da mulesta!

Agradecido a Deus e nosso Senhor Jesus Cristo
Pra quem rezou uma ave Maria, um Pai Nosso
E inté um Crendeuspai  ardispois do Eupecador...
Sem se esquecer de orar pro São Jose...
Eita santinho de fé! Este é o Santo da chuva,
Pai de Jesus Cristo filho de Nazaré!

Ainda bota no meio da reza  o padim pade Ciço lá do Juazeiro...
É no mei do ano que tudo aqui é festa... è tempo da cueita de mio e de feijão!... Mes de São João e São Pedro. Tem fugueira, tem forro, tem coisa mió que viver neste sertão?

 
Eita! tempo bom...
 
A chuvarada fez o Rio passar, inxeu as lagoas d’água que deu peixe pra daná!                  
A fome foi pra baxa da égua, nunca mais bateu em porta de ninguém!
Só se o caba for muito ruim e priguiçoso, mas que caba assim aqui puresta banda nun tem não!...

O cabouco agora tem cum que pagar a budega, zerá as compra do carderno e renovar a dispensa!...
E este ano se bom Deus permitir, na  dispensa do pobe farinha e rapadura, mio e fejão  nem querosene pra lamparina e pro lampião nun hai de  fartá...
 
Nessa fartura touda inté sobra  uns vinténs promode Zé comprar um vistido de chita, roupa bonita pra sua muié Zulila i na missa rezar...
Num vai esquecer dele! Vai  comprar uma zapragata novas, as carças de pano riscado, chapeu do panama. Vai butar  pneu novo na bricicreta e cumprar desta vez um dínamo pra dinoitinha o faro lumiar o camino de vorta pra casa...

I nun farta pros mininos,  os bacurim, os bruguelinhos, os fios de Zé e Zulia, tudo vão ganhar  fanabô pro pés, ingual fio de rico in dia de festa de noite de nartá e finar de ano... Donde pobe se mistura com rico aparecendo uma gente só!
 
Zé sartisfeito, japensa no ano que vem e espera em Deus que seja tão bom quanto este que foi...
Que deu feijão, a batata foi farta, banana, mio com fartura, macaxeira deu de ruma!

A noite,  um dia era na casa dum no outro dia na casa do outro...
É a disbuia de mio ou fejão e ninguém vê a noite passar!
O búi de café ta sempre cheio, as cumades pra dentro os cumpades pra fora...
Os mininos se adivertindo no terreiro doidos pra disbuia nun acaba...


So se ver cachorro latir e de vez inquanto um se istabaca no chão, mas nem vem pra dentro pra bincadeira não acabar...
Ardispois da disbuia do mio e do feijão, chega a hora da farinha e do beiju... 
Ai é outra festança!
É na noitina na luz da lamparina e do lampião a querozene, na casa de farinha  a maió convesadeira!

Gente contando histora de trancoso, aqui e aculá acaba a canina, mas argum mais sabido pucha da borça de páia mais uma garrafa de cachaça escondia...

Ali é só lugar de omi! Minino de uréia impe para ouvi os que os mai vei dizia... Toda hora são raiado por um mais vei que dizia; aqui nun e lugar pra minino ouvi conversa dos mais vei não! Ai divez inquanto um pai ou um tio dizia...
_Sai pra la minino maluvido... Era uma gaitada só!
No meio de omi véi é só sai putaria... 
Alguns inté diziam:_ Deixo os mininos e os cachorros ai!...  Porque no mei ondes eles tão,  nun tem omi peidão... Ar curpa e sempre deles ou dos cachorros!...


E assim amanhecia o dia...
Já na hora do beiju quem vim era as muié de cada um...
Argumas ainda coberta do frio, outras coberta por dentro... Barriguda esperando mais um pra compretar a famía...
 
 Inquanto torrava farina,  dimãianzinha se comia o beiju quentinho com café torrado na hora  e batido no pilão dadonde se tirava o pó... Ou tempo bom!...
Nun tem tempo mió!
Coisa que criatura nenhuma  com as graça nosso Deus pai consegue acabar.
Que com pouco Deus é munto  e o munto sem Deus zé nada... Assim nun tem vida mió!

 
 
 
 
 
              Com e difícil traduzir um linguajar não mais existente e  que só existe na lembrança da gente!
Para mim o exercício de escrever na integra como falava o matuto da minha terra foi uma das mais difíceis tarefas que tive...
Pois tive que arrastar as minhas lembranças de cinqüenta e tantos anos atrás mesmo quando ainda era criança!
Espero que o esforço venha valer a compreensão do leitor!
 
*Traduzindo as palavras que foram perdidas no tempo da globalização e que comumente eram empregadas há 50 anos no sertão pelo meu povo simples em seu lugar!...
 
 
          Apagrata = sandália ou alpercatas
  1. Ardispois = depois
  2. Arguma(s) = alguma(s)
  3. Bacurim =porco pequeno ou os filhos
  4. Balangar = balançar
  5. Baxo = baixo
  6. Borça = bolsa
  7. Bruguelinhos = meninos
  8. Bruguelos = filhos
  9.  Bui= bule
  10. Cabouco = caboclo
  11. Capote = galinha da angola
  12. Carcará =gavião
  13. Casote = tipo de rã
  14. Compretar = completar
  15. Conversadeira = conversa animada
  16. Dadonde = de onde
  17. Dadonde = onde ou de onde
  18. Dimãianzinha = de manhã
  19. Dimãianzinha = de manhã
  20. Disbuia= debulhar (soltar milho do sabugo ou soltar o feijão da vargem)
  21. Disibestado = desenfreado
  22. Doido varrido = louco
  23.  embaxo = em baixo
  24. emriba = em cima
  25. Estalecido = redfriado
  26. Famia = família
  27. Fanabor = tipo de tênis
  28. Fanabou = calçado tipo tênis
  29. Folozado = fogado
  30. Goipin = gole
  31. Goipin= gole ou golinho
  32. Hai = vai
  33. Impé = em pé
  34. In = em
  35. Ingual = igual
  36. Inquanto= enquanto
  37. Inté = até
  38. Istabacar = cair
  39. Istiagi = estiagem/seca
  40. Isturicando = queimando
  41. Maluvido = desobediente que não ouve os mais velhos
  42. Manga= pique ou pega-pega
  43. Minino = menino
  44. Mió = melhor
  45. Muié = mulher
  46. Nun = não
  47. Ôio =olho
  48. Omi =homem
  49. Ouça = audição
  50. Páia = palha
  51. Pariba = para cima
  52. Pobe = pobre
  53. Pra dana= bastante
  54. Pramode = para poder
  55. Promode  = para que
  56. Punha = por
  57. Puresta = por esta
  58. Raca = vaca
  59. Restin = resto
  60. Rezistro= registro
  61. Sartisfeito = satisfeito
  62. Tisão = madeira em brasa
  63. Tramela = trava de porta
  64. Ureiá = orelha
  65. Vei = velho
  66. Vua = voar
  67. Zapragatas = mesmo que sandálias
  68. Zoi= olhos
  69. Zovidos = ouvidos
  70. Zuada = b

Francisco Rangel
Enviado por Francisco Rangel em 01/01/2012
Reeditado em 08/01/2012
Código do texto: T3417358
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